30 anos  da  rebelião

Bastidores em 
alta tensão
Depois de 30 anos do mais tenso e prolongado motim do sistema prisional catarinense, na Penitenciária de Florianópolis, o Diário Catarinense localizou três reféns da história policial que causou apreensão em toda a Capital no dia 25 de julho de 1986. O procurador do Ministério Público de Santa Catarina Odil Cota, a assistente social do Presídio Masculino Roseana da Silva e o coronel aposentado do Corpo de Bombeiros Silvio Venzon recordam as horas de angústia, pavor e incerteza no anfiteatro dentro da cadeia, além da aflição durante o sequestro na fuga dos detentos. Ao recapitular os bastidores, a reportagem reascende também o futuro do espaço prisional localizado no coração da Capital, em meio a uma área residencial e valorizada, cuja desativação não sai do papel e frusta os últimos governantes estaduais.
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iderados por David Martiniano da Silva, o Davizinho, Claudionor da Silva, o Nego Lídio e Luiz Albertino Félix, o Cinderelo, um grupo de detentos aproveitou um evento festivo na Penitenciária para render autoridades e servidores.

Após negociação que começou às 9h45min e se encerrou às 18h20min, 17 presos fugiram em três carros pelo portão da frente da prisão, na Agronômica, empunhando armas e levando cinco reféns em direção ao Sul e Norte do Estado.

Nas três Paratis cedidas pelo governo, com armas apontadas na cabeça, Cota, Roseana e Venzon serviram de escudo humano para os criminosos na escapada cinematográfica em Florianópolis que seguiu em direção a outros municípios. Além dos três, houve mais dois reféns no comboio: o então diretor da Penitenciária, coronel Mauri Vieira e o chefe de segurança, Alicínio Wagner, ambos falecidos.

Passadas três décadas, os três personagens que ficaram nas mãos de presidiários ávidos pela liberdade seguem morando na Grande Florianópolis e apenas um está aposentado. Eles têm um ponto em comum ao relembrar o violento e traumático episódio: o alívio de a polícia não ter invadido a cadeia ou confrontado os presos na fuga. É essa a razão pela qual acreditam que não morreram e puderam se manter calmos diante do nervosismo, a adrenalina e o espírito de nada a perder que impulsionaram o bando, a maioria formado por assaltantes e ladrões de carros.

— Não como e nem posso sentir o cheiro de bolacha maria que lembro de tudo — revive Roseana, 59 anos, ao lembrar da comida comprada pelos fugitivos em um boteco no caminho em direção a Lages, quando a BR-282 estava em obras e ainda não era asfaltada.

Na Serra, Roseana conta que um deles não hesitou em tirar o agasalho e oferecer a ela ao testemunhar o frio sentido pela assistente social. Ainda no cárcere, Roseana se ofereceu a permanecer entre os reféns para facilitar as negociações e garantir que a rebelião não terminasse de forma trágica.

— Eles pararam em Tijucas, na casa da mãe de um deles. Ali pegaram bebida, comida. Era noite, hora do Jornal Nacional. Lá do meu carro, algemado, eu vi dando a notícia — memorizou o procurador Cota, 69 anos, na época secretário-adjunto da Justiça e a mais alta autoridade que estava na Penitenciária durante a rebelião.

De madrugada, a seis quilômetros em uma estrada para dentro da BR-101, em Joinville, veio o alívio mais esperado: a hora da libertação, quando se emocionou ao agradecer pela vida e a chance de reencontrar os familiares.

— Ali eu tive tempo de olhar o céu, respirei, as estrelas, a lua. Aí que eu lembrei da minha família.

A polícia seguiu os criminosos à distância para evitar reações e confrontos que pudessem colocar as vítimas em perigo. Libertados depois de mais de 15 horas em diversos pontos do Estado, os reféns sobreviveram praticamente ilesos, enquanto os bandidos se embrenharam numa escapada seguida de caçadas com capítulos de tiroteio e acidentes.

— Fui brigando com eles o tempo todo. Quando eles bobearam nos jogamos e terminamos lá embaixo batendo numas árvores. Depois fomos atrás de um joalheiro e conseguiram abrir as nossas algemas — ilustrou Silvio Venzon, 78 anos, coronel da PM e juiz militar aposentado.

