A ilha do
Serviço Público
suspensão do plano de carreira dos empregados municipais de Florianópolis
coloca a categoria em choque com a prefeitura e levanta a discussão sobre o impacto do funcionalismo na economia da cidade
TEXTO | Emerson Gasperin
A
té 1951, as partidas de futebol no estádio Adolpho Konder, em Florianópolis, ocorriam somente à tarde porque o campo não tinha iluminação artificial. Nos dias de semana, os confrontos vespertinos entre Avaí, Figueirense, Paula Ramos e demais times no local onde hoje fica o Beiramar Shopping eram chamados de “jogos do paletó” devido a uma figura bastante comum nas arquibancadas: o funcionário público que deixava o casaco do terno pendurado em sua cadeira na repartição e ia para lá torcer durante o expediente. Por mais acanhado que fosse o antigo “Pasto do Bode”, havia lugar para todos os servidores e ainda sobrava espaço. Conforme o IBGE, a cidade contava então com 3.122 empregados nas esferas municipal, estadual e federal, o equivalente a 15% das pessoas ocupadas e a 4,6% do total de habitantes.
Se a situação fosse reproduzida hoje, seria necessário um Maracanã.
Nem a Ressacada e o Orlando Scarpelli juntos acomodariam todos os titulares dos empregos formais da administração pública em Florianópolis registrados na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2015, divulgada pelo Ministério do Trabalho em setembro passado. São 80.812, o que representa 29% das vagas e 17% da população – praticamente o dobro e o triplo dos índices verificados há 70 anos. Diante do impasse provocado pelas medidas do prefeito Gean Loureiro (PMDB) para recuperar as contas da Capital, muitas das quais com efeito direto sobre os servidores do município, os números alimentam a discussão quanto ao tamanho do funcionalismo da e na cidade, seu custo e a eficiência do serviço prestado.
A fatia de empregos públicos na composição dos postos de trabalho em Florianópolis está à frente de capitais maiores como Porto Alegre (25,4%), Curitiba (21,8%), Rio de Janeiro (17,2%) ou São Paulo (16,5%) e pouco atrás daquelas com porte similar, como Vitória (30%). A exceção, por sediar grande parte da estrutura governamental, é Brasília (37,7%) – pela mesma razão, é natural que Florianópolis supere as cidades-polo catarinenses. Com bem menos funcionários estaduais e federais, Joinville e Blumenau, por exemplo, somam 5,8% e 4,9%. Um critério mais justo é compará-las a partir da quantidade de habitantes por servidor municipal. Nesse caso, os resultados são parecidos: 44 joinvilenses e 40 blumenauenses, ante 39 florianopolitanos.
As propostas anunciadas por Gean sob a rubrica Economia para o Futuro mostraram o peso do funcionalismo no orçamento do município. Segundo o secretário de Administração, Everson Mendes (PSC), a prefeitura mantém 10 mil funcionários ativos e 2,5 mil inativos. A folha bruta mensal chega a R$ 75 milhões, o que corresponde a três quartos da arrecadação. Precisa ser reduzida. Os principais afetados não concordaram com o “pacote de maldades”, como foi tachado pela categoria, e entraram em greve. Em meio a muito tumulto, a Câmara de Vereadores aprovou o projeto no último dia 24 por apenas um voto de diferença. O texto prevê a suspensão do plano de cargos, carreiras e salários (PCCS) instituído em 2014 e altera ou extingue diversos rendimentos acrescidos no contracheque.
— Não tem como pagar (o PCCS). O culpado é o gestor que assinou isso, que não teve responsabilidade administrativa — queixa-se Mendes.
No dia 31, o Tribunal de Justiça (TJ) considerou ilegal a paralisação e decretou o imediato retorno às atividades, determinação ignorada pelo Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal (Sintrasem). Uma semana depois, a Procuradoria Geral de Florianópolis pediu a prisão dos dirigentes sindicais por descumprimento de decisão judicial. A greve completou 25 dias na sexta-feira.
A
s medidas mexem com vencimentos dos servidores que a sociedade em geral encara como benefícios – no mau sentido – por não serem praticados por nenhuma empresa. A queda do valor da hora extra, de 100% ou 200% (final de semana à noite) para 50%, trará uma economia de R$ 800 mil ao mês, calcula o secretário. Mais R$ 300 mil virão com o corte do adicional noturno, de 50% para 25%. A licença-prêmio (três meses a cada cinco anos), que só no ano passado exigiu R$ 1,9 milhão, acabou. Assim como foram canceladas o adicional por tempo de serviço e as comissões, pelas quais o servidor ganhava R$ 1 mil pela participação.
