Por Que A Gente é Assim? | Cazuza

um a cada quatro homens em Florianópolis admite que dirige depois de beber. Assim como na Capital, que tem o maior índice no país, pessoas de outras cidades do Estado assumem o volante sob efeito do álcool. Além de uma cultura que valoriza a bebida, a falta de efetivo para fiscalização ajuda a explicar o fato de a Lei Seca demorar a pegar por aqui

Emerson gasperin

 

 

jovem que estava prestes a se formar e já tinha estágio garantido em uma das maiores empresas de sua área de atuação. O menino que voltava da escola ansioso para mostrar aos pais o boletim com boas notas. O aposentado que iria embarcar para a viagem que planejava havia anos. Aqui você não vai ler nenhum relato de sonhos interrompidos, tragédias anunciadas, vidas ceifadas por motoristas embriagados. Todo mundo sabe que “se beber, não dirija”. Mas ainda tem gente que encara isso apenas como um slogan, não como uma lei.

 

Só para lembrar: o Brasil é um dos 25 países que adotam a tolerância zero para o consumo de álcool por motoristas. Criado em 1998, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) foi alterado em 2008 com a introdução da chamada Lei Seca. Qualquer quantidade de álcool no organismo sujeita o condutor a punições. Até 0,29 miligramas por litro de ar expelido no bafômetro é considerada infração gravíssima (sete pontos na carteira de habilitação), com multa de R$ 1.915,40 e suspensão do direito de dirigir por um ano. De 0,3 em diante é crime, com pena prevista de detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de obter a permissão ou habilitação para dirigir.

 

Ou seja, além dos riscos envolvidos (para si próprio e terceiros), sentar-se ao volante depois de um drinque periga dar uma incomodação daquelas. Mesmo assim, conforme a última pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizada pelo IBGE em 2014, Florianópolis é a capital com mais homens que admitem beber antes de dirigir: praticamente um em cada quatro. Também lidera a estatística entre as mulheres, com 5,8%. No mesmo ano, das 83 mortes no trânsito registradas na cidade, 25 estavam associadas ao álcool.

– Beber e dirigir é cultural. Precisamos de mais campanhas e de mais fiscalização. A verdade é que aqui nós não temos blitze, são ações pontuais. Tinha que ser sistemática, todo o tempo, como no Rio de Janeiro. Se o motorista souber que vai ter blitz, não importa onde, já começa a mudar o comportamento – diz o presidente do Movimento Nacional de Trânsito (Monatran), Roberto Bentes, um carioca de 67 anos que chegou a Florianópolis em 1997.

 

O administrador aposentado do Ministério da Fazenda fundou o Monatran poucos meses após o CTB entrar em vigor. Segundo ele, é uma ong sustentada por recursos dos integrantes. Participa de discussões sobre o trânsito em todo o país e promove campanhas nas escolas, jogos, manuais “para formar consciência”. Quando cita o Rio de Janeiro como exemplo de eficácia contra motoristas embriagados, Bentes não está sendo bairrista: de 2012 a 2014, a Operação Lei Seca carioca reduziu em 12% as mortes no trânsito e em 41% o número de pessoas apreendidas por dirigir sob influência do álcool. Desde que foi implantada, em 2009, a fiscalização parou cerca de 2 milhões de pessoas, aplicou 375 mil multas, apreendeu 76,3 mil veículos e recolheu a carteira de habilitação de 133 mil motoristas.

 

Em Florianópolis, de maio de 2013 a dezembro de 2015 a Guarda Municipal (GMF) fez 25 blitze da Lei Seca. A Polícia Militar Rodoviária (PMRv), 61 em 2014 e 95 no ano passado. É pouco para fiscalizar um terço da frota da cidade anualmente – 71 mil carros –, conforme recomenda a Organização Mundial de Saúde. Os locais das ações são definidos por meio do mapeamento de pontos críticos e denúncias, cada um no seu quadrado: a GMF nas ruas, a PMRv nas estradas estaduais que cortam o município.

– Uma blitz por noite, porque não temos efetivo suficiente para realizar várias simultaneamente. Para uma batida policial, são necessários de 15 a 20 homens. Quando alguém é pego, dois policiais tem que levá-lo à delegacia – justifica o agente operacional da GMF Erminézio Júnior Ribeiro.