A sensação de alívio que atingiu os catarinenses com as cinco vidas salvas contracenou com os dias seguintes de cerco policial em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Houve mobilização de policiais dos dois Estados na operação. Bloqueios foram montados nas rodovias e aeroportos foram alertados para não deixar aviões à disposição. Havia temor que tentassem voar para o Paraguai até pistas clandestinas. Em até 30 dias, todos foram recapturados, entre eles Nego Lídio, pego quando descansava na casa da mãe em Palhoça. Um fugitivo, Valdir Silveira, foi morto em um tiroteio com a polícia em Balneário Camboriú.

Hoje, servidores do sistema prisional desconhecem o destino da maioria dos 17 ex-presidiários. O mais conhecido deles, Luiz Albertino Félix, o Cinderelo, se tornou folclore pelo suposto espírito conquistador que o tornava ainda mais frequente nas manchetes policiais dos jornais da época. Cinderelo cumpriu as penas, está livre com a Justiça e vive no Estreito.

Mudança de procedimentos

A rendição pelos presos aconteceu na abertura da semana do reeducando, confraternização em que eram premiados os detentos com melhor comportamento. Havia clima festivo, convidados e cerca de 200 presos sem algemas no anfiteatro.

Odil Cota, secretário-adjunto da Justiça, discursava sobre ressocialização. Ao final, o grito ameaçador inesperado de um dos presos: “Agora!”

Armados com estiletes, os presos renderam facilmente os reféns, sem nada que agentes pudessem ter feito. Uma cena como essa dificilmente se repetiu depois disso. No ambiente prisional, o motim de 1986 mudou os procedimentos de segurança e de convivência entre detentos com a sociedade.

Visitas de terceiros nas prisões não foram mais permitidas e desde então só entram no cárcere familiares, servidores da segurança e serviço, advogados, profissionais religiosos e de assistência educacional. Detentos passaram também a receber regras nos atendimentos, feitos em salas específicas e com eles sempre algemados.

Atividades festivas abertas em pátios e áreas grandes dificilmente se repetiram, assim como se destituiu com o tempo o Esperança Futebol Clube, time de presos que saía para jogar fora da penitenciária.

Como tudo aconteceu
ENTREVISTA

Odil cota, um dos reféns

Se um policial fosse dar de herói, seria a morte

Como foi o começo daquele dia?

Recebi o telefonema de manhã se eu podia ir na penitenciária, que ia ter uma solenidade com os presos e se eu poderia dar uma palavra aos presos. Ia ser entregue coisa de bom comportamento, colchões, comida, ia ter visitas. Eu fui. Imaginava que ia falar com os presos recuperados e foi muita surpresa quando vi aqueles presos todos lá. Estava com o espírito meio desarmado e naquele tempo completamente desprevenido. Tinha falado umas palavras boas, de recuperação, por cinco minutos. Parecia que havia um sinal. Quando eu acabei a minha fala eles gritaram e nos pegaram. Aquilo era para estar cheio de autoridades, que não estavam, ainda bem. A autoridade mais alta era eu. Era um plano de fuga que já haviam arquitetando.

 

Teve ato de violência?

Foi violento porque eles vieram, deram chave de braço e com estilete no pescoço. Aí houve uma gritaria. Lembro que esse Davi meio que comandava, determinava aos agentes, os poucos que tinha, e não estavam armados, para que saíssem. Foi saindo todo mundo e ficamos na sala, 17, 20 presos. Eles tinham rádio lá e começaram a falar. No início, ao abrir a negociação foi tenso, fiquei só observando. Eles estavam lidando com o diretor penal para a negociação do que queriam: sair e fugir. No começo a negociação não evoluiu. Senti que eles podiam matar o diretor. Depois eles permitiram que eu falasse com as autoridades. Aí perto do meio-dia, fui falar, cobrei deles se queriam negociar ou matar todo mundo e o procurador-geral de Justiça negociou. Aí evoluiu e foi até o final da tarde.

 

De quem foi a decisão de soltar os presos?

