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Itapema FM  | 14/03/2015 14h01min

Alex Atala: "A relação do homem com o alimento precisa mudar"

Um dos principais chefs do país defende a culinária sustentável e diz que é o maior inimigo da cozinha brasileira

Bruno Felin  |  bruno.felin@zerohora.com.br

O paulista Alex Atala, 46 anos, é o cozinheiro responsável por colocar os ingredientes brasileiros em seu mais alto nível — o D.O.M., seu restaurante superpremiado, está desde 2011 entre os 10 melhores do mundo no ranking da revista Restaurant. Em 2013, criou, com um grupo de amigos, o Instituto Atá (radical da palavra fogo, em tupi), para promover uma relação mais sustentável com os alimentos, a natureza e a diversidade de ingredientes. Nesta entrevista, você vai conferir:

— qual a proposta de Alex Atala para mudar nossa relação com os alimentos
— como fazer com que a culinária brasileira seja conhecida no mundo inteiro, na opinião de Atala
— como ele percebe os profissionais jovens chegam hoje à cozinha
— o que Atala pensa sobre a febre dos food tracks
— por que ele se considera o maior inimigo da cozinha brasileira

Confira, a seguir, os principais trechos:

Como surgiu a ideia do Instituto Atá, que promove a culinária sustentável?

São várias pontas, mas quero contar um momento fundamental para a fundação do Atá. Comprei umas terras na Amazônia e não tinha conhecimento de quão profunda e intensa é a relação do povo com a terra. Comprei uma posse mansa, centenária e pacífica, que de pacífica tinha só o título. Havia um litígio entre o antigo proprietário e a comunidade. Quando entendi a besteira, fui lá na comunidade, me apresentei e disse: "Qual é a terra de vocês? Eu não quero, tenho mais do que eu preciso". Em uma tarde, um problema de violência e mal-estar foi resolvido. Me senti um cara acima da média, que podia mudar a Amazônia. Dava para ver que havia uma subnutrição na primeira infância lá e eu, motivado pelo altruísmo e o excesso de inteligência que achei que tinha, comecei a mandar cestas básicas. Quando voltei, era lata e saco plástico em todo lugar. Desci do carro e fui dar um chacoalho em todo mundo, com aquela arrogância, e recebi uma resposta na mesma altura. Um dos senhores da comunidade falou: "Alex, a culpa é sua. Embalagem de bicho é pele, embalagem de fruta é casca, embalagem de peixe é escama. Eu jogo (fora)". Nessa hora, cristalizei: tudo aquilo que estava no chão era mandado por mim. Ainda que a intenção fosse nobre, estava sobrepondo a minha cultura à uma que já existia.

A campanha #eucomocultura, para que a gastronomia brasileira seja incluída no segmento das atividades culturais, é um dos primeiros movimentos do Instituto Atá. Como está sendo a adesão ao abaixo-assinado?

Quando você se propõe a juntar um milhão de assinaturas, em uma conta reta, significa que, a cada 200 brasileiros, um precisa assinar. É uma empreitada titânica, mas acho que é bastante possível, porque a gastronomia vem ocupando um espaço na vida das pessoas maior do que a gente imagina.

Como a relação com a comida pode ser transformada no dia a dia?

A relação do homem com o alimento precisa mudar. Isso não começa na minha geração, talvez comece na próxima. Estamos falando de educação. Levar a gastronomia ou culinária às escolas do Ensino Fundamental da rede pública, se possível da particular, é a primeira chave de transformação. Essa reaproximação, revisão da relação do homem com o alimento custa zero. Ela demanda tempo. Essa mudança, a chave de um amanhã melhor, passa primeiro pelo consumo consciente, que não é só o fair trade, é efetivamente o exercício do livre arbítrio. É comprar aquilo em que você realmente acredita e não comprar aquilo com o que você não comunga.

Não comprar o que, por exemplo?