 

 

Com a experiência de mais de 50 blitze (para todos os propósitos), Júnior já até consegue identificar um padrão na reação do motorista acusado pelo bafômetro. Inicialmente, conta, o infrator questiona a competência da GMF para aquele tipo de ação. Bem, no último agosto o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que sim, as guardas municipais também estão aptas a fazerem blitze. Esclarecido esse aspecto, o condutor flagrado insiste que está tranquilo porque sabe que não está bêbado e começa a enfileirar desculpas – “foram apenas uns goles”, “eu só estava indo visitar minha mãe a duas quadras daqui”, “com tanto bandido solto, vocês vem prender um trabalhador honesto como eu?”.

 

- Quanto mais elevado o índice de álcool, mais ele vai se exaltando.

 

O passo seguinte do autuado, lista o agente, é ficar prostrado enquanto são cumpridos os procedimentos legais. Mais um tempo e ele passa a refletir sobre seus atos. Não demora muito e vem o choro, acompanhado de tentativas – repelidas, claro – de dar um abraço no guarda. Os mais desaforados chegam a apelar para o manjado “sabe com quem está falando?”,  entregam uma carteira funcional em vez da habilitação (o popular “carteiraço”) ou dizem que vão ligar para algum pistolão para transferir o guarda para o fim do mundo. Nunca ninguém, por mais descontrolado que estivesse, insinuou suborná-lo, garante Ribeiro.

 

– As mulheres dão mais barraco quando abordadas por outra mulher. Por homem, elas respeitam mais – completa.

 

 

comandante do 19o Grupamento da PMRv da capital, sargento Demilson Sebastião Rosa, é outro que tem dezenas, talvez centenas de blitze no currículo. No tempo em que estava lotado no Norte da Ilha, afirma, “juntava o pessoal e fazia quase todos os dias”. Hoje no Sul, lamenta por não ter estrutura para fazer tantas quanto gostaria. A corporação possui nove bafômetros para as operações – o equipamento usado pela polícia brasileira é aferido pelo Inmetro e custa cerca de R$ 7 mil. O oficial confirma as situações vivenciadas pelo colega da GMF e acrescenta: para que a fiscalização tenha resultados mais eficientes, é preciso que haja uma maior integração entre as forças, incluindo o Executivo, “como quando houve aquela onda de ataques do crime organizado aos ônibus (em 2013).”

 

– Mas impunidade é uma coisa que nem campanha nem fiscalização resolvem – observa.

 

Para assegurar que o motorista embriagado seja punido, GMF e PMRv endossam o projeto Motorista Inteligente, lançado nesta semana em Florianópolis. De acordo com ele, o crime seria definido por “dirigir com sinais que indiquem a alteração da capacidade psicomotora do condutor”, e não “dirigir sob a influência do álcool ou outras substâncias”, como na legislação atual. Na prática, significa que a embriaguez passaria a ser caracterizada por sinais externos do condutor, e não mais pela obrigatoriedade de exames para a determinação de dosagem alcoólica (bafômetro, etilômetro, etiloteste ou similares).

 

Desta forma, a recusa do motorista em fazer os exames comprobatórios – baseado no direito de não produzir provas contra si – não mais afetariam a caracterização do crime. Constatada a alteração da capacidade psicomotora, todas as circunstâncias passariam a ser consideradas provas de seu estado na direção do veículo. O acusado é que teria o dever de demonstrar sua inocência.

 

– Não existe uma lei que vá pegar se você não a teme. É inconcebível que uma sociedade permita que o direito individual de um bêbado que mata ao volante seja maior do que o dever do Estado de proteger a coletividade. Nosso projeto enumera 46 sinais que indicam efeito de álcool ou de substância psicoativa, como bafo, falta de memória, fala arrastada, humor instável, confusão mental ou dificuldade para se equilibrar. A presença de sete deles caracteriza o crime. Aí o condutor será levado ao hospital mais próximo, onde terá a oportunidade de comprovar sua sobriedade por meio de exames médicos – explica o autor da proposta, o advogado Sérgio Roberto Back.

 

 

É previsto também que, havendo morte, seria crime qualificado. O condutor assumiria o risco de causar o acidente (doloso), sem direito à fiança, indulto ou anistia. Para ser aprovado como um projeto de lei de iniciativa popular e chegar ao Congresso, são exigidas 1,5 milhão de assinaturas, distribuídas em pelo menos cinco Estados. Mais detalhes e adesões online em goo.gl/iOASym.

