REVÉS DO

 PARTO

o amor de Catarina Rodrigues pelo filho é como o de qualquer outra mãe. O destino, no entanto, fez com que ela sofresse uma perda brutal: envolvido com drogas, Alan foi decapitado por criminosos. Em um relato corajoso, ela fala da saudade que não tem fim

e da vontade de ajudar outras famílias

Quer ver sofrimento?

É quando o caixão desce dentro da sepultura. Saber que nunca mais a gente vai ver aquele rosto, aquele pedaço que saiu de dentro de nós. A gente está viva, mas parece que está sendo enterrada junto

 

Catarina rodrigues,

Mãe de Alan

 

Inspiradas nas lembranças de Catarina, as ilustrações reproduzem um dos últimos retratos da mãe e do filho juntos

inha guerreira, minha rainha, minha heroína.

Bem possível que essas palavras fizessem parte do Dia das Mães de Catarina Aparecida Rodrigues, 42 anos. Provável também que depois de ser abraçada e beijada, ela tivesse que abrir um pacote. Dentro do embrulho, um vestido florido, colorido, longo. Em seguida, ouviria a pergunta:

— Gostou, veia?

É assim. Com base no que dizia e lhe prometia o filho que Catarina imaginou o domingo passado. Mas teve de ser de silêncio o 14 de maio. De uma quietude de doer os ouvidos. Foi o primeiro Dia das Mães sem o mais velho. Alan, 24 anos, único homem entre três filhos, foi assassinado há 50 dias, em Joinville.

Catarina sofre da dor singular de ter enterrado um filho. Mas é personagem de uma realidade plural. Como ela, pelo menos 65 mães na maior cidade do Estado padecem igualmente. Na capital Florianópolis, são 75 mortes violentas neste ano. Em Santa Catarina, chegam a 314 os assassinatos nos primeiros cinco meses do ano.

A maioria dos casos tem envolvimento com drogas. Levantamento da Secretaria da Segurança Pública indica que 90% dos assassinatos estão relacionados ao consumo ou ao tráfico no Estado.

Como aconteceu com o filho de Catarina. Alan era dependente químico; começou com maconha, avançou para a cocaína e sucumbiu ao crack. Chegou a ser internado, mas não superou o vício. O roubo de um celular o levou para a cadeia. Estava em regime domiciliar quando foi morto.

Mas, com se diz, mãe é mãe. Por mais errante que seja o filho, a perda corrói. É pedaço arrancado, chão que abre, abismo sem fim. Literalmente sem explicação. A ponto de não existir verbete no dicionário que defina esse sentimento. Diferentemente de órfãos, por exemplo, palavra que dá significância à realidade de quem não tem mãe ou pai. Aos 22 dias depois da morte de Alan, Catarina abriu a porta da casa, ofereceu uma xícara de chá de camomila e aceitou contar a sua história à reportagem.

 Perder um filho é experiência devastadora. É inversão da ordem do que se supõe como natural. No caso de Catarina, ocorreu de uma forma impiedosa: o primogênito foi decapitado. Cabeça e tronco foram encontrados em dias e cidades diferentes. Uma parte em Joinville; outra, em Araquari, a uma distância de 25 quilômetros.

Inclementes, os matadores gravaram um vídeo da vítima agonizando e postaram nas redes sociais. A Polícia Civil já identificou dois suspeitos. Um adolescente de 17 anos foi apreendido e confessou a autoria do assassinato: ele foi o responsável por asfixiar Alan. Um homem de 20 anos, detido no Presídio Regional de Joinville desde 26 de abril após ser preso em flagrante por roubo, confessou ter esfaqueado o jovem e, depois, separar a cabeça do corpo, escondê-los em mochilas e sacolas plásticas e levá-los aos locais onde foram encontrados. A Delegacia de Homicídios continua a investigação porque acredita que outras pessoas tenham participado do crime. Enquanto os criminosos não são condenados, Catarina permanece em luto. Não com as simbólicas roupas pretas. Mas sem o vestido florido que lhe foi prometido para o último Dia das Mães.

M

atarina devolve a pergunta quando é questionada sobre como está a vida.

– Você é mãe? Se tiver filhos pode até imaginar o que sinto. Se não tiver, nem adianta explicar.

