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O X da Educação  | 12/12/2010 15h59min

Educando educadores: encruzilhada na sala de aula

PATRÍCIA ROCHA

A história de vida da professora estadual Camila Bairros sintetiza as conquistas e os dramas de milhares de professores brasileiros. De costas para o quadro, a professora encara a turma.

– Vamos, sôra, não vai dar tempo! – diz um garoto.

Rosto sereno, ela aguarda que os alunos de primeiro ano do Ensino Médio da Escola Estadual Professor Julio Grau façam silêncio e se acomodem nos seus lugares.

– Só entrego a prova quando todo mundo ficar em silêncio.

– Deixa a sôra falar! – apela uma garota na segunda carteira, junto à parede.

Só quando o burburinho diminui, Camila Geraldo Bairros, 28 anos, entrega as cópias xerocadas das 15 questões sobre clima e atmosfera escritas à mão, para serem respondidas a dois com consulta até o fim da aula. De mesa em mesa, ela circula entre as duplas, gesticulando para lembrá-las de como é o funcionamento das correntes marinhas. Tema que a professora formada em História no ano passado pelas Faculdades Porto-alegrenses (Fapa) também aprendeu recentemente, no mesmo livro dos alunos. Para solucionar uma necessidade emergencial da escola e completar sua carga horária, Camila foi chamada a ensinar também Geografia. Não é uma situação incomum, e ela se apoia no curso de pós-graduação de Ensino de História e Geografia iniciado em março – “Na UFRGS”, sublinha, orgulhosa –, mas admite que não é o ideal.

O sinal sonoro que agita os alunos é a senha para a professora seguir para a próxima turma de 1º ano. Desta vez, os alunos terão de copiar as questões da prova do quadro. Uns trabalham em silêncio, outros se revezam em fazer graça.

– Todo homem tem uma diva dentro de si, né, sôra?

– Agora não é o momento.

– Tá brabona hoje, sôra!

– Olha para mim e vê se tenho jeito de braba – diz, com voz branda.

É a primeira aula depois de Camila ter reunido a turma para resolver um impasse: a bagunça estava impedindo que fizesse seu trabalho. Alguns alunos reclamaram que a aula estava monótona, e ela prometeu tentar mudar. Gostou de tê-los ouvido, e hoje observa que estão mais afetuosos. Ainda assim, repetidas vezes pede “shhh”, chama atenção de um e de outro e avisa a um dos mais falantes para tirar o fone de ouvido.

– Mas é jogo da Seleção, sôra! – responde ele, e os fones ficam onde estão.

No curso de licenciatura, Camila não lembra de a questão “domínio de turma” ter sido tratada – aprendeu na prática, por exemplo, que não se pode entrar em uma sala de aula sorrindo, ou corre-se o risco de sugerir falta de limites. Mas lembra-se de ter sido ensinada a se mostrar simpática e interessante para prender a atenção dos alunos. No entanto, atestou que muita simpatia e descontração nem sempre funcionam.

– Na faculdade, é ilusão total: todos os alunos estão interessados, é uma alegria quando bate o sinal e eles entram para fazer a prova – avalia Camila. – Onde estudei, são muito marxistas, e se parte do pressuposto de que o aluno é o oprimido. Às vezes, o professor é o oprimido.

A crença de que investir nas séries iniciais é prioridade para desatar o nó da educação no Brasil não convence a diretora da Escola Estadual Professor Júlio Grau, Marta Tolentino. À medida que o tempo passa, ela fica mais convicta de que o foco deveria ser outro:

– Infelizmente, o profissional de séries iniciais a cada ano piora. A mudança deveria acontecer primeiro na qualificação do ensino superior.

O mesmo ponto – a formação docente – tem sido abordado por quem pensa soluções para o ensino deficitário no Brasil. Em uma reunião com professores em Belo Horizonte, o especialista em educação Claudio de Moura Castro perguntou:

– Qual de vocês saiu da faculdade preparado para dar aula?

Silêncio. Moura Castro perguntou quanto tempo, na prática, eles levavam para aprender a ensinar. Resposta: cerca de cinco anos.

– Durante cinco anos, os alunos desses professores são cobaias, não aprendem – avalia Castro.

A culpa, segundo o especialista, é da ideologização do ensino entre os anos 1970 e 1980. Nesse período, as faculdades de Educação teriam sido impactadas pelas teorias esquerdistas de educação francesas, a propagação das teorias da dependência e do imperialismo cultural e a concepção da escola como um meio em que se reproduzem as desigualdades sociais. Há, aí, boas ideias, acredita Castro, mas que hoje não serviriam mais de base para um modelo educacional:

– Não estão aprendendo pedagogia, mas a teoria da teoria da pedagogia. Isso não adianta.

Para o diretor da Faculdade de Educação da UFRGS (Faced), Johannes Doll, a crítica a uma formação ideologizada é limitada, uma vez que não há lugar fora da ideologia.