 

A chance de a lei – na versão corrente ou nesse projeto que a endurece ainda mais – ser respeitada aumenta se houver alternativas para abrir mão do carro na hora de voltar para casa após tomar umas e outras. No Rio de Janeiro, referência em Lei Seca, basta digitar a origem e destino no site da operação que aparecem opções de ônibus, trem e táxis. Na capital catarinense, táxis à parte, somente seis linhas de ônibus funcionam na madrugada, em horários esparsos.

 

– Só blitze não adianta. As políticas públicas de segurança viária devem incluir a mobilidade – observa a gerente geral das Juntas Administrativas de Recursos de Infrações (Jaris) e aplicação e imposição de penalidades do Detran/SC, Graziela Casas Blanco.

 

Ela também coordena o programa Balada pela Vida, que consiste em duas etapas. A primeira, de caráter educativo, consiste na distribuição de material informativo e testes (voluntários) de alcoolemia descartáveis em bares. Quem está acima do permitido é orientado a nem pensar em bancar o chofer. A segunda é a fiscalização. É uma batalha, convoca Graziela, que requer a participação de todos – casas noturnas, corretoras de seguros, despachantes –, pois “o cidadão tem uma parcela de responsabilidade muito grande em exigir uma ação mais efetiva do governo e das próprias pessoas”.

 

– A falta de transporte público dificulta o cumprimento da lei, sem dúvida. Mas por que a pessoa não pega uma carona, não combina para algum amigo ficar sem beber e ser o motorista da rodada; enfim, por que esperar tudo do Estado? – questiona o sargento Demilson, da PMRv.

 

Bares e casas noturnas, em tese os mais afetados caso o pessoal deixasse de sair por não poder beber e dirigir, ainda relutam em entrar de cabeça na briga – embora, ressalte-se, eles não tenham obrigação nenhuma de se preocupar se seu cliente vai dirigir movido a álcool ou não. No Music Park, complexo que reúne arena para shows e boates na entrada de Jurerê Internacional, por exemplo, o único cuidado é um ponto de táxi dentro do estacionamento. Não há registros de passageiros que deixaram o carro ali mesmo por não se sentirem em condições de dirigir.

 

Cláudia Morriesen

 

torcida dos participantes do Desafio Intermodal, um desafio promovido todos os anos pela Escola Pública de Trânsito de Joinville, é de que chova durante a hora da prova: há, pelo menos, a possibilidade de os motoristas da cidade ficarem mais prudentes com condições climáticas menos favoráveis para a direção. Isso porque o evento (que mede que tipo de veículo é mais eficiente em horário de pico) ocorre durante as sextas-feiras, às 18h, quando a população parece entrar em êxtase — especialmente naquelas que coincidem com o quinto dia útil.

 

Cidade de tradição industrial, Joinville registra o maior número de acidentes por embriaguez logo depois do dia do pagamento — e, com a chegada do fim do mês, as infrações e crimes de trânsito começam a cair. Dinheiro na conta, nesse caso, costuma representar aumento de risco.

Justamente por verificar esse dado, a gerente da Escola de Trânsito, Ana Maria Dias da Costa, acredita que um dos caminhos para a prevenção destes acidentes seja a parceria de ações e campanhas junto às empresas privadas da cidade. No momento, elas ocorrem em apenas uma empresa privada, além da atuação junto aos setores públicos e das escolas.

 

— Sem a conscientização, não adianta lançar multas de “milhões”. A punição só com o aumento dos valores já demonstrou não mudar a situação — avalia a gerente.

 

As estatísticas da Comissão de Ações para Humanização e Segurança no Trânsito (Cotran) de Joinville mostram que, mesmo com o endurecimento da legislação, o número de infrações do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) sobem proporcionalmente ao aumento do número de veículos em Joinville, que tem, atualmente, uma frota de 241.502 automóveis e 53.627 motocicletas circulando na cidade.

 

Ainda assim, os dados do Ciretran de Joinville demonstram uma queda pequena em relação ao número de processos instaurados de suspensão do direito de dirigir causados por embriaguez: em 2011, antes das mudanças no CTB referentes à Lei Seca, o número de processos chegou a 342, enquanto, no ano passado, diminuiu para 117.

 

Para o professor de Direito Penal da Universidade Católica de Santa Catarina, Mário Cesar Felippi Filho, por mais que a legislação tente coibir, na prática os acidentes estão aumentando. É o que ele considera a política de legislação: elevar a pena para resolver o problema, sem outras medidas mais eficazes.

