ntes dos colonizadores europeus chegarem, Santa Catarina era formada por um vasto território tomado por florestas e praticamente inabitado. Errado. Cinco séculos antes de os portugueses avistarem o Brasil existiam povoados indígenas organizados em diversas regiões do Estado, mesmo no interior, longe das praias. Uma pesquisa em andamento, que envolve três universidades da Inglaterra e cinco do Brasil, mostra um retrato da vida na Serra catarinense nos anos 1.000 depois de Cristo.
O achado permite uma das mais fiéis recriações da história de nosso território durante o período histórico Pré-Colombiano na América e Idade Média, na Europa. Indígenas construíam pequenas cidades, plantavam feijão e mandioca, coletavam pinhão e produziam cerveja de milho, bebida que regava as celebrações e os funerais dos chamados Proto-Jê. Eram milhares – apesar de ainda não existir uma estimativa mais precisa – e compunham os 8 milhões de indígenas que habitavam o Brasil antes do descobrimento pelos portugueses.
Esse povo explorava uma diversidade de ambientes no Estado, que englobavam os ecossistemas dos campos de altitude, mata de araucária, Mata Atlântica e as áreas costeiras. As aldeias eram construídas em clareiras no matagal, como ocorre na Amazônia hoje, pelos indícios encontrados por pesquisadores. Mas o ambiente preferido dos Proto-Jê é o da mata de araucária, pois a maior parte dos sítios arqueológicos – de São Paulo ao Rio Grande do Sul – está vinculada a esse tipo de floresta.
Em Santa Catarina, a pesquisa está investigando fósseis e outros artefatos arqueológicos encontrados em um sítio de ritual funerário localizado em Campo Belo do Sul, próximo a Urubici, em parte do território onde hoje funciona a Vinícola Abreu Garcia. Análises indicam que o local começou a ser utilizado no século 13. Funcionava como o cemitério para os indígenas da região, que na tradição dos Proto-Jê é chamado de danceiro.
O nome se refere ao fato de que a morte era comemorada com festas que às vezes chegavam a durar dias nos locais onde eram realizados os enterros dos restos mortais. Os danceiros ficavam em áreas escolhidas com cuidado, sempre altas, para ter grande visibilidade do entorno, pontos de onde os xamãs pudessem observar o horizonte. Outros sítios sagrados, com pinturas rupestres, estão cuidadosamente voltados para o pôr do sol e com a visão de uma cachoeira, escolha ligada a elementos simbólicos da cultura e da religiosidade desses povos.
– A região de Urubici reúne o maior conjunto de sítios rupestres do planalto de Santa Catarina e, em especial, o sítio do Avencal contém máscaras antropomórficas que são únicas. Esse, sem dúvida, pode ser colocado com um dos principais sítios de arte rupestre das Américas, talvez do mundo – explica Rafael Corteletti, doutor em arqueologia pela USP e pesquisador na Universidade Federal do Paraná.
Dados obtidos por meio das investigações arqueológicas sugerem que a produção de alimentos, somada à caça, à pesca e à coleta de outros recursos naturais, em especial o pinhão, permitiu que essas populações permanecessem o ano inteiro na Serra, sem migrar para o litoral em busca de alimento no inverno, por exemplo. Tinham uma vida bem ativa, em contato com a natureza durante os períodos de temperatura mais alta, mas buscavam refúgio nas casas subterrâneas e nos estoques de comida quando o frio chegava.
Os indícios são complementados por outras evidências, como a construção de grandes e bem planejadas aldeias de casas subterrâneas, além da criação de uma paisagem estruturada no entorno de centros funerários. Construir as residências de forma escavada na terra foi uma forma de se proteger do vento gelado do Planalto Serrano. Era uma característica exclusiva dos Proto-Jê, que acabou se perdendo na tradição de seus descendentes após a chegada dos colonizadores europeus.
s Proto-Jê do Sul do Brasil são identificados dentro de uma cultura conhecida como tradição Taquara-Itararé, que engloba povoações que usam cerâmica, pedra lascada e polida, arte rupestre por diferentes tipos de sítios arqueológicos com arquitetura em terra, como são exemplos as aldeias de casas subterrâneas, os montículos, as plataformas que eram usadas para cremar os mortos e as praças de cerimônias funerárias, os danceiros.