– Se estou em uma sala de aula com 40 alunos, não há tempo para reflexões teóricas profundas. Mas, para organizar o trabalho, fazer uma reflexão sobre o que deu certo e onde houve problemas, é preciso conhecimento teórico – avalia Doll.

A resposta seria um caminho do meio, entre a técnica e a reflexão. Mas, na avaliação de Paulo Blikstein, professor doutor da Escola de Educação e da Escola de Engenharia da Universidade de Stanford e consultor de projetos educacionais, verificam-se nas faculdades de Educação os dois extremos (leia entrevista na contracapa): quem acha que a formação do professor tem de ser puramente filosófica e quem acha que se deve ensinar técnicas de ensino.

– Esses dois componentes têm de estar presentes, e infelizmente não estão – diz Blikstein.

No contato com docentes e estudantes, a professora do curso de Letras da Fapa e assessora ao desenvolvimento dos conteúdos programáticos dos Referenciais Curriculares no Rio Grande do Sul, Ana Mariza Filipouski, e Marli André, doutora em Psicologia da Educação e professora da Pós-graduação em Educação da PUCSP, que desenvolve pesquisas sobre a formação de professores, ouvem uma mesma queixa: geralmente os mestres não aprendem a ensinar durante a sua formação. Na sociedade da informação, destaca Ana Mariza, os alunos – assim como os filhos – já não são os mesmos, têm acesso a tecnologias e a informações, mostram-se menos pacientes com métodos e atividades tradicionais. Paralelamente, em decorrência da bem-vinda democratização do ensino no Brasil, professores se veem diante de alunos com bagagem cultural precária, vivências e realidades muitas vezes radicalmente distintas das deles. E é nesse contexto que docentes precisam reajustar as expectativas e as estratégias de ensino e, principalmente, a percepção de seu papel em sala de aula.

– Já houve tempo em que encontrávamos alunos com as mesmas expectativas em relação à escola que os professores tinham. Hoje, o conhecimento pode chegar aos alunos de formas muito mais atraentes, com recursos mais versáteis do que aqueles que a escola pode oferecer e isso impacta a respeito do lugar que ela ocupa na vida dos jovens – avalia Ana Mariza.

A prova sobre clima se estende pelo terceiro período, e a turma segue agitada. Um guri graceja sobre a letra de Camila no quadro e faz comentários sobre os atributos físicos de outra professora:

– Isso é bullying, né, sôra?

Com menos de dois anos em sala de aula, Camila já viveu situações de violência. No ano passado, na primeira escola em que lecionou, no bairro Sarandi, um aluno da oitava série ameaçou lhe dar um soco na boca se ela insistisse em retirar o celular que ele mantinha durante a aula. Intimidada, Camila deixou-o com o aparelho. Buscou ajuda da direção, mas não se sentiu apoiada e acabou pedindo para sair da escola.

Contratada pela SEC para dar aula no bairro Agronomia, Camila voltou a sentir medo. Um dia, a cadeira do professor de uma sala da quinta série esperava por ela com uma agulha presa ao estofado, com a parte pontiaguda para cima. Um menino de 11 anos sentou-se na cadeira antes de Camila, e a agulha penetrou na coxa do garoto.

– Era para ser eu – diz a professora, que acabou pedindo para deixar também aquela escola. – Aqui (no colégio onde leciona hoje), isso não acontece.

Bate o sinal do recreio. Ao menos para os alunos. Enquanto os colegas conversam na sala de professores, Camila estuda Geografia. E não só durante o recreio. À noite, costuma sair da cama para estudar até ser vencida pelo sono. Pelo menos, o curso de pós-graduação tem ajudado a professora a ensinar a disciplina. Do material sobre cartografia, por exemplo, ela teve a ideia de propor que os alunos fizessem a planta baixa de suas casas para trabalhar a representação de espaço. Deu certo, reconhece, orgulhosa: eles se sentiram desafiados e as notas foram boas.

A rotina de Camila é carregada. Quatro vezes por semana, sai de casa, em Alvorada, às 6h30min, toma o ônibus Vila Elza que, depois de 50 minutos, deixa-a na Avenida Assis Brasil, perto da escola, na zona norte da Capital. Às terças, Camila dá aula pela manhã, e às quartas, folga. Naquela tarde, sairia da escola para dar aula particular de História ao filho de uma colega. Chegaria em casa às 21h – a sorte é que o marido, o bibliotecário Mário Sérgio Leandro, já teria preparado a janta. E na manhã seguinte, depois de um dia cheio, teria aula no curso de pós-graduação:

– Acabo chegando uma hora atrasada e, às vezes, durmo na aula. Eles ficam muito brabos.

A formação dos professores está no cerne do problema da educação no Brasil. Mas, diz Claudio de Moura Castro, o problema é mais amplo:

– Não adianta ter professores mais bem formados se há um ambiente muito hostil e agressivo nas escolas públicas. É preciso mexer na formação, sim, mas é preciso melhorar o ambiente de trabalho com programas de disciplina, contra o bullying, a alienação e o sentimento de desgaste.

