TEXTO | ângela bastos
Jesus Cristo, o aniversariante da semana, nem tinha nascido, e as pessoas já trocavam mensagens de felicitações. No caso, pela chegada do novo ano. O hábito teria surgido na Roma Antiga e permanecido com a cristianização do Império Romano. Inicialmente, as congratulações eram gravadas em tijolos de argila. Assim como as civilizações, a matéria-prima foi mudando. Pergaminho, a partir da pele de cordeiro e bezerros recém-nascidos; além de sedas, placas de madeira e até cobre gravado.
Com o passar do tempo, os textos também se alteraram. Oficialmente, o primeiro cartão de Boas Festas surgiu em 1834 em Londres. O formato se modificou, mas o conteúdo permanece igual até hoje. Independente da preferência pelos cartões tradicionais ou de quem não liga para a impessoalidade nos e-mails, o certo é que o desejo de paz, amor, alegrias, prosperidade, felicidades continua sendo impresso. Ou seria gravado nos corações, que tomados pelo espírito natalino, ficam mais generosos e solidários?
uita gente diz que prefere o cartão digital por falta de tempo para escrever à mão – além de livrar-se da fila nas agências dos Correios, eventuais atrasos na entrega e até do preço. Teria sido a mesma falta de tempo que inspirou a criação das mensagens impressas em papel. Henry Coyle, diretor do British Museum de Londres, sentiu a impossibilidade de escrever à mão para todos familiares e amigos que desejava. Decidiu, então, pedir para que o artista plástico John Callicot Housley bolasse uma ilustração para que os votos de Boas Festas chegassem a diferentes pessoas.
O pintor aceitou a proposta. Pegou um pedaço de cartolina e dividiu em três partes: ao centro, desenhou uma família reunida em torno da mesa e comemorando alegremente. No verso colocou meninos pobres recebendo comida e roupas. Na outra parte escreveu: A merry Christmas and a happy New Year to you (“Um alegre Natal e um feliz Ano Novo para você”). Foram impressos cem cartões. O diretor do museu ficou com a maior parte. Os que sobraram foram vendidos. Inicialmente, todos eram litografados e pintados à mão. O processo artesanal só terminou quando, diante do interesse do público, um editor de livros decidiu investir nas vendas.
professora Sônia Moro herdou da família a tradição de escrever, enviar e guardar cartões. O hábito, que para ela não significa saudosismo, vem dos tempos de criança, quando na casa da avó via os adultos escreverem e colocarem as mensagens recebidas na árvore de Natal, às vezes, num painel que decorava a casa para as festas de final de ano. Se foi um tempo bonito, hoje o hábito conserva um certo glamour.
Moradora da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, ela guarda dezenas de cartões. Entre os mais antigos, está um que recebeu de uma prima quando eram adolescentes, em 1973, e vivia no interior do Rio Grande do Sul.
– Não vejo Rosângela Moro, psicóloga que mora em Brasília, há 20 anos. Porém, o cartão ajuda a manter na memória a amizade daqueles tempos – diz.
Sônia conta que trocar correspondência sempre fez parte da vida dela. Uma tia já falecida teria sido a inspiradora, pois por onde andava mantinha o hábito de enviar um cartão-postal. Quando Sônia percebeu, ela também estava enviando e recebendo mensagens de amigos e parentes. Entre tantos envelopes ela relê os que vieram de Roma nos anos 80. Na época, namorava o italiano Césare, com quem, segundo as próprias palavras “viveu uma longa história de amor”.
Os cartões guardados por Sônia Moro são pequenas obras de arte. Acima, em azul, uma pintura da artista plástica e amiga Berenice Gorin; abaixo, mensagem de Césare, um italiano com quem a professora viveu um grande amorOs cartões que Sônia guarda têm diferentes formatos. Os enviados pela amiga e artista plástica Berenice Gorini em 1995 e 2002, por exemplo, chegaram com um toque especial: feitos por ela própria, que já participou da Bienal de São Paulo. Berenice personaliza com desenhos e fotografias de pessoas da família. Apesar de viverem na mesma cidade, as amigas costumam escrever cartas e até livros trocam pelos correios. O recurso é usado sempre que os compromissos impedem um tête-à-tête.
Sônia acredita que trocar cartões tem lá a sua beleza. O hábito pode ter diminuído, mas continua sendo uma coisa bonita, fina, uma forma educada de, inclusive, responder com outro cartão os votos recebidos. É o que aconteceu com o amigo Luiz Antônio dos Santos Neto, professor de fotografia que mora na cidade gaúcha de Santa Maria. Com ele também aconteceu algo que a morte inesperada de Césare não permitiu: a amizade migrar para o Facebook.