A conclusão vem acompanhada de um olhar que passeia pelas paredes da casa, onde mora com o marido e duas filhas adolescentes com 12 e 18 anos. A moradia fica num bairro de trabalhadores de Joinville. Foi Alan quem escolheu as cores (verde-água e bege) e fez a pintura.

– Quando um filho morre, fica um vazio enorme. Parece que para onde a gente olhar vai encontrá-lo.

Sentada no sofá da sala, depois de um dia de trabalho como supervisora em uma empresa de transportes, Catarina abarca as próprias memórias. Quase que reconstituindo os últimos momentos do filho naquele lugar. Como se fosse possível voltar no tempo. Modificar os passos.

Alan saiu antes das 18h do dia 30, uma quinta-feira, depois de ter atendido a uma ligação no celular. O pai, Neri Azevedo dos Santos, 48 anos, ouviu, quando, parecendo conversar com um conhecido, o filho respondeu: “Se você deixar calçar os tênis eu vou.”

O rapaz colocou o telefone no bolso e subiu na moto. Disse que iria até um bairro próximo, Ulysses Guimarães, e prometeu voltar logo. A noite caiu. Preocupado com a demora, o pai tentou falar com o filho várias vezes. Por volta das 19h, o celular já dava fora da área ou desligado.

Naquela noite foi difícil pegar no sono. Catarina e Neri estavam preocupados: o filho vinha usando droga com frequência e a escalada da violência na cidade crescia. Já era madrugada do dia 31 quando a família foi acordada por um amigo. O vizinho contou sobre o vídeo na internet. Havia comentários de que a vítima era Alan.

Na cozinha, ainda em pé, o pai viu as imagens e reconheceu o rosto de Alan. O pescoço estava amarrado com fios (elétricos) e uma luz (como as de celular) iluminava as mãos do criminoso. O filho respirava ofegante. Até que uma voz atribuída a uma facção criminosa foi ouvida. Era a sentença de morte. Faltou coragem a Catarina para ver o vídeo (apagado por quem postou), mas ela sabe do sofrimento:

– Meu filho passou muita dor na hora da morte.

Catarina recorda que o marido tentou acalmá-la dizendo que era preciso aguardar pelo amanhecer. Cedo ele estava no Instituto Médico Legal (IML), onde teve que responder a uma pergunta dolorosa: enterrar ou aguardar o resto do corpo?

A família decidiu esperar. No dia seguinte, a PM de Joinville recebeu informação de que havia o tronco de um corpo na Estrada Geral do Itapocu, às margens da BR-101, em Araquari. A calça azul e a camisa listrada ajudaram o pai a identificar. Dessa vez foi Catarina que precisou responder a uma pergunta difícil: onde fazer o velório?

– Tinha que ser aqui. No lugar onde ele viveu, onde dizia que não nos abandonaria e onde não foi abandonado. Foram anos difíceis, mas nosso filho nunca foi enxotado – conta a mãe.

Catarina tinha um medo: como estaria o corpo do filho tão vaidoso, que gostava de estar cheiroso, perfumado, usando camisas limpas e passadas?

– Dava um aperto no coração em pensar nisso, mas Deus foi misericordioso e ele estava arrumadinho. Vestimos com uma camisa bem bonita – diz.

A imagem remete ao momento que ela considera mais penoso:

– Quer ver sofrimento? É ver quando o caixão desce dentro da sepultura. Saber que nunca mais a gente vai ver aquele rosto, aquele pedaço que saiu de dentro de nós. A gente está viva, mas parece que está sendo enterrada junto. É muito terrível passar por isso.

Antes do “acontecido” – Catarina não pronuncia crime ou assassinato – ela disse ter sentido que o filho “podia ser recolhido por Deus”. Não havia ameaça ou recado. Mas um pressentimento que se fez forte na quarta-feira, um dia antes do assassinato. Para ela, isso vem da fé e da oração. Há 20 anos a família é evangélica. A religião também faz com que essa mãe acredite que as pessoas vêm ao mundo com um destino traçado. Mas então do que adianta uma mãe lutar por um filho se já está decidido sobre o fim dele?

– Para elas nunca terem peso na consciência de que não lutaram pelos filhos. Muitas mães vão ter vitória, eu sempre acreditei que meu filho iria sair dessa. Só que não era para mim.

Como a mãe, Alan também frequentou a igreja entre os sete e 15 anos. Nos últimos tempos, andava afastado e só esporadicamente acompanhava a mãe nas missões (atividades de evangelização) em casas, cadeias, hospitais.