Acho que foi do procurador-geral de Justiça, João Carlos Curti. Naquela decisão de se invadia ou não (a polícia) - e se invadisse haveria mortes de presos, familiares ou de policiais. Então essa decisão foi tomada por delegação do governador, secretário, do procurador... Se invadisse seria muito traumático e talvez eu não estaria aqui falando com vocês. Eles chegaram lá dentro quando as negociações não estavam evoluindo, chegaram a anunciar que eles iam matar e jogar no pátio para mostrar que eles não estavam brincando. Nunca senti medo, eu tinha que ficar alerta para nada ser encerrado, nem dos policiais, negociadores, eu, os próprios presos. Se matassem o primeiro refém a gente sabe que não saía mais ninguém. Disse: ‘ó vamos com calma porque se morrer um morre todos’. E aí foi feita a negociação, deram as armas, saímos em três carros. O carro em que eu estava com o Cinderelo saiu na frente. Todos passaram da ponte e viraram para o Sul do Estado. Na altura de Palhoça, o Cinderelo já fez um cavalo de pau, virou o carro, se escondeu atrás de um caminhão e foi para o Norte e os outros carros seguiram para Sul. Eles pararam em Tijucas, na casa da mãe de um deles. Ali pegaram bebida, comida, era de noite, a hora do Jornal Nacional. Lá do meu carro algemado eu vi o Jornal Nacional dando a notícia. Eu vi que eles ficaram vendo.

 

Pensou em tentar fugir?

Não dava. Eles tinham metralhadora. Ficava um vigiando o tempo todo. E dali nós viemos até chegar em Joinville. Teve várias passagens lá. A Polícia Militar e a Civil estavam sempre próximos, mas não chegaram, não abordaram. Porque se abordasse a primeira pessoa a morrer seria o refém, sem dúvida. Eles queriam que a polícia sumisse e quando a polícia desapareceu deles, ali perto da curva do arroz, na BR-101, entraram alguns quilômetros para dentro e me soltaram. Ali foi momento de tensão porque um deles veio falar comigo. Eles ficaram conversando, os seis, decidindo o meu destino. Ali eu imaginei que eles pudessem me matar. Imaginei sair correndo, mas eles tinham metralhadora.

 

Quantos estavam no carro com o senhor?

Estávamos em sete no carro, seis e eu na Parati, o Cinderelo no volante, o Davizinho num lado e o Quica no outro. Os três na frente. Atrás tinha outros que não conhecia. Eu ficava no meio.

 

O que eles diziam?

Era tenso quando a polícia aparecia. Na saída da penitenciária foi o momento mais tenso. Eles estavam com as armas preparadas, o revólver o tempo todo na minha cabeça e se a polícia viesse ia ter consequência.

 

Na sua cabeça havia obviamente a torcida para que a polícia não intervisse?

Sim. Eu sabia que um policial que fosse dar de herói ali era a minha morte. Eles tinham que estar muito bem comandados para não fazer qualquer coisa .Eu tinha três possibilidades de morrer: a primeira se a polícia intervisse e houvesse tiroteio; a segunda aquele danado do bandido com o revólver na minha cabeça que podia disparar sem querer - até falei pra ele ‘fulano tu vai me matar aí sem querer’ -, e a outra pela 101, pois eles saíram feito louco dirigindo. Pisavam bem. Não vou elogiar o Cinderelo no volante, mas era bom mesmo. Houve esse momento na hora de soltar. Ele veio e disse que iam cumprir o que haviam prometido porque estavam se sentindo seguros. Eu disse que não esperava outra coisa, mas ele disse que eu ia passar por um pequeno desconforto porque eles iam me algemar numa cerca que tinha lá. Eu disse tudo bem, mas que não precisaria me algemar porque eles estavam cumprindo a palavra deles e eu cumpriria a minha. Disse que dava um tempo para eles desaparecerem e eu ficaria quieto ali sem algema que seria a mesma coisa. Ali eu tive tempo de olhar o céu, respirei, as estrelas, a lua. Aí que eu lembrei da minha família. Durante o sequestro, não sei se eu fui muito frio por ser promotor de júri, lidar com eles, eu nunca senti medo, senti preocupação, queria que tudo saísse bem e saiu.

 

O senhor lembra quem lhe socorreu?

Eu devia estar a uns cinco, seis quilômetros da BR-101 para dentro, fui andando, de madrugada e não tinha pressa nenhuma de chegar na BR. Porque eu tinha medo que eles voltassem se encontrassem a polícia. E assim que eu cheguei na BR-101 já vinha um carro da polícia. Aí aquela emoção. Era de Joinville, era promotor em Joinville. Pedi a polícia para me deixar na casa da minha mãe e depois me trouxeram a Florianópolis. Depois foram todos presos. Houve uma lição de que o sistema penitenciário estava mudando. Mudou mas não mudou muito. Hoje os presos são mais perigosos.

