A exposição Joan Miró – A Força da Matéria está aberta à visitação pública gratuita no Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), em Florianópolis. A maior mostra do pintor e escultor espanhol que já passou pelo Brasil ficará em cartaz até 15 de novembro. De terça a domingo, pelo menos 1.050 pessoas por dia terão a chance de ver de perto as 112 obras - entre pinturas, esculturas, desenhos e gravuras, divididas em três fases representativas da vida e obra do artista.
oan Miró era um grande desconfiado de todas as certezas absolutas. Repudiava a hierarquia do saber do ocidente e se recusava à limitação de qualquer "ismo" dos movimentos artísticos, embora críticos o tenham considerado o mais surrealista de todos. Viveu imerso numa sociedade cambiante, o século 20, e ele próprio, ao "assassinar a pintura" e romper as amarras da arte tradicional, contribuiu para um modo diferente de pensar o último século. A Força da Matéria, maior exposição no Brasil dedicada ao catalão, mostra no Museu de Arte de Santa Catarina (Masc), em Florianópolis, os processos de um artista lúcido de sua época, que transcendeu o tempo que viveu e cuja obra, impregnada de poesia, é ainda alicerce para a arte contemporânea.
Assim como Picasso (1881 - 1973) e Salvador Dalí (1904 - 1989), Miró (1893 - 1983) foi um artista prolífico. As 112 obras da mostra (41 pinturas, 22 esculturas, 20 desenhos, 26 gravuras e três objetos) são apenas um recorte dessa vastíssima produção, mas dão clara ideia do vocabulário mironiano, da espontaneidade e da agilidade em dizer o inesperado e de sua inventividade técnica.
A mostra não tem curadoria autoral, foi uma seleção colaborativa entre a paulista Fundação Tomie Ohtake, organizadora e produtora do evento no Brasil, e a Fundação Joan Miró, em Barcelona. Tem um tom familiar ao trazer obras que estavam na casa da família do artista - duas delas inéditas -, com colecionadores e na instituição espanhola que leva seu nome, além de fotografias ampliadas de detalhes do ateliê, de momentos íntimos e do processo criativo.
Textos
CAROL MACARIO
caroline.macario@diario.com.br
Edição
TAIS SHIGEOKA
tais.shigeoka@diario.com.br
Design e desenvolvimento
FÁBIO NIENOW
fabio.nienow@diario.com.br
Fotos
EMERSON SOUZA
emerson.souza@diario.com.br
"
Ele era provocante e angustiado na questão artística. Por isso foi contemporâneo de cada tempo. As diferentes fases representam um artista vivo, atuante e consciente,
diz Antonio Vargas, professor de pós-graduação em Artes Visuais da Udesc
Por Fernado Lindote
Artista visual
aparecimento da obra de Joan Miró - em meio às lutas ideológicas das vanguardas do início do século 20 - inaugurou um espaço em que a sua pesquisa atravessou construções teóricas e movimentos artísticos. O que não é pouco em uma época em que a Europa - marcada pela fragmentação sectária e excludente presente não só nas vidas política e econômica, mas também nas práticas vanguardistas das artes - enfrentava disputas acirradas pela hegemonia de um movimento artístico sobre outro. Em meio a tantas lutas, Miró manteve-se fiel ao seu processo de invenção e representa, até hoje, um exemplo e uma possibilidade de prática autêntica, independentemente das tendências predominantes.
Joan Miró não quis ser surrealista, apesar do interesse dos surrealistas por ele. Joan Miró não quis ser abstrato, apesar do interesse que havia em tê-lo como aliado por parte dos pintores da primeira abstração europeia. Miró nunca deixaria de ser Miró.
Inventor de um espaço onde a história flutua, onde cânones, signos e teorias se embaralham em sempre renovadas constelações, Miró liberou a infância da humanidade para o centro do mundo civilizado. Mesmo as esculturas em bronze parecem habitar esse espaço inventado em suas telas, como seres flagrados em fuga tridimensional.
Sua obra apresenta a matéria antes de tudo, porém, por razões que o mistério de sua prática instauram, a matéria em Miró ganha leveza e nos lembra de transcendência. O modo como fez aparecer a marca na tela liga sua obra à tradição da pintura ocidental e recoloca as possibilidades desse meio para a atualidade.