O prefixo “proto” é utilizado para englobar nessa tradição todos os ancestrais dos atuais grupos Jê do Sul – os índios xoclengue e os caingangue, que estão até hoje no Oeste de Santa Catarina e em Misiones, na Argentina.
As provas mais antigas dessa tradição datam de 270 anos antes de Cristo, registros arqueológicos encontrados nas áreas dos rios Pelotas e Canoas em Santa Catarina.
A cerâmica dos Proto-Jê servia tanto para o preparo quanto para o consumo de alimentos ou bebidas. Por meio de uma análise científica chamada tafonomia, que identifica o tipo de grão de amido encontrado nos potes, os pesquisadores descobriram a forma como os alimentos eram preparados pelos indígenas: podendo ser cozidos, assados e, em alguns casos, até fermentados. Já sabem agora que eles faziam cerveja de milho e sopas de feijão com mandioca, por exemplo.
Mas a simbiose com a natureza não era total. Eles provavelmente praticavam a agricultura de coivara, ou seja, cortavam pequenas clareiras e queimavam a mata, para depois plantar. A prática é comum em outros povos nativos do Brasil e mostra que já realizavam alguma espécie de manejo dos recursos naturais que cercavam as aldeias.
Nas duas próximas páginas, você vai ver como era um pouco da vida dessa população.
A reconstrução é baseada em informações fornecidas pelos pesquisadores para retratar o cotidiano desses ancestrais catarinenses.
PROTEÇÃO
Como armamento para caçar animais e fazer guerra com outros grupos, tinham arco e flecha e lanças feitas em madeira, além de machados de pedra polida e lascada, usados como ferramentas
CAÇA
Caçavam animais de vários portes, desde lebres até antas
TELHADO
O material usado varia de acordo com a região. A cobertura podia ser feita com junco, capins ou até mesmo esteiras de taquarinha
CASAS
Eram feitas no subsolo e tinham tamanhos e profundidades variados. As maiores tinham em torno de 15m de diâmetro e 4m de profundidade. Podiam abrigar famílias inteiras
AGRICULTURA
Cultivavam na Serra mandioca, feijão, inhame, milho e abóbora. Abriam uma clareira na floresta, ateavam fogo no mato cortado e então plantavam todos os tipos de planta misturados
PIRA FUNERÁRIA
Os Proto-Jê cremavam os mortos antes do ritual de sepultamento
CONSTRUÇÕES
Nem todos os “buracos” eram casas, pois alguns eram usados como fornos para o preparo de comida ou cerâmica, além de outros servirem de silo para armazenar grãos colhidos nas plantações
DESPENSA
Os cestos também serviam para armazenar milho, pinhão, feijão e outros alimentos
BEBIDA PRÓPRIA
Os Proto-Jê fermentavam o milho para fazer uma espécie de cerveja, que era bebida nos festejos da tribo
COZINHA
Usavam como utensílios domésticos hastes, espetos, gravetos de taquara ou madeira, pratos e recipientes de cestaria, lâminas em pedra, além de vasilhas e panelas de cerâmica. Entre os alimentos preparados estavam sopa de feijão com mandioca e pão de pinhão
FRIO
Como seus parentes mais recentes, os Kaingang, eles faziam ponchos com tecido trançado de fibras de urtiga brava. No inverno, passavam a maior parte do tempo nas casas para se aquecer
PINTURAS
A arte rupestre também fazia parte da cultura. Eles costumavam desenhar formas geográficas, como quadrados e triângulos
ESCADAS
As casas tinham rampas ou degraus. Construções mais profundas tinham escadas
PINHÃO
O pinhão era um alimento importante para os indígenas que habitavam a região. Festas coletivas eram programadas para o tempo da colheita
SEPULTAMENTO
O funeral envolvia diversas pessoas e os homens sagrados da tribo. O ritual podia durar vários dias
DANCEIROS
Eram construídos fornos de pedra sobre o muro de terra para fazer alimentos durante o festejo de morte. Na cultura deles, o enterro era uma celebração
investigação arqueológica desenvolvida por pesquisadores de oito universidades do Brasil e do exterior está mapeando ocupações dos Proto-Jê desde o litoral catarinense, no Sul, até Misiones, na Argentina. O objetivo é descobrir como viviam os indígenas para desmentir a percepção amplamente difundida até recentemente de que essas sociedades eram de pequena escala, igualitárias, incapazes de construir aldeias bem planejadas e elaborar a arquitetura de uma cidade com os espaços cerimoniais.
