ECOS DA
velha cidade
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esta vez é o próprio José Brazilício de Souza que expressa seus sentimentos. Na sequência, diz que adorava violino. Mas que, por sugestão do professor Guilherme Hautz, se entregaria completamente por cinco anos ao estudo do piano. O instrumento se tornará o predileto.
Quando se fala no lado musical de Brazilício, é o Hino de Santa Catarina que vem à cabeça. Instituído em 1882, tem música dele e letra do amigo, professor e maestro Horácio Nunes Pires. Sem dúvida, algo que o notabilizou.
— Quando a gente era criança, ouvia o Hino do Estado de Santa Catarina na escola e, em casa, o pai nos contava que tinha sido o avô dele, o nosso bisavô, que tinha composto — rememora a advogada Sueli Sousa Sepetiba.
Anos depois da morte do pai, no final dos anos 1980, Sueli conseguiu publicar um livro que o pai tinha escrito. Baseava-se principalmente na vida e obra de Brazilício. Sobre a vida e obra do bisavô, ela sugere:
— Brazilício foi uma criatura dinâmica, que viveu pouco tempo, mas que soube aproveitar muito o tempo, aliás, um homem fora do seu tempo.
Partitura do Hino do Estado de Santa Catarina
Ouça o Hino de Santa Catarina:
— Então, comecei a sentir amor pela música...
Crédito: Reprodução
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A bisneta de Brazilício, Sueni Sousa Sepetiba, trabalha para preservar a memória do antepassado
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Entre os pertences deixados por Brazilício, e que permanecem guardados em um baú sob os cuidados da bisneta Sueli Sepetiba Sousa, em Florianópolis, uma nota fiscal que marca sua passagem pelo Rio de Janeiro, onde adquiriu material didático para as aulas que daria em Desterro.
Aobra de Brazilício é muito maior. Um repertório rico em música religiosa, concertos, ópera, valsas, polcas, samba, mazurcas, hinos, marchas de carnaval e músicas para teatro de revista, entre outras.
Além dessa diversidade de gêneros e ritmos, apresenta uma variedade de instrumentação. Uma riqueza que concede músicas para orquestra, bandas, quarteto de cordas, duos de violino, voz com acompanhamento de piano, canto coral, banda sinfônica. Até para orquestra de baile.
Mas onde o morador de Desterro, cidade que não era um grande centro cultural, buscava suas referências? Brazilício também deixou a resposta escrita, a qual está publicada no livro O Sábio e o Idioma.
“Em setembro de 1873, deixei a família, para ir ao Rio de Janeiro, onde era fácil ouvir violinistas, pianistas etc, e, principalmente frequentar o teatro de ópera, para apreciar as óperas compostas pelos mestres imortais.
Depois de dois movimentados meses, voltei ao Desterro. Não possuindo inclinação para empregos públicos, nem podendo ter qualquer pretensão honrosa a respeito da arte que cultivava, resolvi consequentemente ensinar música e os instrumentos que aprendera. Este trabalho me foi agradável por causa da vocação que me entusiasmava.”
A qualidade da obra de Brazilício também chama a atenção. Pelo Hino de Santa Catarina, por exemplo, recebe um elogio daqueles com afeto que se encerra.
“Jamais vi um compositor esbanjar tanta técnica num simples hino” , observou Antônio Francisco Braga, que musicou a letra de Olavo Bilac no Hino da Bandeira Nacional.
A primeira execução foi para um auditório seleto em 4 de fevereiro de 1890. A ocasião mereceu destaque no Jornal do Comércio, edição do dia 6 daquele ano, disponível na Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, no Centro de Florianópolis.
Sobre a mesma apresentação, a inspirada crônica “Pequena História de um grande Hino” (1978), escrita por Abelardo de Sousa, neto de Brazilício, com base nas memórias narrativas do pai, Álvaro.
Crédito: Reprodução
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É um dia estival, o 4 de fevereiro de 1890. A noite começa a envolver a silente cidade do Desterro. Ao coaxar das rãs e ao cri-cri dos grilos junta-se, agora, o lento patear de cavalos conduzindo uma carruagem que, saída do Largo do Palácio, sobe preguiçosamente a rua do Tenente Silveira, em demanda da Álvaro de Carvalho...
Clique para ler a crônica completa
Ouça algumas composições
AMOR À ARTE
ALVORECER
HOMENAGEM A
FAMILÍA SOUSA
SINHÁ
SUB TUUM PRESIDIUM
DITOS E FEITOS
Obra completa
Fonte: Arquivos da família de José Brazilício de Souza
Um homem de 16 pianos
Brazilício chegou a ter 16 pianos. Sobre um desses, o piano de cauda marca Pleyel, adquirido em 1884 da firma homônima, de Paris, há registros. A aquisição foi feita por intermédio de Henri Prealle, um viajante e comerciante credenciado da loja parisiense, onde um irmão era diretor. Henri viajou muito pelo Brasil e em Desterro tornou-se amigo de Brazilício.
Após a morte dele, em 1910, o piano permaneceu com um herdeiro até 1932, quando foi vendido ao governo do Estado de Santa Catarina. Inicialmente, o instrumento foi colocado no grupo escolar da cidade de Biguaçu que leva o nome José Brazilício de Souza.
Em 1978, o então governador Antônio Carlos Konder Reis mandou fazer reparos na parte externa do piano e integrá-lo ao acervo do Museu Histórico. Em outubro de 1985, acolhendo proposta do presidente do Conselho Estadual de Cultura, professor Oswaldo Ferreira de Mello, o secretário de Cultura, Esporte e Turismo, Salomão Ribas Júnior, determinou a recuperação completa do piano. O instrumento encontra-se no Museu Cruz e Sousa.