O diretor da Faced, Johannes Doll, destaca o quanto os jovens mestres podem se sentir desassistidos no Brasil. Nascido na Alemanha, o professor diz que naquele país há mais apoio na transição da universidade para o exercício da profissão: lá, quando um professor se forma, faz um primeiro exame, o que seria aqui a conclusão da licenciatura, e, depois, passa por processo semelhante ao período de residência para os médicos. Por dois anos, vai trabalhar na escola, mas acompanhado de perto por um professor experiente. Ao final, faz outra prova, e só aí será professor.

– Ninguém acredita quando digo que o professor alemão tem entre 26, 28 horas em sala de aula e o restante do tempo de um contrato de 40 horas é para preparação e atualização – compara Doll.

Em outubro, Camila ainda não sabia dizer ao certo quanto ganhava. Não se tratava de discrição. Ela ainda não havia feito as contas ao certo: somente no dia 27 de setembro recebeu de uma só vez os salários de seis meses – só conseguiu se manter às custas do marido. A quantia excedeu os R$ 6 mil, daí Camila calculava que seu salário mensal era pouco mais de R$ 1 mil.

– Não reclamo de salário. Entrei nessa vida sabendo que ganharia pouco.

Filha de professora de séries iniciais, Camila concluiu o curso técnico em Mecânica e chegou a trabalhar em uma metalúrgica. Mas seguiu a profissão da mãe por dois motivos: o gosto por história e o desejo de fazer curso superior. A licenciatura, com desconto na mensalidade, era a opção mais viável. Mas ela quer mais. Planeja cursar Economia e, um dia, dar aula na faculdade.

Nos anos 2000, são recorrentes as notícias de professores agredidos por alunos. O professor, que ao lado do padre e do prefeito da cidade já foi uma referência de respeito, hoje tem sua autoridade questionada, em sintonia com a desvalorização econômica pela qual passa a classe docente. Mas, ainda assim, milhares formam-se professores todo ano no Brasil. Quem são eles e o que buscam?

O exaustivo estudo Professores do Brasil: Impasses e Desafios, divulgado em setembro pela Unesco, traz algumas respostas. No levantamento realizado com alunos de Pedagogia e licenciatura, estão as razões pelas quais estudantes escolhiam a docência: 53,4% deles afirmaram o desejo de ser professor, 20,8% para ter uma segunda opção caso não conseguisse exercer outra atividade, 11,6 % por terem tido um bom professor como modelo. Do total de entrevistados, 5,2% responderam que não queriam ser professores, 3,5% disseram que se tratava da faculdade mais próxima de sua residência, e 3,9% citaram influência da família. O levantamento aponta ainda a renda familiar desses estudantes: 50,4% entre três e 10 salários mínimos mensais, e 39,2% até três salários.

– Quando se decidem pela docência, os alunos têm muita clareza de que ser professor é uma profissão que enfrenta grandes desafios, mas acreditam que é uma profissão de grande importância por formar a futura geração do país – avalia Marli André.

Pesa também o fato de os cursos de pedagogia apresentarem médias mais baixas no vestibular, condições facilitadas de pagamento das mensalidades em algumas universidades privadas e opções de ensino à distância.

Findo o recreio, a aula na turma do 2º ano começa a partir de uma pergunta da professora: o que é agricultura de plantation? Alguns alunos se arriscam a dar suas definições, e ela começa a escrever no quadro as palavras-chave: monocultura, países periféricos. Camila repete: “Pensa comigo”, enquanto estala os dedos pedindo silêncio.

Ainda assim, Camila defende que nem sempre o silêncio é bem-vindo: quando faz uma pergunta e todos começam a responder, ela acredita que estão pensando no que estão dizendo. Teve essa mesma sensação no dia em que duas alunas fizeram uma maquete para explicar o funcionamento do vulcão, com corante fazendo as vezes de magma: nessas horas, diz, eles estão construindo conhecimento. É o que deseja. Ex-aluna de escola pública, Camila, que se esforça para ensinar Geografia, formou-se no Ensino Médio sem ter tido essa disciplina. Sua meta é fazer diferente com seus alunos:

– Estudo para que eles não tenham lacunas de conteúdo como eu tive.

O que define um bom professor?

Ao se descrever o professor ideal, corre-se sempre o risco de descrever um super-herói, como alerta Johannes Doll. Ainda assim, parece consenso que o bom professor não é mais o detentor da informação nem aquele que transmite o saber – é aquele que viabiliza a construção do conhecimento. Não apenas saber específico de uma disciplina, mas capacidade criativa e espírito crítico.

Uns nascem para o magistério quando eram alunos e tinham um mestre como modelo, outros ao seguir a tradição da família, como a diretora Marta Tolentino, e os que dizem ter nascido no dia a dia da escola. E há aqueles, diz Marta, que nunca nascem.

Com dois anos de carreira, Camila crê que o professor nasce nos impasses de sala de aula. Problemas que não a impedem de se dizer feliz:

– Adoro fazer o que faço.

ZERO HORA

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