– Até a adolescência foi uma maravilha, uma meninice de brincadeiras e fé. Mas depois começaram os problemas – recorda Catarina.

Com o tempo, o bom aluno da escola começou a se desinteressar pelos estudos. Não por que não gostasse, mas pelo desejo de consumo, de querer comprar suas próprias coisas, de ter dinheiro para sair. Novas amizades surgiram e o conselho dos pais não fazia tanto efeito quanto nos anos de criança. Um dia Catarina ouviu o marido, a quem reconhece como um grande companheiro, dizer:

– Nessa vida de drogas, há dois caminhos, a morte ou a cadeia.

Mesma frase que Neri declarou à imprensa enquanto velava o filho no meio da sala. Catarina acrescenta:

– Não sei o que aconteceu para chegar a esse ponto, a essa forma brutal com que ele foi morto. Mas entrego à justiça de Deus.

Não é apenas em casa, quando olha as paredes pintadas, que Catarina sofre com a saudade do filho. Também quando dirigindo o carro nas ruas encontra um jovem numa moto, ao caminhar na praia, ao escutar uma música. Até quando está no pátio da empresa onde trabalha e toca Sentimento é mato (Zé Neto e Cristiano), uma das mais cantadas pelo filho.

– Não consigo ficar perto.

C

A

ssim como a mãe não consegue ir até os fundos da casa e se deparar com o lugar onde o filho morava.

– Quando eu estava lavando roupas, ele aparecia na janela, me cumprimentava e perguntava se estava tudo bem.

As lembranças continuam à espreita. Mas Catarina sabe que, aberta ou fechada, a janela estará vazia. Assim como ilusório é o perfume que sente. A fragrância que após o banho se espalhava pela casa evapora-se no tempo. Como pertencem à memória os passos rápidos em direção ao sofá, onde o filho gostava de deitar a cabeça no colo da ‘veia’ e dizia:

– Minha guerreira, minha rainha, minha heroína.

Por tudo isso, diz, quando precisa de alguma coisa do quintal ela pede para o marido pegar. Foi também ele, com quem é casada há 26 anos, quem recolheu as roupas e os calçados para serem doados. Pela proximidade com a família, a imagem do filho não correspondia ao clássico dependente de pedra: sujo, cadavérico, maltrapilho.

– Ele era um usuário de droga. Não um mendigo.

A casa tem três peças e foi construída há sete anos, quando Alan se casou e virou pai. O casamento terminaria tempo depois, mas a cor rosa pink das paredes no quarto da menina permanece vivo. Assim como viva está em Catarina a cena da neta, seis anos, colocando cartinhas sobre o corpo do pai.

– Ninguém mandou: ela escreveu, desenhou 10 corações partidos ao meio e foi até o caixão se despedir. Naquele momento, quem não tinha chorado, chorou.

Catarina não resiste. O corpo afunda no sofá, a voz embarga e lágrimas gotejam dos olhos.

– Meu filho só fez mal a ele mesmo. Tanto que deixou esse ouro, essa relíquia para eu cuidar, para a gente cuidar – diz, referindo-se à neta.

A menina mora em outra casa com a mãe, mas costuma passar os fins de semana com os avós. Dias atrás, uma boa notícia: como o pai era casado, vai ser possível o recebimento de pensão por morte. Enquanto isso, Catarina segue com o propósito de terminar o curso noturno (está no 9o ano) e fazer a faculdade de Administração. Acredita que, assim, poderá assegurar um futuro melhor à menina. Como também pretende se aprimorar para ajudar famílias de usuários de drogas:

– É muito difícil lidar com o problema. Não era esse o nosso caso, mas tem situações em que eles ficam violentos, tiram coisas de dentro de casa, levam ao despero – reconhece.

O projeto de Catarina, agora, é chegar também às mães de usuários, mães que podem se sentir culpadas de alguma coisa, que podem achar que não souberam educar ou desistiram antes da luta se encerrar.

Aconselha a todas elas a abraçarem – ou se deixarem abraçar – pelos filhos. Assim como dar atenção aos que usam drogas e nunca mandá-los embora.

– Se a própria mãe não o abraçar, quem vai abraçar? O mundo? O mundo é cruel. O mundo não abraça.

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