— Tinha servidor que estava em três, quatro comissões. Só restou a de licitações, que é obrigatória por lei. Esperamos poupar R$ 500 mil mensais.
Como diriam os locutores esportivos ao narrar uma goleada, não perca a conta. De acordo com Mendes, os R$ 900 mil gastos ao mês em ampliações de jornada devem cair pela metade com a permanência somente das consideradas imprescindíveis, como das merendeiras. O fim de 130 cargos comissionados vai salvar mais R$ 4 milhões anuais. Também terminaram as incorporações (gratificações pelo exercício de função específica que engordavam o salário pelo restante da carreira, mesmo que o funcionário voltasse ao cargo original), nas quais foram consumidos R$ 23 milhões nos últimos quatro anos.
Mas não para por aí. Mal assumiu, o prefeito publicou decreto para enquadrar 57 servidores que receberiam acima do teto de R$ 25,6 mil – a remuneração de Gean. No caso dos procuradores e auditores, eles estão amparados por um parecer legal que os equipara aos desembargadores, cujo máximo é de R$ 30 mil. A adequação ao limite municipal renderia R$ 400 mil aos cofres públicos, contabiliza o secretário. E, em reação à lista que circulou pelas redes sociais antes mesmo de tomar posse, o peemedebista convocou todos os funcionários a voltar à origem. Na relação, aparecem 34 nomes com salários incompatíveis com a função exercida. Coisa de R$ 18 mil para um orientador de estacionamento ou R$ 16 mil para um contínuo.
— São gratificações e outras verbas que os servidores mais antigos vão agregando, com aprovação da Câmara e regulamentação por lei — admite Mendes.
A percepção de que funcionários públicos vivem em uma realidade paralela é reforçada por revelações como a do site Farol Reportagem, que em dezembro apontou a existência de 2.670 servidores com rendimentos superiores ao teto. Os quadros arrolados pertencem à Secretaria estadual da Fazenda, TJ, Ministério Público (MPSC), Celesc, Alesc, Procuradoria Geral (PGE) e Tribunal de Contas (TCE) e seus salários perfizeram R$ 110 milhões na análise realizada pelo TCE. Que tudo está dentro dos ditames legais, restam poucas dúvidas. Mas seria moral anexar bônus diversos a uma remuneração que, em regra, já é muito mais alta do que a da média dos catarinenses?
A questão ganha relevo quando se detecta que o responsável pela aplicação das leis é um dos que mais contribui para essa avaliação negativa. Em 2015, cada magistrado em Santa Catarina custou R$ 52.870 por mês, enquanto a média nacional foi de R$ 49.967. As cifras foram veiculadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que expõe ainda que os recursos humanos abocanharam 89% dos R$ 79,2 bilhões despendidos pelo Judiciário naquele ano. Além dos vencimentos com juízes, servidores, inativos, terceirizados e estagiários, o cálculo inclui auxílios (alimentação e moradia), diárias e passagens. Para os meritíssimos, não há nada de errado nisso.
N
o tempo em que o estádio Adolpho Konder não tinha refletores, a rivalidade entre Avaí e Figueirense se estendia para a política. O apelo do futebol junto ao povão garantia tantos votos quanto a construção de obras. Doações e benesses a clubes e atletas eram corriqueiras, na forma de cessão de terrenos, empréstimos a fundos perdidos, perdão de dívidas e escalação dos jogadores mais cobiçados no funcionalismo público. O Partido Social Democrático (PSD), da família Ramos, empregava os avaianos em nível estadual.
A União Democrática Nacional (UDN), ligada aos Konder-Bornhausen, encaixava os alvinegros no âmbito federal. Um atleta azurra semianalfabeto que batia um bolão aposentou-se como fiscal da Fazenda no Estado.
A prática ilustra um traço presente no Estado brasileiro desde a sua formação: o clientelismo. Como ensina o coordenador do Núcleo Interdisciplinar em Políticas Públicas do Departamento de Ciências Políticas da UFSC, professor Erni Seibel, a concessão de favores em troca de apoio percorre toda a história do aparelho estatal nacional, junto com outros velhos conhecidos.
O patrimonialismo confunde o patrimônio público com o do mandatário da ocasião. O fisiologismo é o toma lá dá cá em prol do interesse privado, nunca do bem comum. O paternalismo estabelece relações sociais e trabalhistas em torno do patriarca. O populismo conquista a confiança do povo para tomar medidas autoritárias.
— Essas características orientaram a cultura político-administrativa do país, afetando a relação entre a gestão das instituições e as demandas sociais. Reflete-se em normas ausentes ou desatualizadas, processos defasados, falta de gestão estratégica em recursos humanos, pouca qualificação e desmotivação dos servidores, além da inexistência de programas de avaliação de desempenho.
