engenharia fina
Uma equipe de 200 técnicos e operários trabalha para garantir que a estrutura
de 91 anos da Ponte Hercílio Luz volte à atividade em Florianópolis
TEXTO | Ânderson Silva
anderson.silva@somosnsc.com.br
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eses antes de inaugurar a Ponte Hercílio Luz, em 1926, o então governador de Santa Catarina, Antonio Pereira da Silva Oliveira, contratou um estudo para avaliar se a obra da empreiteira American Bridge estava de acordo com o projeto.
Os engenheiros Oscar Machado da Costa e Mario de Faria Bello, renomados no Estado na época, referendaram o relatório de 23 de abril daquele ano. Entre cálculos e levantamentos, a dupla não poupou adjetivos à construção recém-inspecionada: “Essa majestosa e monumental obra de arte, no gênero a mais importante da América do Sul e, na espécie, a única construída até hoje em todo o mundo”. O texto descreve a estrutura como a mais importante, até então, em que foram usadas barras de olhal (peças de suspensão do vão pênsil e responsáveis pelas conhecidas curvas arquitetônicas). Por fim, aconselha pelo aceite da primeira ligação entre a Ilha e o Continente na Capital do Estado, mas faz uma ressalva: recomenda vigilância para a conservação da estrutura.
O descumprimento dos conselhos dados pelos engenheiros levou o principal cartão-postal de Santa Catarina a ser interditado pela primeira vez em 1982. Em 35 anos, foram diferentes contratos de manutenção e restauro até o atual, do governo Raimundo Colombo, com a construtora portuguesa Teixeira Duarte. Acionada sem licitação, a equipe europeia chegou a Florianópolis em 2015 para terminar as bases provisórias. No ano seguinte, iniciou a reforma definitiva da ponte a um custo de R$ 263 milhões, depois aditado em mais R$ 11 milhões.
A complexidade e o ineditismo da reforma surpreendem engenheiros no exterior, mesmo os acostumados com obras de envergadura semelhante. No mundo, além da Hercílio Luz, que tem o vão central suspenso por uma barra de olhal, havia somente duas pontes similares, ambas nos Estados Unidos: uma desabou e outra foi desmontada.
– É uma das maiores obras de reabilitação já realizadas pela Teixeira Duarte. Fizemos outras, mas esta, em termos de dimensão, é maior, mais complexa. São trabalhos de muitas especialidades, diferentes áreas – resume Pedro Faro, um dos engenheiros portugueses responsáveis pela obra.
Os números da reforma reforçam o depoimento de Faro. Em um ano e cinco meses, foram substituídos 70 mil rebites (pequenas hastes metálicas usadas para ligar uma peça a outra), 53 transversinas e 420 longarinas (ambas base do vão central) e pagos até o momento R$ 126 milhões. Isso sem falar nas 360 barras de olhal com 1,8 mil toneladas cada, fabricadas em Ipatinga (MG) exclusivamente para a obra. Técnicos da Usiminas, fornecedoras das peças, estudaram a ponte e desenvolveram os materiais conforme as necessidades específicas. Para conectar as barras, as selas foram confeccionadas em Bilbao, na Espanha, e chegaram por navio pelo Porto de Santos em junho passado.
Entre as toneladas de fragmentos da antiga Hercílio Luz e porções da nova ponte, 200 trabalhadores diariamente dão vida a uma estrutura ainda sem movimento. Nos extremos, mergulhadores e alpinistas enfrentam as particularidades de reformar uma raridade.
– Encontramos surpresas quando abrimos as peças, como ocorreu no vão central em que vimos um estado de corrosão avançado. Essa parte foi toda substituída. As transversinas estavam todas furadas pela corrosão, passava um braço de um lado ao outro – recorda Faro.
As dificuldades desconhecidas se agravam pelas condições adversas, do tempo e do contexto urbano. Incrustada no meio da cidade, com cabeceiras recostadas em dois extremos habitados, a Velha Senhora exige cuidados em função da navegação, que ainda ocorre abaixo dela, dos fortes ventos e da umidade. A interferência do clima foi lembrada, inclusive, por Costa e Bello no relatório de 1926: “Não se pode desejar atmosfera mais úmida que as que cercam as pontes e eis aqui a razão porque necessário se torna constante e eterna a vigilância sobre essas obras de arte.”