Mas a escrita à mão continua sendo o meio preferido de Sônia trocar congratulações com pessoas a quem quer bem. A professora reconhece as facilidades trazidas pelas novas tecnologias. Mas acredita que a comunicação tenha ficado mais massificada. Para ela, ao aparecer um cartão digital na tela do computador, a tendência é o destinatário abrir, olhar e dar a operação como encerrada. Bem diferente de quando alguém para a fim de achar as palavras que reflitam o seu sentimento:
– Quando a gente escreve, joga ali a nossa energia e escolhe as palavras que transmitam os nossos sentimentos. Via e-mail é um pouco impessoal.
Sônia faz ainda outra observação. Para ela, existe diferença entre as memórias físicas que um cartão impresso deixa. Bem diferente do digital, que flui tão rápido como o ano que está terminando.
numa caixinha de papelão que a aposentada Marlene de Souza Melo guarda as memórias do pai, o professor Manoel de Souza, falecido em 2011, e que por anos deu aulas no Colégio Catarinense, em Florianópolis. De dentro ela retira cartões de congratulações pela passagem do Natal e Ano-Novo escritos há quase 50 anos.
As correspondências foram enviadas pelos amigos Hélio Mandovani, em dezembro de 1968, que vivia em Ponte Serrada, no Oeste do Estado; e por João da Silva, no ano de 1967, também professor, morador em Tubarão, no sul de Santa Catarina. Os Souza, Mandovani e Silva não mantêm contato. Mas se os familiares dos remetentes mantiveram o hábito de guardar correspondências, é possível que um cartão enviado por Manoel de Souza seja encontrado, com aquela caligrafia caprichada. Com letras desenhadas como dos antigos professores.
– Lembro do meu pai desenhando os cartões para enviar e agradecer a todos que tinham enviado a ele – conta Marlene.
Também professora, agora aposentada, ela diz que deu prosseguimento ao hábito de enviar cartões e ensinou filhos e netos. Para ela, a tradição de escrever cartões ajuda a manter as famílias mais unidas. Através das mensagens, as pessoas realmente demonstravam sentimentos verdadeiros de paz, alegria, prosperidade.
A família também preservou outro cartão: um de 1980 enviado aos moradores pelos antigos lixeiros da prefeitura de São José. Em forma de versinhos, os trabalhadores pedem perdão a Deus se por acaso não fizeram bem o trabalho. Quando o assunto é tecnologia, Marlene avisa:
– Eu acredito que a internet e a tecnologia valem muito, mas eu não deixo de utilizar a minha escrita e a minha memória para continuar enviando mensagens para as pessoas.
Marlene guarda com carinho mensagens de Boas Festas recebidas pelo pai na década de 1960
Nos armários da casa, Azevedo guarda exemplares da época que vendia cartões em livrarias e bancas de revista de Florianópolisuem escreve um único cartão com votos de Boas Festas semeia esperança de dias melhores. Então o que dizer de quem vende 25 mil cartões, em um único mês, fazendo circular as mensagens de “bons auspícios”? É o que praticou ao longo dos anos o hoje aposentado Henrique Azevedo, 82 anos, morador do centrinho da Lagoa da Conceição, na Capital. Tudo isso em décadas passadas, em um tempo em que Florianópolis era uma pequena cidade, onde o telegrama e as cartas eram os meios mais eficazes de mandar mensagens escritas.
Os cartões eram trazidos em caminhões vindos de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Azevedo abastecia as livrarias e bancas da cidade e região. Com a proximidade do Natal, contratava vendedores que montavam bancas improvisadas em compensados cobertos com panos pretos nas principais ruas do Centro. Formavam-se filas e muita gente aproveitava para escrever ali mesmo e passar pelos correios para postar os envelopes.
A fornecedora era uma empresa alemã. Os primeiros cartões em alto relevo caíram no gosto dos moradores da acanhada Florianópolis. Mas foi quando chegaram os musicais que o público se encantou com a novidade. Azevedo conta que havia modelo e preços para todos os gostos.
– Era o charme da época– conta o antigo vendedor.
Azevedo lembra que saía de casa 6h e voltava só às 22h. Na época, ele tinha um Fiat 147 que vivia lotado de cartões e envelopes. Ele deixou a atividade, mas acredita que mesmo com a internet muita gente ainda prefira o cartão em papel por ser mais fácil materializar a lembrança. Considera um ritual bonito baseado em dizeres positivos, os quais fazem bem para as pessoas escreverem e lerem.
– A coisa que me chamava a atenção era o fato de que uma família era surpreendida com a chegada de um cartão e depois comprava um para retribuir a gentileza.
A família de Azevedo também manteve o hábito de trocar cartões. Hoje, por problemas de saúde do casal, a tradição está meio esquecida. Mas o antigo vendedor defende que, no mundo onde a pressa e os meios eletrônicos imperam, um cartão pode ajudar a inspirar. Até porque quem envia um cartão não é só educado em determinada época do ano, mas capaz de manter outros gestos simpáticos, como o de dar bom-dia, pedir licença ou desculpas e dizer obrigada.
É o que ensina Azevedo ao mostrar a mensagem que costumava oferecer aos clientes e amigos.
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