| 15/09/2007 15h45min
Fabrício Carpinejar
Não compreendo quando o futebol torna-se vestimenta da truculência. Ao invés de estender o pano e alcançar com a bandeira a graça sinuosa das pipas, arranca-se a flâmula para empregar a madeira como arma. A bandeira nasceu para o céu, mas é rebaixada progressivamente ao chão.
Não compreendo que a rivalidade entre gremistas e colorados tenha atravessado a fronteira da provocação para o fanatismo terrorista.
Não há diferença nenhuma em quem coloca uma bomba no corpo ou quem emprega o corpo para explodir os outros. Futebol não é uma causa religiosa, não é uma causa nacionalista, não é uma causa separatista. Futebol é um esporte. Haverá trabalho no dia seguinte.
Não compreendo que assassinatos possam ocorrer entre torcidas organizadas pelo simples motivo da vítima ser colorada ou gremista. E que espancamentos tenham como pretexto fora do campo o fato de alguém estar usando vermelho ou azul, branco e preto. Não entendo essa normalidade de não contar mais com a possibilidade de torcer no campo adversário.
Eu levo meu filho de cinco anos para o estádio e desejo que ele ame seu time mais do que odeie qualquer rival. Não ensinarei meu filho a odiar.
É muita covardia usar a paixão de uma torcida para cometer atrocidades. É muita covardia mobilizar a força retrógrada do bando quando um torcedor está sozinho e desarmado.
Isso não é futebol, é crime. Não importa que seja no estádio ou na rua, é crime.
Não é mais questão de paz, é questão de justiça.
Sou colorado, faço piadas, toco flauta, mas nunca parti para a briga porque respeito os gremistas. Eles são como eu. Iguais em sua fé e esperança de que um título venha para recompensar a fidelidade. Iguais, nem melhores, nem piores. Sofrem como eu. Amam como eu. Brincam como eu.
Sem os gremistas do outro lado, nunca absorveria as derrotas. Os gremistas transformam a dor da derrota colorada em humor. Na segunda-feira e quinta-feira no emprego, gremistas estarão me esperando para rir daquilo que considerava sério, trágico e fatal, e logo percebo que foi mais um jogo de futebol, não o último, e sigo minha vida mais leve.
A gozação dos gremistas, assim como a dos colorados, é terapêutica, porque nos possibilita diminuir a gravidade das derrotas e aumentar o entusiasmo das vitórias. Cada um tem suas razões, e ninguém tem a palavra final.
É um despropósito um colorado tenta converter um gremista e vice-versa.
Ambos os times cresceram para alcançar o outro. Os três títulos nacionais do Inter na década de 70 resultaram nos títulos nacionais e no Mundial do Grêmio nos anos 80. O Mundial do Grêmio na década de 80 desencadeou o Mundial do Inter em 2006. São raras as cidades com dois times campeões do mundo. A concorrência estimulou a criatividade e a superação dos limites regionais.
Não é caso de pregar tolerância. Tolerância é para quem não tem respeito. Respeito se ensina em casa.
Sou de uma família padrão em que só a mãe não tem time, para não denunciar sua preferência aos filhos. Mãe é igual a comentarista esportivo, não diz seu time de coração para não entregar de bandeja seu filho predileto (ma0s desconfio que ela é gremista). O pai e dois irmãos torcem pelo Grêmio e eu e a minha irmã pelo Inter. É uma residência que sai gritando pela chaminé. Explique-me: como posso odiar meus irmãos? Ou alguém acha que não sofri com os "secadores" na própria sala? Ou alguém acha que não tive que segurar a raiva quando escutava o trio narrando o gol adversário? Faz favor, eu convivi com meus medos e frustrações, meus recalques e dissabores, até reconhecer que a cidade não era dividida entre os gremistas e os colorados, a cidade é multiplicada.
Reconheço no futebol meu melhor amigo. Queria ser jogador, é claro, quando menino. Queria ser Paulo Roberto Falcão. Nunca pedi um autógrafo a ele por não saber o que falar _ ainda não decorei o discurso. Seu jeito de jogar sem olhar para as chuteiras não me condicionou a jogar bem, mas agora danço melhor. Ao menos, não olho para meus pés. Era um menino retraído, feio e que falava errado. A bola foi minha companhia na infância. Seu cheiro de terra e asfalto é camada sempiterna em minhas mãos. Curtida, o gomo descolando pelo uso tal língua de cão, o estômago da câmara pulando pra fora. Ela diminuiu minha solidão, ajudou a fazer turma, favoreceu o surgimento de namoradas.
Futebol é amor.
Precisamos de mais colorados e gremistas sadios, menos colorados e gremistas doentes. Que o futebol seja a cura das moléstias, não morte cerebral. E que inicie no Gre-Nal desse domingo, às 18h10min.
* Poeta, pai de dois filhos, autor de "Meu Filho, Minha Filha" (Bertrand Brasil, 2007)
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