 

Em algum momento eles atiraram durante a negociação?

Não. Ficavam em pé andando no meio deles. Estavam armados. Houve apreensão, depois ficou um pouco mais solto. Teve problema com o tipo do carro. Sei que perto das 18h começamos a sair, passar pertinho da polícia, as pessoas chorando, parou a cidade. Os carros saíram pela Beira-Mar, as pessoas só olhando, não tinha o que fazer, as rádios transmitindo. Eu tinha medo de algum policial herói que desse um tiro e colocaria tudo a perder. Em Itajaí, Guaramirim, a polícia se aproximou, rodaram por dentro de Joinville; Acho que eles queriam ir para o Paraná, mas não se sentiam seguros. No meu carro o líder era o Davizinho, notava que ele tinha ascendência sobre os outros.

 

Havia conversas no carro?

Eles conversavam de tudo, falavam da família deles, reclamavam do tratamento na penitenciária, faziam planos de fugir, de ir para o Paraná. Ameaçavam só quando a polícia se aproximava, aí botavam a arma na cabeça. Estavam assustados, gritavam quando a polícia se aproximava: ‘Dr. fala com eles’. teve uma hora que a polícia se aproximou em Joinville, perto do rio Cubatão, chegou pertinho e eu falei: ‘Aqui é o secretário, estou bem, nós vamos sair, eles não vão fazer nada se os senhores não fazerem nada’. A polícia foi muito competente.

 

Foi o episódio mais difícil em sua vida?

Foi. Episódio marcante. Levo como experiência e dou muito valor pela negociação. Quer queira, não queira, a gente pensa muito nesse valores, o povo assistindo, ‘ah vão soltar esses bandidos por causa dessas cinco vidas, mas tínhamos famílias’.

 

Já se falava na época em desativação da penitenciária?

Já se falava em comprar terreno, em Biguaçu, em Palhoça. Sempre a dificuldade muito grande de se conseguir terreno. A sociedade tem que permitir esses presídios. Gosto de presídios pequenos. Cada comarca tem que ter o seu presídio. Essa da Trindade já devia ter sido desativada há muito tempo. Não sei como os governos não conseguem. Era meta do Amin (Esperidião, ex-governador), foi meta do Luiz Henrique (da Silveira, ex-governador), do Pedro Ivo (Campos, ex-governador). É de todo mundo e não se consegue. Ali não tem condições. Isso é um barril de pólvora. Acho que é até administrado com certa competência de não acontecer coisas mais graves, não é lugar para estar.

 

Teve algum contato com esses presos depois?

Não, acompanhei pelo jornal e não tive mais contato. Aliás só fui entrar de novo numa penitenciária recentemente, em Lages.

Depoimentos
Refém Roseana Silva, 
assistente social

“Vi os presos correndo numa coisa violenta com estoques nas mãos, pensei que fossem pegar os presentes. Vi correria tremenda. Anotei em papel as reivindicações: carro, armas, armas, armas e fugir. A PM cercou a penitenciária. Os 20 presos pediram roupas, deram roupa civil a eles. Um preso, o Nego Lídio, gritou: ‘ninguém troque uma peça de roupa na frente da Roseana’. Conhecia todos os que estavam ali. Eram líderes, pessoas que não tinham medo de nada, enfrentavam qualquer situação, fuga era coisa cinematográfica para eles. Todos os reféns foram algemados, eu fui a única que não foi. Amarraram o seu Alicínio (chefe de segurança) com o meu lenço de seda. Quiseram que eu saísse, mas pensei ‘não vou fugir’ e me ofereci para ficar para negociar. Senti que estavam muito violentos e desesperados. Diziam ‘vamos matar os reféns’ e se ameaçavam entre si também. Tinham 20 presos ali, mas só iriam levar 17. Foi uma loucura, era trânsito, militares em volta todos armados, o meu medo era que alguém se desesperasse e atirasse. A polícia sempre atrás, o nosso medo era esse. O coronel Mauri Vieira pegou dinheiro do bolso e deu para eles compraram bolacha maria e refrigerante. Não sabiam para onde iriam. Em Trombudo queriam assaltar. O mais me deixava nervosa é que eles corriam mui, pensei que ia morrer de acidente, vou morrer e vão me jogar numa grota, quem vai me encontrar? Entramos numa rua sem saída, pararam, a polícia chegou, os policiais saltaram dos carros, o coronel gritou: ‘temos que mostrar que os reféns estão aqui’. O nosso medo era que os carros fossem metralhados. O preso engatilhou o 38 na minha cabeça e disse ‘grita se não eu te mato’. Era como se fosse um filme de perseguição policial, corrida maluca. O coronel Mauri pediu para me soltar para que saltasse e falasse para a polícia parar de perseguir. Aí falei ‘deixa eles irem embora, não adianta’. Todos voltaram para a penitenciária, alguns tive contato de novo, entrevistei. Trouxe muita tristeza, angústia, a minha família sofreu muito”.

