O último grande ato
No rasante de cerca de quatro horas que deu por Florianópolis, Amy Winehouse esvaziou uma garrafa de bebida no camarim, cambaleou no palco e, ainda assim, fez o melhor show da turnê brasileira em 2011
TEXTO | YASMINE FIORINI
Para ler ouvindo
Ao lado de cada texto da reportagem, há uma música que combina com o tema. As canções foram selecionadas de uma playlist com os 25 sons preferidos de Amy, feita pelo irmão da cantora, Alex Winehouse.
A seleção foi feita pela superfã e assistente de conteúdo do DC, Juliana Rabelo.
Superfly, de Curtis Mayfield
faltavam poucos minutos para as 23h do dia 8 de janeiro de 2011 quando Amy Winehouse desembarcou no Aeroporto Hercílio Luz, em Florianópolis. Ela desceu do jatinho, um Cessna 680, acompanhada de quatro seguranças particulares e uma assessora pessoal. No hangar da empresa Golden Air, cerca de 20 pessoas, entre motoristas, seguranças e produtores, a aguardavam, ansiosas. Pairava no ar um temor de que a cantora britânica não comparecesse ao show, receio que não seria infundado: três anos antes, a artista havia cancelado apresentações em cima da hora e na Inglaterra sua presença (ou ausência) em compromissos chegou até a ser tema de casas de apostas.
Acostumada a ficar de fora de turnês de bandas internacionais pelo Brasil, a capital catarinense sediou um dos retornos mais esperados do mundo da música. Assim que Amy foi anunciada na escalação do Summer Soul Festival, em novembro de 2010, o mundo inteiro voltou os olhos para a pequena ilha no sul do Atlântico. Alvo de tabloides sensacionalistas e protagonista de escândalos por conta do alcoolismo e abuso de drogas, a londrina estava afastada dos palcos havia dois anos, cuidando da saúde e fazendo a reabilitação da qual tanto quis fugir em Rehab, sua canção mais famosa.
O show em Florianópolis seria sua volta, sua redenção. Oficialmente, a cidade havia sido escolhida porque Amy teria gostado do conceito de festival de verão que abrigaria a apresentação. É possível especular, porém, que a decisão teve mais a ver com a estratégia para reerguer sua carreira do que com a estação do ano. Ninguém sabia o que poderia acontecer e, caso a performance fosse um desastre, estaria longe dos grandes centros e dos holofotes para não arranhar ainda mais a já desgastada imagem da estrela. Mas a intenção (presumida) de mantê-la a uma distância segura da mídia não funcionou: a imprensa do Brasil e do mundo veio em peso conferir se ela daria conta do recado. Eram tantos jornalistas, incluindo diversos correspondentes de jornais estrangeiros, que a produção se viu obrigada a negar algumas credenciais.
Cinco minutos após Amy chegar do Rio de Janeiro – sua base durante a estadia no Brasil – e uma breve passagem pelo banheiro do hangar depois, um comboio de cinco Audis Q5 e motos da Polícia Militar Rodoviária seguiu para o Stage Music Park, atual Devassa on Stage, em Jurerê. O fotógrafo Alan Pedro, que ficou a postos no aeroporto desde as 11h para cobrir a vinda da cantora para o Diário Catarinense, lembra que no trajeto os policiais usavam laser verde para que ele não conseguisse fotografá-la.
— Foi uma perseguição meio paparazzi. Tinha uma escolta, mas eu tinha que fotografar ela de qualquer jeito. Pedi para o motorista acelerar, desci do carro e a esperei na Beira-Mar Norte. No final, o engraçado foi que ela sorriu pra mim na foto — conta ele.
No carro, estavam Amy, a assessora e um segurança. A determinação da produção era clara: o comboio deveria seguir bem devagar para que a cantora só chegasse ao local do show em cima da hora, de preferência sem nem passar antes no camarim.
