A vingança
da natureza
Como entender esta força que num momento inunda todo o Vale e, agora,
justamente por falta de chuvas, seca o leito dos rios
O que dizer mais de Alda Schlemm Niemeyer, a
nao ser que ela também é humana, de carne e osso. Considerada uma heroína em meio à
catástrofe da enchente que assolou o Vale do Itajaí em 1983, só hoje ela confessa: aos
80 anos ainda treme de medo ao menor sinal de chuva, e sente o sangue gelar ao ouvir um
trovao. No entanto, o pavor pelo estrondo nao foi adquirido nos dias de enxurrada, quando
chegou a ser considerada de ferro. Sao lembranças ainda mais remotas, da entao jovem
enfermeira da Cruz Vermelha que, em 1945, estava na Alemanha, centro dos bombardeiros da
2ª guerra mundial. Ela acredita que só conseguiu ser tao útil na grande cheia por ter
sido forjada na frente de batalha.
Alda é radioamadora da mais alta classe internacional. Até 1983, a atividade era vista
apenas como um hobby que esporadicamente prestava alguma ajuda. A partir do dia 7 de julho
daquele ano, o conceito mudou. A joinvilense radicada em Blumenau já ajuda a Defesa Civil
com informaçoes do nível do rio, conseguidas com outros radioamadores nas barragens de
Taió, Ibirama e Ituporanga. Quando recebeu a previsao de que na cidade as águas
chegariam a 15 metros, premonizou a catástrofe. Pouco mais de 24 horas depois de receber
a notícia, aos 63 anos, ela e a família abandonaram a casa onde ainda moram, no Bairro
Ponta Aguda, com água acima dos joelhos. Sem poder fazer mais nada pelos próprios
pertences, ela se dedicou a amenizar o sofrimento alheio.
Latrinas e remédios
Quando a cidade ficou embaixo d'água, sem luz elétrica e telefone, a única forma de
transpor o rio, que se tornou imenso, foi através da freqüência dos radioamadores. Nem
a parafernália do escritório da Empresa Brasileira de Telecomunicaçoes (Embratel) na
cidade resistiu à força das águas. Foi justamente na Embratel que Alda montou sua
aparelhagem que, concebida a propósito, funciona ligada a uma simples bateria de
automóvel. Isolada durante dias, a exemplo de outras 22 estaçoes colocadas em pontos
onde a água nao havia coberto, ela lavou latrinas com a mesma dignidade com que conseguiu
remédios, barcos, água potável e salvou vidas.
Quando se fala na enchente, nao faltam histórias de tragédias, mortes e perdas. Só
mesmo Alda, com aquele jeitao de oma, nona, enfim, vó universal, para ver beleza em um
pote. Escondendo a emoçao, ela conta sobre um recipiente de cristal que foi da mae de sua
mae. "Antes de abandonar nossa casa fizemos a última refeiçao, lembra. Eram
bolachas com nata, que estavam na geladeira dentro do presente da bisavó. Na correria,
nao lembrou da relíquia, levada pela enxurrada. Semanas depois, quando minha filha foi
comprar cigarro para meu marido, no caminho, já com as águas baixas, ela encontrou o
pote. Primeiro rimos muito, depois choramos pela fúria da natureza ter nos preservado uma
lembrança sem preço", conta.
Na verdade, Alda é uma bruxa. Nao só pelos poderes de encantar quem olha nos olhos. Nao.
Nem por transformar dor em alegria. Muito menos. Talvez seja o fato de ter salvo tantas
vidas, e nao querer contar quantas. Ou, quem sabe, ter visto mais dor em uma enchente
regional que numa guerra mundial. Quem sabe. É bruxa por ser mística e, depois de tanto
trabalho como heroína, ter voltado para casa como mais uma vítima da enchente. A
enchente também marcou a vida de José Antonio Lenzi, um trabalhador que no dia 1º de
maio completou 54 anos de vida. Há mais de duas décadas trabalhando como administrador
da barragem em Ituporanga, ele é testemunha de quanto a mao humana que agride o meio
ambiente consegue bem mais resultados que aquelas preocupadas com as próximas geraçoes.