Refém Silvio Venzon, 
coronel aposentado da PM

“Um sequestro nessas proporções aqui... Todos foram revistados minuciosamente para prevenir e ninguém tinha nada. No outro dia de manhã, na solenidade, abrimos as celas e eles foram direto para a festa. É o xis da questão: como eles tinham as armas? Descobrimos que alguém de dentro forneceu a eles. Com certeza alguém sabotou, mas não deu para descobrir. O clima tava bom, havia reclamação da comida, mas tinham todas as regalias, eram tratados da melhor maneira possível, jogavam bola, tinha horário de sol, trabalhavam. O Cinderelo era inteligentíssimo, desconfiamos que ele liderou. Já sabia que o Vilela tinha um revólver no bolso e vou alegar que ele tinha posto mais alto que o meu para ele ir e desaparecer com a arma. Se aparecesse arma ali naquela hora... Fui brigando com eles o tempo todo, velocidade, queriam agredir a Roseana, para ela avisar. Entre Fraiburgo e Videira, depois que botaram nós dois num local deserto, eu e o Alicínio (chefe de segurança) falamos ‘acho que é agora que vão dar de jeito de nós, mas não vamos nos entregar de graça. Era 2, 3 horas da madrugada, o frio cortava, o carro começou a parar o desempenho, eles pararam na borda de um morro, lá embaixo passava o rio do Peixe. Quando eles bobearam nos jogamos e terminamos lá embaixo batendo numas árvores. Eles vieram, olharam, olharam. Esperamos uma meia hora e subimos de volta, tava garoando, tudo molhado. Quando chegamos em cima veio um carro, nos jogamos de volta, aí levamos mais uma hora para chegar em cima e não era eles. Depois fomos caminhando na estrada até Fraiburgo, qualquer coisa que aparecia a gente se escondia achando que eram eles de volta. Em Fraiburgo vimos uma casa com fumaça na chaminé e batemos. Fizeram a gente entrar, serviram café, foi um trabalho tomar com a mão algemada, brincamos barbaridade com o cachorro que tinham. Levaram para a cidade, na delegacia e batalhão, depois foram atrás de um joalheiro e conseguiram abrir as nossas algemas. No caminho para Curitibanos encontramos os dois armados a pé pelo lado da rua. Passamos quietinho, pegamos mais policiais e prendemos os dois; Trouxemos presos até Curitibanos, deixamos eles lá para evitar que apanhassem se voltassem naquele momento a Florianópolis. Não sei de quem foi a decisão de negociar, dar armas, carros, mas fizeram o certo. Hoje em dia nem pensar. Pelo que a gente vê e lê, eles largaram o coração, estão indo embora, voltam e atiram na cara do cidadão”.

Dejair Vicente Pinto, 
65 anos, coronel da reserva da Polícia Militar, atual ouvidor-geral do Estado, na época era capitão da PM e após a rebelião assumiu a direção da penitenciária

“Foi a maior rebelião com fuga maior de presos, por envolvimento de armas e reféns levados na fuga. Os presos eram de SC, ficavam por aqui e foram recapturados até 30 dias depois por aqui, as armas foram todas recuperadas. Depois, se cortou eventos tradicionais em que havia demais contatos das pessoas nas prisões com o preso. Um ponto importante é que possibilitou análises de situações voltadas à segurança, proibiu eventos de caráter político e social nas prisões com a presença de terceiros fora do contexto. Criou disciplina. Quando assumi a direção encontrei funcionários em estado de pânico, medo com a situação criada ao longo dos anos e massa carcerária estimulada a fazer esse tipo de situação. Ficamos depois de um período de 10 anos sem ter grandes rebeliões. Havia cerca de 400 presos na penitenciária, não era superlotação e cada preso ficava sozinho numa cela. Os PP (psicopatas pesados) eram um problema. Já se falava na desativação. Por sinal, o grande problema da penitenciária é o fantasma da desativação. Está para sair dali há mais de 40 anos e por isso não se investe na segurança. A frente é frágil, atrás muralha nenhuma e há facilidade de escapar.