Miró nos convoca, hoje, com a mesma intensidade do momento de sua primeira exposição: a experiência do contato presencial com seu trabalho é da ordem das energias vitais, das maravilhas e dos horrores da criação. Miró move, por nós, forças imensas de nossa estrutura simbólica e com a fricção interna que sua obra provoca nos retira, ao menos pelo tempo de sua fruição, da letargia anímica do nosso tempo.
O
Por Emerson Gasperin
presidente da patrocinadora Arteris, David Díaz, explicou como a exposição Joan Miró - A Força da Matéria, maior retrospectiva do artista espanhol já feita no Brasil veio parar em Florianópolis. De acordo com o executivo, a capital catarinense foi escolhida por causa da atuação da empresa - uma das maiores companhias de concessões rodoviárias do país - no Estado por meio da Autopista Litoral Sul e da Autopista Planalto Sul. Uma das acionistas da concessionária, a também espanhola Abertis, tem relacionamento com a família do pintor catalão, o que facilitou a vinda do acervo da fundação que leva o seu nome. Ele calcula que o investimento total foi de R$ 5 a 8 milhões.
1893
1900
1910
1911
20 de abril de 1893
Nasceu em Barcelona, na Espanha.
1900
Ingressou na escola e recebeu
as primeiras aulas de desenho.
1910
Trabalhou como contador em uma loja
de produtos farmacêuticos e coloniais.
Participou de uma exposição de retratos e
desenhos em Barcelona.
1911
Não adaptado ao trabalho, entrou em depressão
e pegou febre tifoide. Para se recuperar,
passou uma temporada na região montanhosa de
Mont-Roig, na Espanha, em uma fazenda comprada pelos pais.
1912
Decidiu dedicar-se completamente
à pintura e ingressou na Academia de Artes,
em Barcelona, dirigida por Francisco Gali.
1918
Realizou a primeira exposição
individual, em Barcelona.
1920
Viajou para Paris, onde teve contato
com os movimentos artísticos modernistas
dadaísmo e fauvinismo e visitou Pablo Picasso.
No início desta década teve contato com
vários outros artistas surrealistas,
entre eles, André Breton.
1921
Primeira exposição
individual em Paris.
1924
Produziu duas de suas obras iniciais mais importantes: as pinturas
Maternidade
O Carnaval de Arlequim
1925
Participou da primeira
exposição de arte surrealista.
1928
Produziu o primeiro
objeto-colagem chamado A Dançarina Espanhola e pintou
O Interior Holandês (ao lado),
um de seus quadros
mais marcantes.
1929
Casou-se com Pilar Juncosa
e foram morar em Paris.
1930
Nasceu a única filha, Dolors. Realizou a primeira exposição individual em Nova York. Nesta década, passou a se dedicar a outras formas de expressão artística como baixo relevo e escultura. Tornou-se mundialmente famoso, expondo regularmente em galerias francesas e americanas.
1936 a 1940
Por conta da Guerra Civil Espanhola, se mudou para Paris. Nesse período, sua produção artística foi fortemente influenciada pelos horrores da guerra.
1941
Primeira grande retrospectiva
no Museu de Arte Moderna de Nova York.
1944
Realizou os primeiros trabalhos em cerâmica e deu início a uma série de murais para o edifício da Unesco, em Paris, e para a Universidade de Harvard, em Cambridge, nos EUA.
1946
Produziu as primeiras
esculturas em bronze.
1947
Viajou aos EUA
pela primeira vez.
1954
Recebeu o Grande Prêmio de
Gravura na Bienal de Veneza.
1955 até 1959
Abandonou a pintura e seguiu
trabalhando com esculturas e obras gráficas.
1956
Mudou-se para a ilha de Maiorca, na Espanha,
onde instalou um estúdio.
1959
O mural que produziu para Unesco
ganhou o Prêmio Internacional da
Fundação Guggenheim, de Nova York.
1966
Exposição retrospectiva no Museu
Nacional de Arte de Tóquio.
Viajou pela primeira vez ao Japão.
1968
Fez a última viagem aos EUA, onde foi nomeado doutor
honoris causa pela Universidade de Harvard.
1975
Abriu a Fundação Miró, em Barcelona.
1980
Recebeu do rei Juan Carlos I (Espanha)
a Medalha de Ouro de Belas Artes.
25 de dezembro de 1983
Morreu aos 90 anos,
em Palma de Maiorca,
na Espanha.