O deslumbre dos engenheiros, há 91 anos, se iguala ao do Instituto de Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), que tombou a estrutura por conta da sua relevância. Essa “condecoração” exigiu cuidados extras na atual reforma:
– Temos um monumento tombado pelo patrimônio histórico. Não podemos integrar qualquer tipo de modificação. Temos um compromisso com a estética, porque precisamos que fique igual ao que foi feito em 1926.
É necessário refazer peças que estavam em desuso, como os rebites. Tivemos que treinar uma equipe para instalá-los com uma técnica bastante artesanal – diz o engenheiro fiscal da obra de recuperação no Departamento Estadual de Infraestrutura (Deinfra), Wenceslau Diotallevy.
Até o final de 2018, os engenheiros garantem liberar essa primeira ligação entre Ilha e Continente novamente aos catarinenses. Costa e Bello previam, em suas análises, o uso da Hercílio Luz até mesmo para trens de 50 toneladas com vagões de mais 30 toneladas. Mas, pouco exigente, a população só quer neste momento ter acesso novamente à Velha Senhora, aguardada como solução da mobilidade urbana da Capital. Seja em bicicletas, carros, ônibus ou a pé.
adeus À velha
estrutura
C
aminhar sobre a ponte Hercílio Luz de uma cabeceira a outra é uma imersão na reforma da estrutura. Para os leigos, os detalhes chamam a atenção. Desde os pequenos rebites soldados a uma temperatura de 1,2 mil graus até os alpinistas que escalam as peças para instalar equipamentos próximos aos 74 metros de altura das torres. Para os especialistas, é como se o local fosse um parque de diversões. São diferentes conceitos de engenharia aplicados em uma só obra.
Do lado insular ao continental, em cima ou embaixo, os operários se dividem em diferentes frentes. A maioria deles prepara a ponte para a transferência de carga, considerada pelos engenheiros uma das mais importantes desta etapa da restauração, iniciada em abril de 2016. Programada para começar na próxima sexta-feira, 6 de outubro, ela se estenderá em quatro noites não consecutivas até o final da primeira quinzena do mês. A proposta da Teixeira Duarte
é levantar 40 centímetros do vão central e deixá-lo apoiado nas quatro bases provisórias instaladas sob o mar. Para isso, 54 macacos hidráulicos foram instalados, divididos em duas fileiras, uma em cada lateral, com 27 equipamentos cada. Durante o serviço, podem ocorrer estalos por conta do movimento das peças.
Em fevereiro passado, foram içados 13 centímetros do vão, o que já causou sons proporcionados pelo contato do metal. A operação ocorreu durante quatro horas, com o fechamento do trânsito e a retirada de pessoas de casa. Desta vez, no entanto, o Deinfra e a empreiteira se dizem mais seguros e descartam o mesmo esquema especial. A justificativa está nos 200 pontos de monitoramento espalhados pela Velha Senhora. Há controle até embaixo da água. Em uma central na cabeceira insular, os técnicos podem saber a dilatação, a temperatura e outros dados de cada local. Se houver uma movimentação fora do previsto, a operação é paralisada.
– Fizemos uma verificação com os mergulhadores nas quatro bases provisórias que estão embaixo da água e detectamos que a estrutura suportou bem e as deformações estão dentro do admissível. Não há problemas, então, para transferir a carga – garante o engenheiro do Deinfra responsável pela fiscalização da recuperação da Ponte Hercílio Luz, Wenceslau Diotallevy.
Na segunda quinzena de outubro, após a elevação, inicia a retirada dos pendurais, barras verticais do vão central usadas para suportar as barras de olhal. O trabalho vai se estender até o começo de novembro e fará as duas torres cederem entre 7 e 9 centímetros cada uma. Para isso, oito cabos de estaiamento foram instalados. Eles vão segurar as torres durante as retiradas das peças. Em três semanas, apontam os engenheiros da Teixeira Duarte, essa etapa estará pronta.