Euclides da Silva, 
58 anos, atual diretor do Presídio Masculino e agente penitenciária há mais de 30 anos

“Foi a primeira situação que a gente passou de uma fuga planejada, teve repercussão maior. Eu estava no dia de folga, fui chamado para a unidade, o clima tava muito tenso. Era a semana do sentenciado, quem tinha a cela mais limpa, melhor desempenho no trabalho, havia apresentações. Toda a imprensa em cima, na expectativa, na esperança que iam liberar refém, se ia ter tiroteio, se a polícia ia cercar. Na época o preso era atendido na sala apenas acompanhando pelo agente de algema. A partir de então ficava na cabeça de todo funcionário que aquela ocorrência ia se repetir. Os presos que comandaram foram o Cinderelo, o Nego Lídio. Na época houve até escolha dos reféns. Foi tudo planejado de forma silenciosa. A Roseana (assistente social) tinha mais possibilidade de negociar para que não houvesse nenhum ato mais grave com refém. O agente entrava e ficava no fundão, na parte interna, só voltava no outro dia. Não havia celular. O sistema prisional caminhou em passos lentos, mas melhorou muito. Foram construídos puxadinhos, a central de observação e triagem (COT), central de triagem da trindade, ala de segurança máxima, presídio feminino que era alojamento semiaberto. Apesar de tudo, nossa penitenciária é muito mais segura hoje”.

Leandro lima, 
 atual secretário-adjunto da Justiça, agente penitenciário há 28 anos, trabalhava num banco na época

“Não foi uma rebelião, não teve porta queimada, colchão queimado. Agora, não se teve outro evento com grau de tensão tão elevado. Em 1988, quanto entrei, o fantasma desse evento de 1986 ainda pairava nos corredores, turmas, professores. O Alicínio (Wagner, chefe de segurança da penitenciária), falecido, foi professor e alertou muito sobre a expressão “guento” e a gente não entendia direito, falavam de maneira muito assustada que a gente tinha que se preparar para uma situação do tipo “guento”. Lendo livros de registro antigo tinha ideia do pavor que foi. De longe evento de maior tensão que já se teve registro em SC, em função de que os presos conseguiram dominar a penitenciária de um jeito em que de repente havia reféns, carros, armas fornecidas pelo Estado. Foi acontecendo diferente de rebelião, quando o estado explode e depois diminui. Essa situação foi ao contrário, evoluindo lentamente para o máximo, diferente da rebelião que começa no máximo e vai distensionado. Houve bloqueios na ponte, a população atônita, todo mundo apavorado que invadiriam casa de alguém, se haveria assalto de banco, ninguém sabia o que ia acontecer. Os presos tinham um plano muito bem montado, planejamento era a fuga, nem que isso ensejasse um sequestro. Serviu para remodelar o sistema prisional catarinense, os atendimentos coletivos, as festas coletivas, todos foram suspensos e nunca mais retornaram. O único evento que perdurou era a missa que acontecia aos domingos”.

Seis atos da fuga
 Nos dias que se seguiram àquele 25 de julho de 1986, uma caçada se estabeleceu pelas estradas de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Todos os acontecimentos foram registrados nas capas do Diário Catarinense até meados de agosto
O fantasma da desativação Projeto quer transformar complexo prisional em área de lazer, mas depende de novos espaços para os presos em outras cidades
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ogitada há mais de três décadas, a desativação do Complexo Penitenciário da Agronômica, onde fica a Penitenciária de Florianópolis, no coração da Capital, está longe de acontecer. E o pior: nos 86 anos de existência do local, as alas, a população carcerária e as fugas só cresceram – envolvidas poruma área residencial cada vez mais urbana e valorizada. Mais de 2 mil presos estão abrigados nas unidades prisionais superlotadas, velhas e degradantes que compõem o complexo. Há até celas-contêineres medievais avaliadas como subumanas pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos e pela Justiça e o Ministério Público de Santa Catarina.