1944
1929
1925
1921
1920
1918
1912
1924
1928
1930
1936 a 1940
1941
1946
1947
1954
1955
até 1959
1956
1959
1966
1968
1975
1980
1983
QUANDO
12/9 a 15/11
HORÁRIO
Funcionamento do museu
terça a sábado, das 10h às 20h30min;
domingos e feriados, das 10h às 19h30min
Turnos de visitação
10h às 12h; 13 às 16h; 17h às 19h
(terça a sábado) e 17h às 18h (domingos e feriados)
ONDE
Museu de Arte de Santa Catarina – Masc
(Av. Gov. Irineu Bornhausen, 5.600, Agronômica, Florianópolis)
QUANTO
gratuito. Senhas serão distribuídas
diariamente 30 minutos antes de cada turno
INFORMAÇÕES
(48) 3664 2630 / 3664 2631 e www.masc.sc.gov.br
AGENDAMENTO DE VISITAS
(48) 3664 2633
J
O
O
10 peças da exposição que, segundo o artista visual Fernando Lindote, representam o conjunto da obra de Miró. A mostra traz ainda 3 trabalhos inéditos.
Sem título (1937): aquarela e guache sobre papel preto
Personagens na Noite (1944): tinta chinesa e aquarela sobre tela
Personagens, Pássaros III (1973): óleo sobre tela
Poema (1974): óleo sobre tela
Personagem, Pássaros (1975): óleo, tinta chinesa e grafite sobre papel cartão
Sem título (1979): óleo, tinha chinesa e giz de cera sobre papel
Pintura III/V (1980): óleo sobre tela
Mulher (1970): bronze
Torso de Mulher (1967): bronze
Voo de Patos, Mulher e Pássaros (1965): óleo sobre tela de estilo "pompier"
Personagens e Pássaro (1962): giz de cera, carvão e óleo sobre papel - OBRA INÉDITA
Cachorro Pequeno (1963): óleo sobre papel perfurado - OBRA INÉDITA
11 - 12
<
>
A mostra segue a linha cronológica da produção artística e da vida do artista. As 112 obras foram divididas em três grandes blocos organizados em quatro salas do Museu de Arte de Santa Catarina (Masc).
ANOS 30 E 40 - ASSASSINO DA PINTURA
As primeiras obras de Miró, nos anos 20, estão intimamente ligadas à sua identificação com as paisagens da Catalunha, onde nasceu. Já nessa época o elemento fantástico predomina. Na década seguinte – que é quando a exposição começa –, sua produção reflete a tragédia da Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939) e da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945).
O primeiro bloco acompanha o amadurecimento do artista e sua inventividade pictórica, técnica e de suporte. Ele "assassina a pintura" com o objetivo de destruir a concepção clássica do ofício. É nessa época que começa a fazer experimentações com colagens e objetos a partir de assemblage de materiais diversos. Já se vê a flutuação de cores e formas e nenhuma ilusão de profundidade ou gravidade.
ANOS 50 E 60 - EXPERIMENTAÇÃO DA MATÉRIA
Depois de 1944, quando começa a trabalhar com cerâmica, Miró segue renovando não só o modo de pintar, mas também a linguagem. Vê-se o interesse pela experimentação da matéria e ele realiza um trabalho profícuo de esculturas. Na exposição aparecem muitas de seus trabalhos em bronze, aparentemente uma técnica pouco convidativa se comparada a outras utilizadas por ele. A espontaneidade e agilidade, traços característicos de seu fazer artístico, fazem com que ele enxergue em elementos banais, como sucatas, tampas de panelas ou tijolos, figuras como o corpo de uma mulher ou de pássaros.
ANOS 70 - MATURIDADE
E PÓS-GUERRA
Nessa década a obra de Miró já é mundialmente conhecida, mas nem por isso o artista deixa de questionar o sentido final da arte. Segue utilizando suportes inusitados, como tocos e embrulhos de papel. Sobre esse período a exposição apresenta uma importante coleção de gravuras em que se evidencia a destreza do catalão em desafiar os padrões da técnica. Ao mesmo tempo, a presença da cor preta começa a dominar sua pintura. A morte de amigos e as limitações da idade já avançada escurecem as telas. O último bloco da mostra é um panorama da produção do artista mais maduro e no pós-guerra. Há uma intersecção com o começo da mostra, mas num recorte mais abstrato.