Quando falamos não comprar, estamos falando da grande indústria do alimento. E o que eu quero não é promover uma grande guerra, mas criar uma nova demanda de mercado. Essas empresas ficaram tão grandes porque elas têm habilidade de entender o mercado antes dos movimentos. Se todos nós, em uma ação de consumo consciente, não comprarmos alguns ingredientes, a empresa vai se adaptar à nova demanda. Custo zero. Temos que gerar menos lixo, utilizar 100% dos produtos. O distanciamento do homem, principalmente urbano, do ingrediente no seu primeiro momento, faz com que aquilo venha a ele com um valor despercebido, que não é financeiro, é o valor de vida, natural.
Um exemplo: só uma parte da carcaça de boi é utilizada na indústria de alimentação. Todo o resto vai para uma indústria de alimentos, e a gente não sabe exatamente se vai virar ração, linguiça ou salsicha. Também não sou contra essa indústria, mas tirar melhor partido do ingrediente vai fazer com que se consuma melhor. A gente sonha com uma sociedade menos competitiva e mais colaborativa.

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Seria preciso aproximar consumidores e produtores?

O Brasil hoje é campeão mundial de emissão de químicos na agricultura. Se a gastronomia for considerada cultura, a cultura pode fazer uma interlocução entre a produção e o mercado de defensivos e fertilizantes para que substâncias proibidas no mundo inteiro não sejam liberadas aqui. Porque o sistema agrícola do Brasil não está matando animais, está esterilizando ecossistemas. Não dá mais para discutir gastronomia do chef bacana vendendo para o cliente conhecedor, viajado e versado. A Roberta Sudbrack tem uma frase genial: "O meu mise en place (a etapa inicial para o preparo dos pratos) não começa na cozinha, começa na terra, junto com o produtor".

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Deveríamos ter mais pesquisadores voltados para identificar ingredientes na Amazônia, por exemplo?

A ciência diminuiu o empirismo na culinária. Tinha muitas coisas que nós fazíamos, sabíamos fazer, mas não sabíamos por quê. A ciência jogou e vai jogar novas luzes na cozinha. Vai tirar processos do intuitivo e trazer para o real, o raciocínio. E isso faz com que eu consiga chegar a métodos ou a pontos que eu não conseguiria nas cozinhas tradicionais. Mas vai além. Fala-se muito que o Ferran Adrià (chef catalão, criador do mítico restaurante elBulli) causou uma grande revolução, mas não dá para negar que hoje a antropologia é tão central na cozinha quanto a ciência exata. Se a física e a química eram o que moviam a gastronomia, hoje elas ganharam o reforço deste entendimento do que seja o ato de comer, o ato de cozinhar, transformar, alimentar. Acho que a minha geração deu uma contribuição tão importante quanto a dele, que revolucionou (as técnicas) sozinho.

Sempre se compara muito o Peru com o Brasil, pela proximidade, pelos nossos vizinhos estarem fazendo gastronomia de qualidade com produtos locais. Como você observa a experiência deles de sucesso e como o Brasil poderia fazer para exportar sua cozinha?

Nos anos 1990, o ceviche era um prato sul-americano. Hoje está no mundo. Isso aconteceu porque encontraram-se ingredientes em vários lugares do mundo para repetir essa receita. O maior inimigo da cozinha brasileira é a impossibilidade de repeti-la pelo mundo. O desconhecimento da própria cultura gastronômica, a baixa autoestima sobre a nossa comida e nossa baixa capacidade de promovê-la pelo mundo fizeram com que a cozinha brasileira seja desconhecida. A cozinha brasileira não vai existir quando tiver 10 chefs brilhando pelo mundo. Vai existir quando ela não for dos chefs, quando ela for nossa. No México, você entra em um táxi e o motorista vai falar de cultura pré-hispânica. Seria sensacional chegar ao Brasil, pegar um táxi e o cara versar sobre farinha de mandioca.

As receitas do D.O.M. ajudam a divulgar o país até mesmo para os brasileiros?

Vou usar um exemplo mundial. O espeto corrido. Parte da tradição mais simples de cozinhar, que é expor um alimento às brasas, mais a forma de servir, a forma como se coloca a picanha no espeto, a gestualidade do corte, isso é repetido no mundo inteiro. O Brasil tem isso, só não percebeu. Olha a arte de fazer um churrasco brasileiro até onde ela foi levada. Quando você fala de uma cidade, de um comércio que foi desenvolvido, de um jeito de comer, em que até a gestualidade do corte importa, é cultura pura. Não vou nem falar das baianas do acarajé, do tucupi, do tacacá. Hoje você vai no mundo inteiro e o que saiu de Nova Bréscia está lá. O Brasil precisa se apropriar dessas virtudes.