Quase 120 anos depois da morte de Brazilício, nem toda obra deixada por ele foi lida, tocada, musicada.
— Penso que 60%das partituras permaneçam originais — calcula o tataraneto Theo Sousa Sepetiba, que, em 2009, pesquisou a obra para o trabalho de conclusão do curso de Música, na Universidade do Estado de Santa Catarina.
A forma pela qual Brazilício se relacionava com a música chamou a atenção do tataraneto durante a pesquisa. Um hábito iniciado ainda na juventude, como quando compôs uma música para a moça que comemorava 15 anos e que mais tarde seria a esposa, acompanhou o compositor ao longo da vida:
– Brazilício escolheu não ser músico profissional, mas ensinar. Muito do que compunha oferecia para as pessoas, e parte consegui recuperar porque estava com descendentes dessas pessoas.
Durante a prospecção, Theo encontrou nos Estados Unidos e na Europa duas inserções em enciclopédias com o verbete Sousa (com S). Mas também há, ainda que pouco, referência ao artista em A Música em Santa Catarina no Século XIX.
Por tudo que ouviu, pesquisou e sentiu a respeito do tataravô, o também músico Theo tem uma
(in)definição do multifacetado homem de quem cresceu ouvindo o avô Abelardo Sousa falar e escrever:
“Teria Brazilício traduzido em música o que ressoava na alma enquanto observava a abóboda celeste?”
Theo Sousa Sepetiba, tataraneto de Brazilício
Com aplausos e polêmicas
Silvia Beraldo é flautista, saxofonista, compositora e professora de música em Florianópolis. Foi durante as aulas que pela primeira vez ouviu falar de José Brazilício de Souza. Nasceria ali uma paixão que iria parar nas telas do cinema. Na época, um dos alunos era Theo Sepetiba, tataraneto do compositor, que falava a respeito das três gerações de músicos da família: Brazilício, Álvaro e Abelardo. Um dia, ela foi convidada a visitar a casa dos Sepetiba para um dos muitos saraus que viriam. Encantou-se com o baú que lhe foi apresentado cheio de coisas de Brazilício. Mais tarde, em uma pesquisa para o filme Cruz e Sousa, o Poeta do Desterro (1999), do diretor catarinense Sylvio Back, decidiu incluir uma das obras. Tempos depois, gravaria também no CD Trilhas e sempre que pode tenta popularizar a obra em suas apresentações.
— É uma obra muito rica e deveria ser mais conhecida — sugere.
No começo dos anos 2000, mais uma visibilidade: a Camerata Florianópolis lançou um CD com músicos de Brazilicio, de Álvaro e de Abelardo, com o título de Memiria Musical Catarinense.
A compositora Silvia Beraldo ajudou a resgatar as obras do compositor
Alberto Andrés Heller é compositor e pesquisador. Em maio de 2012, ele foi indicado pela Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina para integrar uma comissão formada para analisar o hino de Santa Catarina sobre alteração ou manutenção (§ 2-º, do Art. 2-º, do Decreto Legislativo nº 18.298/2011). Fez um estudo e através de 15 itens fez uma observação minuciosa da letra de Horácio Nunes Pires e da música de José Brazilício de Souza.
Na época, algumas das queixas que motivaram a discussão sobre o hino eram: não falar especificamente do Estado de Santa Catarina; se concentrar em aspectos abolicionistas; não representar características importantes do Estado e de sua população (aspectos sociais, culturais, étnicos, geográficos, turísticos etc.); ser demasiadamente extenso e de difícil linguagem, o que dificultaria a memorização e a compreensão; de difícil execução; poucas pessoas conhecem o hino; muitos não se sentem representados pelo hino.
Na análise, Heller destacou que os compositores foram dois expoentes intelectuais de uma época, representantes de uma geração, testemunho histórico de um momento. Ressaltou um trabalho que considera composto de “belíssimos versos e de belíssima música”. Mas reconhece que os tempos e os gostos mudam, vindo a pergunta: esse hino continua a nos representar?
Para o músico, no entanto, o respeito à tradição histórica não significa “obediência cega” nem tampouco “adequação acrítica”. Quatro anos depois, continua defendendo a necessidade de se propagar o atual hino da melhor forma possível (com gravações e edições primorosas, facilidade de acesso, divulgação eficiente e sistemática) e, ao mesmo tempo, abrir possibilidades para sugestões de novos hinos se assim houver entendimento.
— O Hino Nacional também convive com questionamentos e vamos trocá-lo por causa disso? Ou alguém consegue imaginar um hino com o linguajar das redes sociais?
Alberto Andrés Heller conduziu pesquisa histórica sobre o Hino de Santa Catarina
Mais de 100 anos se passaram desde a morte de Brazilício, um homem que deixou uma obra ainda a ser conhecida. Um estudioso que colocou as observações dos céus de Santa Catarina no mapa da astronomia, um mestre que soube ensinar e deixou uma geração de músicos. O nome dele está presente em uma rua em Florianópolis, no núcleo de observação astronômica com sede no IFSC, também na Capital, e em um grupo escolar em Biguaçu. Como se fossem pontinhos na cintilante Via Láctea.
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Jamais vi um compositor esbanjar tanta técnica num simples hino
Maestro Francisco Braga, autor do Hino
da Bandeira, sobre o Hino de Santa Catarina