A industrialização pós-1930 impôs um Estado centralizador, regulador e interventor. A ampliação de suas funções acarretou o consequente aumento do número de funcionários públicos. De 1900 a 1940, mostra o
IBGE, os servidores pularam de 77.655 para 482.938 – um ritmo muito superior ao avanço da população no mesmo período, de 17,5 milhões para 41 milhões de pessoas.
O crescimento de pessoal levantou a necessidade de aperfeiçoar a seleção e qualificação dos servidores. Em 1936, foi composta a Comissão de Reajustamento, que deu vazão ao primeiro plano de classificação de cargos no governo federal baseado em um sistema de méritos.
No mesmo ano, surgiu o Conselho Federal de Registro Público Civil (CFRPC), com a promoção de concursos como uma de suas atribuições. O órgão estipulava duas classes de funcionários públicos: as pessoas contratadas por suas qualificações e os “extranumerários”, empossados por padrinhos políticos. Em 1937, o Estado Novo obtido via golpe por Getúlio Vargas redundou em uma nova Constituição (a “polaca”, inspirada no modelo ditatorial polonês), que planejava a implantação de uma entidade encarregada do “estudo pormenorizado das repartições, departamentos e estabelecimentos públicos, com o fim de determinar, do ponto de vista da economia e eficiência, as modificações a serem feitas na organização, sua distribuição e agrupamento, dotações orçamentárias, condições e processos de trabalho, relações de uns com os outros e com o público”.
Em 1938, nascia o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp). A intenção, pelo menos no papel, era acabar com a indicação política a cargos estatais. Com a queda de Vargas, em 1945, o Dasp restringiu-se à análise e orientação dos problemas de administração, além do aperfeiçoamento de servidores e a seleção de candidatos. Empregados do Supremo Tribunal, do Senado e da Câmara voltaram a ser recrutados sem passar por concursos. Nem o retorno do gaúcho por via direta, em 1950, conseguiu ressuscitar o departamento como havia sido idealizado. Cada vez mais esvaziado pelos sucessivos governos, o Dasp foi extinto em 1986. A “Constituição Cidadã” de 1988, instituiu o concurso como a única forma de ingresso efetivo no funcionalismo público.
a
diminuição de 10 mil empregos formais na administração pública municipal, estadual e federal em Florianópolis de 2014 para 2015 parece ter mais a ver com a crise econômica do que com austeridade. No período, os únicos setores que aumentaram o pessoal ocupado na cidade foram “serviços industriais de utilidade pública” (classe que envolve empresas como as de economia mista que distribuem água e energia elétrica) e “serviços” – o que mais emprega, justamente englobado pelos dois segmentos que têm reduzido a dependência da economia local do funcionalismo público: turismo e tecnologia. Resta saber se a Capital está preparada para o impacto das tesouradas no bolso do servidor da prefeitura.
— Claro que em um primeiro momento isso irá ter algum efeito sobre a economia. Mas os cortes são pequenos frente ao valor total dos salários dos servidores. Por outro lado, sobrarão mais recursos para o prefeito investir — acredita o presidente da Associação Comercial e Industrial de Florianópolis (Acif), Sander DeMira.
E sempre haverá funcionários estaduais para fazer o dinheiro circular. Em Florianópolis, 26.829 pessoas (ativas e inativas) recebem em média R$ 8.698 do governo de Raimundo Colombo. A expectativa de
DeMira é de que as reformas defendidas por Gean Loureiro avancem também para facilitar o empreendedorismo. Segundo o dirigente, a abertura de uma empresa em Florianópolis demora mais de 150 dias e 70% dos negócios funcionam precariamente por causa da papelada exigida, “o que gera insegurança”.
O secretário Everson Mendes garante que o desenvolvimento econômico vislumbrado pela prefeitura prevê desburocratização dos processos. Outra medida prometida é a cobrança dos grandes devedores, o que sinalizaria que os servidores municipais não serão os únicos afetados pela urgência em abastecer o caixa da prefeitura.
— Tem que cuidar para não criminalizar o servidor. Historicamente, por trás da demonização de setores da administração pública estava o interesse em privatizá-los — alerta o professor Seibel.
O jogo está rolando. O poder público é dono do campo, da bola, dos uniformes e, se bobear, até do árbitro. A ideia é enxugar os times para assegurar, no mínimo, o empate. Mas, como o futebol, reformas administrativas podem ser uma caixinha de surpresas.
QUEM SOMOS
Repórter
Editora
Editor de fotografia
Designer
Editora de design e arte
Editora assistente de design e arte