Será a vez, então, a partir de novembro, de usar novamente macacos hidráulicos. Eles vão levantar as barras de olhal em 70 centímetros cada. Assim, explica Diotallevy, não haverá mais tensão entre elas, o que possibilitará retirá-las sem acidentes. Serão 360 barras de 1,8 mil toneladas cada substituídas. Isso deve ocorrer em duas etapas até fevereiro de 2018 para que comecem os preparativos da colocação das novas peças, a partir de junho.
– Esse ato da retirada das primeiras barras de olhal será o desligamento da antiga ponte. Por isso pretendemos fazer um evento com a presença de familiares de Hercílio Luz – revela o engenheiro do Deinfra.
O engenheiro civil especialista em pontes Roberto de Oliveira aponta a retirada dos pendurais e das barras de olhal como o momento crucial da reforma. Esse processo, explica, será feito pela primeira vez no mundo. Oliveira acredita que o ato terá repercussão internacional.
– É como se fosse tirar um osso velho e colocar um osso novo. Eles vão travar as barras de olhal uma por uma, retirar a ligação entre elas com a remoção dos pinos, que é essencial para o prazo da obra. Se o pino sair com facilidade pode ser rápido, mas se tiver dificuldade pode levar mais tempo. Essa é a fase mais crítica – descreve o engenheiro.
Com a troca das peças de toda a estrutura, avalia Oliveira, a ponte terá condições de permanecer aberta por pelo menos 100 anos. Isso depende, no entanto, de manutenção.
– O aço antes era mais fraco e agora se colocou um material mais forte. Eles conseguiram substituir também os rebites por solda. Então aumentou incrivelmente a resistência. Se ela tiver manutenção, teremos ponte até 2200 com qualidade – avalia.
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o futuro
da ponte
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á um ano e dois meses da previsão de liberação da ponte Hercílio Luz para o tráfego de veículos, são diferentes as teses para uso da estrutura. Na próxima semana, o Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (Ipuf) apresenta em um evento aberto para a comunidade uma proposta que prevê a utilização com foco nos pedestres, ciclistas e usuários do transporte coletivo. Será a primeira divulgação do projeto desenvolvido nos últimos meses. A ideia da prefeitura é abri-la inicialmente para pedestres e ciclistas, com previsão para dezembro de 2018. Depois, algumas linhas de ônibus seriam incluídas.
– O projeto prevê melhorias não só para a mobilidade, mas também no entorno, com lazer, cultura e esporte. Será para a qualificação da cidade. Com o uso intensivo do carro, perderíamos a oportunidade de aproveitar melhor o território – explica o diretor da Região Metropolitana do Ipuf, Michel Mittmann.
Carros pela ponte, segundo o atual estudo da prefeitura, somente depois de uma avaliação prévia dos impactos. Caso seja possível, os técnicos apontam que o modelo de compartilhamento seria o ideal. O Deinfra fez um estudo próprio de contagem de entradas e saídas na Ilha e constatou que o uso para o transporte coletivo deixaria a Hercílio Luz subaproveitada. Por isso, o engenheiro do Deinfra Wenceslau Diotallevy defende que o foco deve ser o compartilhamentos de carros.
Dentro do próprio governo catarinense há divergências. A Superintendência de Desenvolvimento da Região Metropolitana da Grande Florianópolis prevê a Hercílio Luz como corredor exclusivo para os ônibus BRTs. Audiências públicas discutem o modelo de transporte coletivo da região. Depois disso, deve ser lançado o edital de concessão para a implantação do BRT. Internamente, o Estado avalia incluir a manutenção do cartão-postal na licitação.