— Ela parecia bem alterada e a gente foi orientado a tomar muito cuidado, porque ela poderia desistir e querer ir embora. Viemos enrolando. Tinha trânsito, então fomos abrindo caminho devagarzinho — relembra o motorista Vilton Dias, da Dunastur, empresa responsável pelo traslado da artista.
Enquanto a cantora seguia para o norte da Ilha, os fãs a esperavam depois de assistir à abertura com os cantores de soul americanos Mayer Hawthorne e Janelle Monáe. Alguns apareceram no local ainda pela manhã – entre eles, a cantora catarinense Bruna Goés, ex-participante do programa The Voice Brasil. Atualmente em turnê pelo país com o tributo Back to Amy, ela ficou mais de 12 horas na fila para garantir um lugar próximo ao palco.
— Meus amigos queriam camarote. Que camarote?! Eu queria era ver a veia do pescoço dela, ficar na grade que nem uma louca. Quando ela entrou no palco, eu não piscava. Já tinha falado pra minha mãe que eu ia porque tinha essa intuição de que seria a primeira e última vez que veria um show dela — rememora Bruna.
Fiquei uns dois minutos com ela. Tive vontade de descobrir se a polêmica existia mesmo ou se era marketing. Achei que ela realmente tinha um parafusinho a menos, totalmente aérea, não conseguia focar
Rafael Brogni “Anjinho”
Gerente do Stage Music Park
Don't Let Me Be Misunderstood, de Nina Simone
quando os portões abriram, quem tinha comprado ingressos para a pista VIP se decepcionou ao ver que não haveria mais a divisão da pista convencional. O jeito foi mesmo correr para ficar o mais perto possível do palco para assistir ao que pode ser considerada uma atuação histórica. Por volta da meia-noite, Amy adentrou no Music Park. Para desespero da produção, deu tempo de ela passar no camarim. O caminho por onde a inglesa pisou estava cercado de seguranças – além dos quatro que a acompanharam desde o Rio de Janeiro, sete profissionais cuidavam para que nenhum fã mais exaltado invadisse a área reservada.
No local, Amy foi apresentada a uma única pessoa: Rafael Brogni “Anjinho”, sócio da Malluppy Entretenimento e gerente do complexo na época.
— O produtor perguntou se eu queria conhecê-la. Fiquei uns dois minutos com ela. Fomos apresentados e ela perguntou se eu gostava de suas músicas. Foi uma conversinha de tiete. Por causa do meu trabalho, falo com artistas constantemente, mas por ela ser um ícone cheio de histórias e controvérsias gerou uma expectativa maior em mim. Tive vontade de descobrir se a polêmica existia mesmo ou se era marketing. Achei que ela realmente tinha um parafusinho a menos, totalmente aérea, não conseguia focar — relembra Anjinho.
Um pouco mais cedo, a produtora de camarins Rosana Ferreira foi chamada às pressas para montar o espaço de acordo com as exigências da cantora. A titular da função não havia aparecido, e Rosana teve que correr atrás dos móveis, bebidas e itens outros mais curiosos, como quadros e canetinhas coloridas para Amy desenhar e uma orquídea.
— A produção estava com medo de que ela não fizesse o show, todo mundo muito nervoso. Quando olhei a lista do camarim, tinha cachaça, uísque, tequila. Eles não queriam botar, mas estavam entre as exigências dela. Falaram que esconderam todas as bebidas no quarto do hotel no Rio, mas que ela teria entrado em outros quartos para pegar — relata.
Rosana lembra que no final restou apenas uma garrafa de bebida vazia. Nos bastidores, a produtora teve a mesma suspeita de muitos que estavam na plateia: a água da garrafinha que Amy levou ao palco era aquela que passarinho não bebe.