Os sítios arqueológicos encontrados eram vistos como de curta duração de ocupações não planejadas. Trabalhos mais recentes mostram que existiam comunidades locais estruturadas. O desafio agora é entender, por exemplo, a partir de que ponto os indígenas começaram a se espalhar por Santa Catarina e outros Estados. Até agora, o Planalto Serrano é onde foram encontrados os principais indícios de ocupação.
Da mesma forma, a natureza e a escala do impacto humano no passado nesses ambientes ainda não foram reveladas. Sabe-se que em torno do ano 1.000 depois de Cristo houve uma expansão rápida da floresta de araucária. Na teoria mais aceita hoje, ocorreu por resposta ao aumento da temperatura e das chuvas.
A nova teoria do grupo de trabalho é que isso não ocorreu apenas por causa da mudança climática, mas também em função da atividade humana. Como o pinhão era importante em vários aspectos para os Proto-Jê – econômicos, políticos ou para rituais – devia ser transportado para diversas aldeias diferentes dessa cultura.
ma equipe internacional multidisciplinar foi montada para buscar um desenho que faça sentido nesse quebra-cabeça. A ela cabe a tarefa de compreender a criação e a transformação das chamadas paisagens Jê do Sul e relação delas com o surgimento da complexidade social durante os últimos dois milênios.
– Estamos mapeando áreas de encostas que tenham essas mesmas características encontradas na Serra. Nos trabalhos deste primeiro semestre, já encontramos sítios em Tubarão, Braço do Norte e Santa Rosa de Lima e temos informações de que há formações semelhantes em Jaguaruna e Laguna – conta a diretora do Grupo de Pesquisa em Educação Patrimonial e Arqueologia da Unisul, Deisi Scunderlick.
São quatro áreas de pesquisa intensiva em Santa Catarina: a região costeira de Laguna e Jaguaruna, a região da encosta da Mata Atlântica em Rio Fortuna, a região de Urubici, além de Campo Belo do Sul e Lages no planalto das araucárias.
O material coletado nos sítios arqueológicos é enviado para a Inglaterra para passar por análises que indiquem a composição e a idade das peças. São materiais líticos, cerâmicos, macrobotânicos e ósseos.
As amostras de sedimento retiradas de banhados nas sessões de campo de 2014 e de 2015 foram enviadas para a Universidade de Reading, onde será feita a análise de pólen e datações para reconstrução da história da vegetação desses locais. A expectativa é que já tenham alguns resultados parciais no primeiro semestre de 2016.
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ecuperar a história dos povos que ocuparam a Serra antes da chegada dos colonizadores pode ser importante não só pelo aspecto histórico e antropológico do trabalho. As informações podem ajudar a compor um roteiro que sirva como atrativo adicional para esses sítios arqueológicos e até ajude na preservação.
– Pode vir a agregar valor às propriedades privadas onde estão localizados. Muito pouca gente entre a população local conhece e praticamente ninguém que vem visitar a região sabe da história – afirma o guia de turismo José
Marcos Hack, que também é proprietário da agência SerraSul Ecoturismo.
Ele relata que já leva turistas para conhecer áreas de pinturas rupestres nos passeios por trilhas. Segundo Hack, é normal as pessoas demonstrarem interesse pelo assunto, mas que há pouca informação estruturada como um atrativo turístico, além da dificuldade de ter que pedir permissão aos proprietários das áreas para levar os visitantes.
Como referência também para o ecoturismo em Santa Catarina, resgatar esse legado histórico pode ser mais uma oportunidade para reverter a sazonalidade do turismo regional. Seria uma forma de garantir a ocupação de hotéis e pousadas o ano todo, que hoje dependem dos atrativos do inverno.