O contrato com a Teixeira Duarte para a reforma começou em abril de 2016 com o custo previsto de R$ 263 milhões. Em novembro, sob a justificativa da troca de peças acima do previsto, o governo do Estado fez um aditivo de R$ 11 milhões. Até setembro, R$ 126 milhões foram pagos. Agora, o Deinfra estuda internamente um novo acréscimo no valor. Oficialmente, nenhum representante do governo fala sobre isso, mas nos próximos dias a planilha dos custos será levada a Colombo. Ele precisa dar o aval para o pedido. O aumento no guarda-corpo, segundo recomendações dos Bombeiros e do Ministério Público, além de serviços não previstos, embasam o futuro aditivo. O fim do contrato, antes definido como outubro de 2018, agora deve ser estendido para o começo de 2019, mesmo que os portugueses prometam liberar o trânsito em dezembro do ano que vem.
Segundo levantamento do procurador do Ministério Público de Contas (MPC), Diego Ringenberg, divulgado em 2015, desde 2010 até o fim da reforma seriam aplicados R$ 563 milhões na estrutura. O Estado refutou o cálculo. Para o Deinfra, desde 1982, quando o cartão-postal foi fechado pela primeira vez, manutenção e obras de recuperação exigiram R$ 200 milhões. Com o atual contrato, esse valor vai subir para, pelo menos, R$ 474 milhões.
– Fazer uma nova ponte levaria cerca de 10 anos até que os projetos fossem aprovados e a obra, concluída. A decisão de reformar foi a mais correta – defende Diotallevy.
Ringenberg questiona os dados de gastos com a reforma desde a década de 1980 apresentados pelo Estado. Segundo ele, deixaram de ser levados em conta os impactos econômicos causados pela ausência da ligação entre a Ilha e o Continente. A previsão de um novo aditivo, afirma o procurador, não o surpreende:
– Isso é emblemático, numa obra contratada às pressas. Não obstante estar há 35 anos interditada, a reforma ocorre sem planejamento adequado. Nem sequer aspectos de segurança envolvendo a população foram considerados.
Em janeiro deste ano, o pleno do TCE negou o pedido de Ringenberg para obrigar o Estado a fazer um plano de contingência para caso de acidente na estrutura. O entendimento do relator da matéria, Adircélio de Moraes Ferreira Júnior, seguido pelos demais conselheiros, é de que o plano para desastres de origem natural e tecnológicos do município já é suficiente. O MPC recorreu, mas teve a solicitação negada.
Uma missão
pessoal
TEXTO | Stefani Ceolla
stefani.ceolla@somosnsc.com.br
N
a fala de Ivo Pelegrini, 81 anos, a ponte é viva. Ele atribui a ela ações, sentimentos, verbos que no vocabulário comum só seriam usados para seres humanos. O encarregado de obras tem propriedade para narrar que ao longo dos 57 anos que dedicou à Hercílio Luz ela sofreu, esperou, reagiu. Para ele e os cerca de 200 trabalhadores que neste momento se encarregam da etapa final da obra de restauração da estrutura, não é apenas ponte, é casa.
Foi nela que João Carlos da Silva, 54 anos, virou Cupim. Que Warlei Humberto Alves Pires, 32, que trouxe o apelido Peixe de Minas Gerais, tornou-se Peixim – como está escrito à mão em seu capacete. Foi nela que o praticante de highline Felipe Brasil, 29, também mineiro, transformou a paixão pela altura em missão pessoal: ele é alpinista na Hercílio Luz.
É missão também para engenheiros como Edson Luiz Valandro, 32, do Oeste catarinense, e Júlio Mendes Landriel, 27, manezinho do Estreito que fez da ponte seu primeiro emprego. É casa e missão para o encarregado de montagem Valfrides Avelar dos Santos, 37, e o auxiliar técnico de segurança do trabalho Marcos Rogério de Souza, 50, o sorridente Marcão, ou Marco Véio, ou o apelido simpático que você preferir. Certamente será recebido com um sorrisão pelo catarinense nascido na maternidade Carlos Corrêa – uma das mais antigas da cidade, inaugurada em 1927.