Amy já aterrissou em Florianópolis pronta e com o vestido rosa e branco que usaria em cena. Mesmo assim, a assessora pessoal retocou sua maquiagem e seu cabelo no camarim antes de ela subir no palco, à 0h50. A cantora quebrou um hiato de dois anos longe de grandes arenas. Antes da turnê brasileira, em dezembro de 2010, ela fez uma curta apresentação na festa corporativa de um oligarca russo em Moscou, quando teria recebido um cachê de aproximadamente 1 milhão de libras. No Brasil, a estimativa é de que tenha faturado US$ 560 mil por noite.
Na frente de 10 mil pessoas, Amy chegou cuspindo o chiclete, passou direto pelo microfone e então se deu conta e voltou. Em uma mistura de alívio e tensão, o público a ovacionou. Amy abriu com três músicas do álbum Back to Black, de 2006: Just Friends, a canção-título e Tears Dry on Their Own. A voz deslumbrante estava ali, mas não foi uma apresentação tranquila. Teve pouco papo, pausas dramáticas e duas saídas do palco – em tese, para ajustar o visual no camarim; segundo testemunhas, para beber. Seja o que fosse, cada uma significava mais minutos de apreensão para a produção. Os seguranças tiveram que ajudá-la na hora de subir novamente ao tablado.
Parte do público considerou ter visto o show de sua vida, parte ficou satisfeita simplesmente pelo comparecimento da cantora e teve quem se desapontou com o ar distante e a pouca interação da diva. Houve também descompasso ao entrar em certas canções e esquecimento de algumas letras – inclusive Rehab. Em um momento, ela se voltou para a banda e perguntou, confusa: “O que eu faço agora?”. Em outro, sentou-se ao lado da bateria para deixar seu backing vocal e amigo Zalon Thompson comandar duas músicas.
— Essa turnê é algo que eu pessoalmente vou estimar para o resto da minha vida como a primeira vez que Amy me deu 15 minutos para eu cantar minhas próprias músicas (Everybody Here Wants You e What a Man Going to Do) – valoriza em entrevista por e-mail o cantor, que na primeira semana deste mês esteve no Brasil para lançar o EP com You Let me Breathe, canção que compôs em homenagem a Amy depois de sua morte. Leia a entrevista na íntegra.
O primeiro disco, Frank, de 2003, foi ignorado. Ela cantou apenas I Heard Love Is Blind. Errou a introdução de Boulevard of Broken Dreams, de Tony Bennett. You’re Wondering Now, dos Specials, e o hit Valerie, do grupo The Zutons, fecharam o setlist. Às 2h, ela deu um tchauzinho breve e não voltou para o camarim. Foi direto para o carro, que a levou até o aeroporto Hercílio Luz e de volta ao Rio. Alívio geral.
— No final, a produção nos chamou e brindou com a gente. Eles pediram desculpas porque antes estavam nervosos e foram grossos com a equipe. No fim, foi supercompensador — diz Rosana.
oshow durou uma hora e 10 minutos e foi considerado o melhor da turnê brasileira. Depois de Florianópolis, Amy passou por Rio de Janeiro, Recife e São Paulo. As performances foram ficando cada vez mais confusas _ em São Paulo, por exemplo, a apresentação de uma hora e 12 minutos teve cerca de meia hora de enrolação e idas e vindas ao backstage. Em Recife, ela levou até um tombo.
Em fevereiro, Amy foi até Dubai participar de um festival. Cantou apenas seis músicas e levou vaias. Em maio, voltou à reabilitação, interrompida por uma nova turnê europeia que começou em junho, em Belgrado, na Sérvia. Na ocasião, também foi vaiada por um público de 20 mil pessoas e acabou se recusando a receber o cachê. Os compromissos daquele verão foram cancelados e ela pediu desculpas aos fãs por não dar seu melhor. Não haveria nova chance de se redimir: em 23 de julho, Amy morreria em casa, em Londres, de complicações decorrentes do consumo excessivo de álcool, 196 dias depois de sua tão fugaz quanto inesquecível estada em solo catarinense.
Unchain My Heart, de Ray Charles
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