Ao longo dos anos, a população conviveu com rebeliões – uma das maiores também foi em 1986, em dezembro, com invasão da polícia ao prédio e a morte de um detento – e fugas, ao menos duas delas em massa, impondo medo aos moradores nos arredores. A maior da história prisional do Estado foi em fevereiro de 2011, quando 78 detentos escaparam. A segunda, no mesmo ano, em junho: 72 detentos fugiram. Nas duas situações eles correram pelos fundos do complexo, onde não havia cerca e bastava correr pelo matagal em direção aos morros da região. Denúncias de superlotação e condições precárias de infraestrutura são rotina.

A penitenciária está incluída em Área de Preservação Cultural Histórica (APC-1) no plano diretor municipal e, em virtude disso, é considerada imóvel de excepcional valor arquitetônico, artístico ou histórico a ser totalmente preservado, tanto interna como externamente. Para a Secretaria da Justiça e Cidadania (SJC) de Santa Catarina, o Complexo Penitenciário da Agronômica deverá se transformar em uma imensa área de cultura e lazer, com cafés nos prédios históricos e palcos de exposição. O espaço também abrigaria a própria sede da SJC. Os planos são da secretária Ada de Lucca, mas, para isso, é necessário transferir os mais de 2 mil detentos. Como o sistema prisional está superlotado, a remoção se concretizará apenas depois que novos presídios forem construídos.

“Prédio não vai segurar por muito tempo”, diz secretário

Por enquanto, há indicativos de que o complexo permaneça na Agronômica. Os projetos demoram a sair. O mais recente, com edital encerrado em julho, envolve investimentos de R$ 324.727,68 em reforma e ampliação parcial da penitenciária, do prédio da administração, da casa velha, da passarela e das guaritas, tudo feito pelo Estado. A justificativa para as melhorias é que elas atendem a pedidos do MP e da Vigilância Sanitária e abrangem serviços como a recuperação do telhado e obras para evitar infiltrações no teto, nas paredes e nos corredores das carceragens.

Em relação à segurança, as autoridades afirmam que o local ainda apresenta bons resultados, que houve acréscimo em alas novas e investimentos em grades novas (em 1986 as portas das celas eram de madeira).

– A desativação é necessária por questão de logística, estratégia e segurança. O prédio não vai conseguir segurar por muito tempo. Os contêineres precisam ser desativados, precisamos que os prefeitos da Grande Florianópolis entendam que precisamos construir novas unidades— conclama o secretário-adjunto Leandro Lima.

O que mudou muito em relação aos anos 1980 e é um desafio para a vigilância da área é a característica do preso. Antes, a maioria era homicida, mas não representava grande risco para quem circulava pela cadeia – o agente prisional, por exemplo, cortava o cabelo na prisão, e o barbeiro era um preso. Hoje, há facções criminosas violentas, impiedosas com vidas, que comandam crimes dentro e fora das celas, a exemplo do Primeiro Grupo Catarinense (PGC). O bando promoveu atentados nas ruas e foi responsável por assassinatos de profissionais da segurança nos últimos anos.

Mudança de procedimentos

A rendição pelos presos aconteceu na abertura da Semana do Reeducando, confraternização em que eram premiados os detentos com melhor comportamento. Havia um clima festivo, alguns convidados e cerca de 200 presos sem algemas no anfiteatro. Odil Cota, à época secretário-adjunto da Justiça, discursava sobre ressocialização. Ao final, ouviu-se o grito ameaçador e inesperado de um dos presos: “É agora!”

Armados com estiletes, os detentos renderam facilmente os reféns, sem nada que os agentes pudessem ter feito. Uma cena como essa dificilmente se repetiu. No ambiente prisional, o motim de 1986 mudou os procedimentos de segurança e de convivência entre detentos com a sociedade.

Visitas de terceiros às prisões não foram mais permitidas e, desde então, só entram no cárcere familiares, servidores da Segurança e de serviço, advogados, profissionais religiosos e de assistência educacional. Detentos passaram também a receber regras nos atendimentos, feitos em salas específicas e com eles sempre algemados.

Atividades festivas abertas em pátios e áreas grandes dificilmente se repetiram, assim como se destituiu, com o tempo, o Esperança Futebol Clube, time de presos que saía para jogar fora da penitenciária.

Expediente

Edição

Natália Leal

Repórter

Diogo Vargas

Fotógrafos

Betina Humeres / Léo Munhoz

Ilustração

Ben Ami Scopinho

Designer

Fabiano Peres