Todos ali têm uma história e uma bagagem, mas são só os olhos azuis de Ivo que se enchem de lágrimas ao falar sobre a ponte. Não poderia ser diferente. O trabalhador mais antigo da obra que para muitos parece eterna viu a vida passar no vaivém entre Santo Amaro da Imperatriz e Florianópolis. Viu carroças atravessarem e os dejetos deixados pelos animais danificarem sua estrutura. Viu a estrutura fechar, sofrer com a ação do tempo. Viu gente boa e também mal intencionada conduzir a restauração. Viu a obra caminhar a passos lentos e também 70 mil rebites serem trocados. Viu tanto que até assombração assistiu – e apesar de rir ao contar esta história, prefere deixar a ponte todo dia antes de anoitecer.
Ivo Pelegrini:
57 anos dedicados à Hercílio Luz
Ao sair do Exército, Ivo foi trabalhar na Hercílio Luz para uma empresa contratada para mexer na estrutura, que receberia parte de uma rede ferroviária “que nunca veio”. Era década de 1960. Nos morros do entorno, havia poucas casas. A região que ia até Palhoça era tão deserta que era usada nos exercícios militares. Para chegar todo dia ao trabalho, ele dependia de ônibus ou bicicleta. A primeira opção era a mais conveniente, mas em dias de chuva só tinha um jeito de o veículo atravessar as estradas de chão nos morros que separavam a pequena cidade da Capital, a 34 quilômetros de distância:
– Tinha que tirar o calçado e empurrar.
Ivo começou trabalhando com jateamento e pintura, mas não demorou a receber outras tarefas, como ele define o trabalho de encarregado. Suas mãos ergueram até o canteiro de obras na cabeceira insular, onde ficavam os equipamentos dedicados à manutenção em uma época em que a Hercílio Luz ainda vivia bem.
– A gente até ajudou a fazer o canteiro, ali onde era o cemitério. Depois aparecem algumas coisas por causa disso. Algumas coisas que assustam. Não é lenda não, é sério mesmo. De vez em quando a gente vê, quem anda de noite na ponte vê. Melhor sair antes de escurecer – conta, aos risos, que não dá pra saber se são bom humor ou nervosismo.
Ivo encerra cada causo com o bordão “é isso a vida”, que sai tão natural quanto as histórias que conta. Usa os equipamentos de segurança exigidos que, em outras épocas, eram raros entre os trabalhadores, e carrega um caderno de capa preta nas mãos, em que anota as missões que ainda conduz. Conhece a Hercílio Luz como ninguém, e não há quem não o conheça entre os trabalhadores.
Júlio Landriel: engenheiro começou como estagiário
e foi contratado na equipe
Os “tripeiros”
da Hercílio Luz
S
e no passado o Morro do Mocotó foi o destino dos trabalhadores que vieram a Florianópolis para construir a ponte Hercílio Luz, um século atrás – e inclusive recebeu esse nome em alusão à refeição preparada pelas mulheres que habitavam o morro sobre o túnel Antonieta de Barros para os operários –, hoje é no bairro Estreito que repousam muitos dos que chegaram à cidade para finalmente reabrir a estrutura.
É lá que mora Edson Luiz Valandro, engenheiro mecânico responsável pela produção. Da região de Chapecó, trabalha na Hercílio Luz desde 2015. Veio para a Capital com a esposa e vive a dois quilômetros da obra. Casa e trabalho se misturam.
– Eu tinha conhecimento da história da ponte, mas por estar na região Oeste eu não sabia da complexidade e da importância que ela tem para a cidade, a influência dela no dia a dia das pessoas. Acabei vendo isso. As pessoas me falam da importância dela – diz o engenheiro, que define a obra como “um marco”.
Valfrides dos Santos: mineiro trabalha desde 2013 na montagem da estrutura
Também no bairro vive Valfrides Avelar dos Santos, encarregado de montagem, mineiro que desde 2013 trabalha na Hercílio Luz. Ele já passou por obras emblemáticas, como a reforma do Maracanã. Mas garante que a restauração da ponte em Florianópolis é única, e ficará marcada não só pelo impacto profissional. Foi aqui que nasceu seu primeiro filho, Alexandre, hoje com um ano e três meses. Para ele, a Hercílio Luz trouxe vida.