PARA ENTENDER MIRÓ
Três documentários dirigidos por Clovis Prévost em 1971, 1973 e 1974 e um vídeo dirigido por Pep Botey em 2010 serão exibidos na sala que separa a mostra de longa duração do Masc e a exposição de Miró. Os vídeos mostram cenas do pintor e ajudam a entender o processo criativo e o pensamento do artista.
EXPOSIÇÃO PERMANENTE
O circuito de visitação começa na mostra de longa duração do Museu de Arte de Santa Catarina (Masc). Núcleo Inicial apresenta as 32 obras que deram início à coleção da instituição nos anos 40, um rico acervo do modernismo brasileiro. Entre os destaques, raros trabalhos de artistas como Iberê Camargo, Roberto Burle Marx, Alfredo Volpi e Bruno Giorgi.
1
2
3
Florianópolis é a única cidade no Brasil a receber a exposição depois de São Paulo, onde ficou em cartaz entre 24 de maio e 16 de agosto. A vinda das obras é graças ao patrocínio exclusivo da Arteris, companhia de concessão rodoviária que atuou como mecenas em tempos de pouco incentivo à área cultural.
No Masc, a mostra está dividida em quatro salas, além de um corredor onde serão exibidos documentários sobre o pintor e escultor. Antes do primeiro bloco de peças de Miró, o circuito de visitação começa na Sala Harry Laus, espaço para exposições de longa duração do Masc onde estão as 32 obras que deram início à instituição nos anos 40. A mostra foi trocada há menos de um mês com o objetivo de divulgar o acervo do museu, um dos mais importantes do país. Infelizmente a forma como estão apresentados não valoriza os valiosos trabalhos do modernismo brasileiro. A proposta expositiva é pouco ousada e a sinalização é pobre, com apenas um texto explicativo disposto na entrada. O título da exposição aparece no canto superior à esquerda da parede, em adesivo com uma ponta já descolada.
A expectativa é que 350 visitantes passem pela exposição por turno. Além dos dois servidores do núcleo de arte-educação do museu, foram contratadas mais 17 pessoas, dentre elas uma coordenadora, orientadores e monitores para atender o público.
– Eu não acho que Miró seja mais importante do que outras exposições de arte. Acho importante porque é um nome da história da arte muito significativo e por isso torna o evento artístico muito importante. Mas tão importante quanto olhar Miró é olhar arte. Adquirir o hábito de ir ao museu independente de ser arte de 80 anos atrás ou de agora – conclui Antonio Vargas.
"
Miró era um artista de espontaneidade. Isso não tinha a ver com o inconsciente, estado onírico ou de descontrole, mas sim com estar muito atento, vivo, alerta e vibrante,
explica Paulo Miyada, curador do Instituto Tomie Ohtake
A angústia em perseguir o espontâneo e abrir caminhos nunca antes percorridos refletia o comprometimento de Miró com a ideia de liberdade artística. Alegoria para um conceito de liberdade maior, já que ele viveu o contexto das duas grandes guerras mundiais, a Guerra Civil Espanhola e a Ditadura de Franco e sempre se colocou a favor do direito de expressão.
Não à toa, além do surrealismo mediterrâneo, do uso de cores fortes, primárias, suas obras também têm as cores da morte, quando retratou com vermelho-sangue os horrores dos conflitos ou quando elas escureceram em luto à morte de amigos e em razão das limitações da própria idade.
Miró também sempre foi muito dedicado ao ateliê. Ao contrário dos seus contemporâneos, modernistas esporrentos, boêmios, cheios de amantes - e contraditoriamente ainda à sua própria arte -, Miró tinha uma vida convencional.
- Ele não foi um surrealista que envelheceu. Ele envelheceu como um artista lúcido de sua época. Mas contraditório, porque nunca foi midiático. Era intimista e retraído sob vários aspectos. Enquanto os outros usavam entorpecentes para alterar a consciência, Miró utilizava-se do jejum - conta o professor Vargas.
A ligação com a mística do oriente é outro aspecto importante na vida e obra de Miró e aparente em muitas obras da exposição no Masc. Seja com giz de cera, tinta, bronze, papel, tela ou madeira, ele traduziu o cosmos em símbolos que se repetiram em seus trabalhos: estrela, lua, mulher, pássaros. É como se enxergasse com o terceiro olho, o olhar noturno, do mundo dos sonhos, um olhar que vê além da beleza explícita no figurativo. Ele acreditava na beleza que só a alma percebe e a expressava por meio de formas orgânicas e construções geométricas.