Como se também tivesse poderes, ele garante ter previsto a grande enchente de 1983 apenas
pelo grande volume de entulho que se acumulava nas grades da barragem na época que
antecedeu a tragédia. Até lixo hospitalar do Hospital de Alfredo Wagner, relembra Lenzi,
parava no paredao de concreto.
De ponta a ponta
Em 1983, na outra ponta do aparelho usado pela bruxa Alda, quando falava com Ituporanga,
estava justamente José Antonio Lenzi. No dia 8 de julho de 83, conta, as águas passavam
mais alto que uma casa sobre o paredao de 29 metros da barragem. A experiência de
impotência frente à força da natureza serviu de incentivo ao administrador para, anos
mais tarde, impedir pelo menos algumas inundaçoes. Depois de 35 anos de serviços como
funcionário público estadual, em 1996, José se aposentou. Morando ao lado da barragem,
ficou esperando em vao a contrataçao de um substituto. No primeiro período de chuvas,
nao agüentou ver o rio subindo sem alguém que liberasse gradativamente o nível das
águas através das comportas da barragem. Saiu de casa na chuva e fez o serviço.
A cena se repetiu durante 18 meses a cada subida do rio, que em Ituporanga ainda se chama
Itajaí do Sul. Mesmo sem receber salário, José cansou de impedir inundaçoes em
Blumenau e cidades vizinhas. Perguntado sobre o motivo, diz apenas que nao conseguia ficar
de braços cruzados. "Em 1983 dezenas de pessoas morreram ou perderam tudo que
tinham. Na época, eu nao podia fazer nada. Quando pude, fiz aquilo que achei certo",
diz, sem esconder o orgulho.
Hoje, nem os mais baixos níveis do rio que já viu em toda vida iludem José. O Itajaí
do Sul passou o mês de maio pelo menos cinco metros abaixo do que costuma ostentar. Além
da falta de chuvas, José também coloca a culpa no assoreamento, causado pelo
desmatamento nas margens. "Depois que virou moda derrubar árvores nas barrancas do
rio, ele ficou mais largo e raso. Tomara que nao enlouqueçam de vez, e derrubam em tanta
quantidade que o Vale transborde de novo", pede aos céus.
José conta também com a ajuda das águas que considera sagradas, por nascerem na Gruta
de Nossa Senhora de Salete, em Ituporanga. O pequeno fio de água que nasce na gruta
escorre até o Rio Itajaí do Sul e logo adiante ajuda a formar o Itajaí-Açu.
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O
aposentado José Borges, 52 anos, indica com os braços o nível a que chegou a água na
grande enchente. O rio subiu tanto que mesmo colocando tudo que tinha no sótao da casa
onde ainda mora, no Bairro Garcia, em Blumenau, sobrou a ele apenas a roupa do corpo |
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Blumenauenses
viveram momentos de alfição e dor em julho de 1983, quando o Itajaí-Açu transbordou
devido à grande quantidade de chuvas e invadiu as ruas da cidade |
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A joinvilense Alda
Schlemm Niemeyer, 80, já morava em Blumenau em 1983, no Bairro Ponta Aguda. Ela nao se
contentou apenas com o papel de vítima da tragédia, e trabalhou como radioamadora para
ajudar os desabrigados |
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Administrador da
barragem de Ituporanga, José Antonio Lenzi, 54, hoje se assusta com o pequeno volume do
Rio Itajaí do Sul. Também pudera: em 1983, ele viu as águas passarem por cima do
paredao de pedra construído justamente para deter a força da enxurrada |
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O bombeiro
aposentado Orlando José Pamplona, 52, ainda guarda a jaqueta de couro enviada por algum
desconhecido da Alemanha para diminuir o frio de quem
perdeu na inundaçao |
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As águas do Rio
Itajaí do Sul, em Ituporanga, parecem mesmo abençoadas por Nossa Senhora de Salete |
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