– Embora eu tenha feito projetos em todos os lugares do Brasil, é algo diferente. Primeiro, é um projeto que nunca foi feito em nenhum lugar dessa forma. Outra coisa é a importância que essa obra tem. Muitas pessoas não acreditavam, e agora estão vendo resultado. É maravilhoso participar de algo que tem importância para tantas pessoas.
Nativo do Estreito e portanto “tripeiro”, como os manezinhos denominam quem nasceu naquele bairro, Júlio Mendes Landriel nem imaginava, mas foi na ponte vizinha e que nunca tinha atravessado que deu os primeiros passos na vida profissional. Aos 27 anos, o hoje engenheiro mecânico começou a trabalhar na obra como estagiário, no ano passado, e, recentemente, foi contratado.
– Como sou daqui, sempre tive vontade de entrar na ponte, conhecer a estrutura dela, até porque meus pais já passaram por aqui e eu nunca tive essa oportunidade. Quando eu vim estagiar e pude entrar, foi uma emoção – conta.
Para ele, fazer parte dessa obra “tem uma importância pessoal muito grande”:
– Deixar parte da minha história aqui e levar parte da história dela comigo é algo muito bom, que me emociona e me faz buscar ainda mais profissionalmente algo desse tipo.
João Carlos da Silva, o Cupim: o avô trabalhou para erguer a ponte
A função de Júlio é acompanhar o jateamento e pintura da Hercílio Luz. Trabalho que é executado por gente como João Carlos da Silva, o Cupim, pintor e também “tripeiro”. Ele nasceu e mora até hoje na cabeceira continental da Hercílio Luz.
Se Júlio conseguiu realizar o sonho de trabalhar na ponte já no primeiro emprego, Cupim levou mais de meio século até que isso acontecesse:
– Passei um dia lá no canteiro e contei que estava desempregado há um ano. Perguntaram o que eu fazia, eu disse que era pintor. Disseram para voltar dali dois dias. Voltei e eles me ficharam – resume o homem conhecido pelo senso de humor, que há um ano e dois meses espalha piadas pela Hercílio Luz.
O avô de Cupim trabalhou na construção da ponte e, “depois que ela terminou, ele morreu”. Foi por isso, e também por observá-la diariamente, que o pintor desejava um dia também poder deixar seu legado.
– Sempre imaginei trabalhar aqui, mas eles nunca me deram chance. Agora deram. Era um sonho. Estou seguindo os passos do meu avô. Para mim é uma honra – resume Cupim, que ganhou na ponte o apelido que justifica de forma simples:
– Cupim de ferro. Na hora que eu pego, eu arregaço!
Quando uma peça é retirada, Cupim limpa, trata, pinta e ela é colocada de volta.
– Depois nós vamos cair na pistola para pintar ela toda. Jatear e pintar – explica.
Questionado se o trato final é ele quem vai dar, Cupim responde: “é nósh”.
Felipe Brasil: alpinista executa o trabalho nas alturas
histórias que
se cruzam
A
s tarefas na reforma da Hercílio Luz seguem uma lógica. Enquanto uns soldam, pintam, outros carregam madeira e equipamentos. Ou trabalham pendurados em cordas.
É o caso de Felipe Brasil, alpinista e supervisor do trabalho em altura. O mineiro de fala calma, que coleciona boas histórias dos amigos que fez na obra e sabe apontar aqueles com uma vida emblemática, já atravessou a Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, a mais de 900 metros de altura, caminhando sobre uma fita – a prática chamada highline. Depois dessa experiência, ficar no alto dos 66 metros que separam o ponto mais alto da Hercílio Luz do mar poderia ser tranquilo. Mas a responsabilidade com que trata a missão a transforma em uma oportunidade única.
– É um prazer imenso fazer parte da obra. Eu acredito que todos que estão aqui sabem da importância. A população nos adora, porque querem vê-la pronta. A gente tem essa coisa da reforma durar muitos anos – diz o alpinista.
Felipe é mais um que chama a ponte de casa:
– A gente passa mais tempo aqui do que com nossas famílias. Cria vários laços. O pessoal tem muita experiência de vida, de formação de caráter, independentemente de onde veio, é muito humano, carinhoso, acolhedor. A grande maioria é muito amigo, está sempre se ajudando.