 

— Já ficou claro que a repressão não está funcionando. Esta situação é diferente dos outros crimes, porque ninguém sai de casa com a intenção de se embriagar e matar alguém no trânsito — avalia o professor.

 

Segundo Felippi Filho, os acidentes de trânsito enquadram-se nos casos de culpa consciente: apesar do motorista ter noção do resultado de seus atos, ele acredita que nada fugirá da normalidade. Por isso, é na educação do trânsito que reside a mais importante ferramenta de combate ao problema.

 

Lucas Paraizo

 

 

ktoberfest, Festival Nacional da Cerveja, Festival de Botecos e cervejarias artesanais que são parada quase obrigatória no happy hour durante a semana. Em Blumenau, a cerveja faz parte da tradição alemã. Como há apenas quatro bafômetros na cidade, a fiscalização entre os motoristas que pegam o volante após consumir álcool não acontece com tanta frequência. A Guarda Municipal de Trânsito (GMT), responsável pela maioria das blitze, não faz operações exclusivas da Lei Seca, mas testa motoristas em outras abordagens, como as de checagens de documentos.

Em 2015, a GMT fez 369 blitzes de trânsito na cidade. Nessas, 80 casos foram enquadrados no Artigo 165 do Código de Trânsito: dirigir sob influência de álcool. No entanto, em 37 situações o teste do bafômetro foi recusado pelo condutor. Em 38, o resultado foi positivo e em somente cinco ocorrências o teste foi negativo. O mês com mais testes foi março, quando Blumenau sedia o Festival Nacional da Cerveja. Foram 53 abordagens e 22 motoristas pegos dirigindo alcoolizados. Curiosamente, em outubro, mês da Oktoberfest, somente uma pessoa foi enquadrada nas 26 blitzes realizadas.

De acordo com o responsável pelas fiscalizações da GMT, Tarcísio dos Santos, a guarda não possui estrutura para fazer blitze todos os dias e, por conta, de uma contenção de despesas, menos operações foram realizadas na madrugada em Blumenau ano passado, inclusive durante a Oktoberfest.

– Fazemos o bafômetro no motorista que tem mais sinais de embriaguez, não tem como testar todo mundo. E há problema com os avisos de blitzes. Se eu coloco uma viatura perto de um bar, na hora alguém alerta no WhatsApp e os motoristas desviam – diz.

Ainda segundo os dados da GMT, a embriaguez ao volante foi a causa provável de 209 acidentes durante 2015 em Blumenau, cerca de 4% do total. Ela só fica atrás da imprudência e do excesso de velocidade entre as principais razões. No entanto, os três pontos estão relacionados:

– Imprudência e excesso de velocidade estão diretamente ligados ao álcool também.

A pessoa bebe, o corpo fica leve e o pé pesado – diz a coordenadora do movimento Maio Amarelo em Blumenau, Márcia Pontes.

Das 29 mortes no trânsito registradas na cidade em 2015, quatro tiveram relação comprovada com motoristas alcoolizados.

 

Serviço de motorista ainda é pouco procurado em bares

 

Jânio José de Carvalho é um blumenauense que tem como função garantir a tranquilidade de quem quer ir até a cervejaria Eisenbahn, em Blumenau, e não se incomodar com o carro. Ele é o Motorista Amigo, contratado para levar clientes. Embora ofereça o serviço há três anos, vê que a maioria dos consumidores ainda prefere dirigir na hora de voltar para casa.

 

– Faço uma média de quatro corridas por noite. Depende do dia da semana, mas é só ver o movimento do bar. Não sei se por ego ou emoção, mas muitos bebem e ainda saem dirigindo – conta o motorista de 42 anos, que viu na Lei Seca uma chance de ter um trabalho à noite quando um grupo de amigos o pediu para ser o condutor oficial depois das partidas de futebol.

 

Carvalho trabalha junto da esposa. Quando um cliente pede o serviço para o bar, ele volta dirigindo o carro da pessoa e a mulher acompanha o trajeto em outro carro para trazê-lo de volta. Ele conta que dirigindo à noite encontra algumas blitze. Várias vezes já foi parado enquanto levava clientes.

 

– Nessas horas, o passageiro fica muito feliz de não estar dirigindo.

 

 

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