Há oito anos ele vive em Floripa, local que buscou para “fugir da loucura” de Belo Horizonte, procurando qualidade de vida. Há seis meses, trabalha na Hercílio Luz.
– Minha empresa entrou na obra para montar toda a estrutura que faz o formato da ponte. À medida que o tempo foi passando, o trabalho foi aumentando, foram vendo a necessidade do trabalho em altura. Fomos criando dispositivos, estruturas para o pessoal trabalhar com segurança, além de toda a montagem – explica Felipe, que admite que nunca imaginou trabalhar no local, mas hoje diz que entrou “para fazer a diferença”.
A ponte Hercílio Luz é um ambiente masculino. Hoje, entre os operários, só há homens. Até poucos meses havia uma mulher, soldadora, mas que já não faz parte do grupo. A presença feminina está restrita aos escritórios e ao refeitório.
Em meio ao barulho das máquinas e do vento que parece ser mais forte no vão central, é possível ouvir gargalhadas e boas histórias. E confirmar que ali surgiram laços de amizade, como contou Felipe.
Warlei Pires: soldador que, na ponte, virou Peixim
Marcos Rogério de Souza, que atua na segurança do trabalho, nem sabe quantas vezes atravessa a ponte todo dia. Além de uma reunião diária sobre a importância do uso dos equipamentos, ele precisa estar em campo, atento às normas. Por onde passa, é cumprimentado. E além do nome, recebe histórias e sorrisos. Marcão é querido por todos.
– Não tem sujeito mais humilde aqui – garante Cupim, ao abraçar o amigo.
Tão humilde que se recusa a aparecer em fotos e vídeos – e é por isso que ele não tem a foto incluída nestas páginas:
– Meu negócio é ficar no bastidor – explica.
Já são 23 anos trabalhando na ponte, conta o manezinho que nasceu e cresceu na Avenida Mauro Ramos, uma das principais da Capital, e hoje mora no bairro Aririú, em Palhoça. A gentileza, educação e preocupação de Marcão fizeram com que criasse vínculos e conquistasse o respeito dos demais trabalhadores.
– Eu sempre digo para eles que não quero chegar um dia na casa de alguém e contar que o marido perdeu um braço, que ficou paralítico. Porque é bom no fim de semana pegar um filho no colo, brincar. É isso que tenho que garantir.
Se Marcão atravessa a ponte sorrindo, há quem atravesse cantando. Tem carioca mandando o hino do Flamengo no meio do expediente, tem o Cupim que acende um cigarro no intervalo. E tem o Peixim, “muito popular aqui em cima”, como ele mesmo define.
Warlei Humberto Alves Pires, o Peixim, trabalha há dois anos e meio como soldador na Hercílio Luz. Morador do Jardim Atlântico, no Continente, não conhecia a ponte até ser empregado nela. Hoje, não quer mais deixar Florianópolis. E reconhece a importância do trabalho que executa:
– É uma função difícil, de responsabilidade. A solda é uma arte. Você tem que praticar e aprender – define.
Há 15 anos, ele aprende. E com humildade, coloca em prática. Peixim olha para a ponte que nem conhecia como se fosse sua, uma meta a ser cumprida, um sonho realizado:
– Depois que o trabalho estiver pronto, que as pessoas estiverem passando por aqui, vai ser um orgulho para gente. Quando tiver filhos, apresentar para eles que aquela obra, um patrimônio histórico da cidade, que estava tão desamparada, a gente ajudou a fazer. Vai ser uma maravilha, um orgulho.
Todos sonham com o dia da reabertura da ponte. Seu Ivo, olhos cheios de lágrimas, acha que “vai ser uma choradeira só”. Valfrides vai poder mostrar para o filho catarinense a obra que ajudou a reconstruir. Peixim, um dia, também. Cupim vai poder pescar – o que mais gosta de fazer quando não está trabalhando – embaixo de uma ponte por onde as pessoas vão poder passar. E Felipe, talvez, realize o sonho de fazer highline lá em cima.