O D.O.M. deve ter um dos maiores índices de funcionários por comensal servido no país, chega próximo de um para um e cobra valores altos (R$ 380 por quatro pratos no menu degustação). O seu restaurante dá muito dinheiro ou a sua renda hoje é mais baseada no que faz fora do restaurante?

O D.O.M. nunca deu muito dinheiro, não é um mau negócio, mas nunca foi rentável. Ele me dá um salário e é o que ele vai dar sempre. Mas eu decidi isso, eu tinha clareza. Não fiz restaurantes para ficar rico. Restaurantes gastronômicos nunca foram bons negócios. Sou mais um que aceitou trabalhar por um salário, mas ser feliz e se realizar por meio dessa profissão. Sou muito mais feliz com essas dificuldades financeiras do que cheio de dinheiro com todas essas coisas no peito sem poder falar e realizar.

Há um boom da cozinha, da procura pela profissão há pelo menos uns 10 anos. O aumento do número de profissionais mudou de que forma o setor?

Hoje a gente tem jovens nas cozinhas, é uma garotada mesmo. Recebo uma média de 10 estagiários por mês. Acho que tem um lado muito positivo e tenho que ser incentivador disso, mas não apenas bater palmas. Eles melhoraram, e muito, o cenário gastronômico no Brasil. Mas existe uma diferença entre começar e brilhar, ascender. Muitos deles cortam caminho. E aí, a seleção natural é cruel. Com a internet, esses caras já chegam na cozinha com informação técnica muito boa, chegam mentalmente preparados. Mas não têm exercício da profissão, que é onde você tem domínio e lapidação da técnica. Repetição é fundamental.

Você procura ajudar no treinamento? Você sempre foi considerado um chef linha dura...

A gente é bem linha dura ainda. Com os anos, a gente ganha experiência e, talvez, fique mais maleável, mas tenho que gerir restaurantes com a cabeça e não com o coração. Tenho o direito de chegar na minha cozinha e dizer que o trabalho que está sendo executado por um ou por todos está uma droga. Mas não posso dizer que nenhum deles é uma droga. Este entendimento é o que talvez falte à cozinha. Eu vejo esses programas de cozinha em que a agressividade do chef é colocada para frente. Não é isso que se busca mais.

Há dezenas de programas de culinária na TV. Você teve um (Mesa para Dois, no GNT). Como foi essa experiência? Você assiste aos programas atuais?

Foi legal, mas o que me tirou dela foi não ser feliz. Eu tenho quase 30 anos de cozinha e é uma delícia colocar meu uniforme de manhã e tirar só de madrugada. Fiquei quase dois anos na televisão e percebi que, nos últimos seis meses, a cada gravação eu ficava sem dormir, ia fazer sofrendo, não gostava de fazer aquilo. Quanto aos programas atuais, não os assisto.

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Quanto tempo você tem passado na cozinha? Que parte desse tempo é criando e que parte é cozinhando no dia a dia?

Todos os jantares, muitos almoços. Ontem, saí depois da meia-noite. Eu trabalhei em umas costelas gigantes que vamos assar durante a noite para servir depois de amanhã. Ainda tenho o prazer de continuar no processo, de criar. O D.O.M. vem repetindo menus degustação de quatro pratos salgados. Vamos mudar o menu agora. E ele vai vir absurdamente diferente. Vem muito pontuado por contrastes de cozinha clássica, cozinha moderna, tempos de serviço, é praticamente um novo D.O.M. E estou imerso em criar essas receitas e redesenhar esse menu.

Pode revelar alguma coisa?

Todos sabem que sou adepto de ingredientes brasileiros, de uma cozinha de inovação, contemporânea e que eu tenho uma base clássica. Essas três pontas vão aparecer de uma forma mais contundente. O que é moderno ficará mais moderno, o clássico mais clássico, e o Brasil vai gritar no meio de tudo.

Na última década, as novas técnicas estavam bombando. Não parece que estamos voltando também para uma cozinha mais amorosa, da mamãe?

Não acho. Passamos por uma efervecência da técnica, até que as pessoas entenderam que a técnica não tinha sabor e era hora de voltar ao sabor. Isso sim. A cozinha da mamãe é muito relativa. Por exemplo: tenho um restaurante como o D.O.M., famoso por fazer comida moderna. E tenho o Dalva e Dito, com uma cozinha mais maternal. Há muito mais técnica molecular na cozinha do Dalva e Dito do que no D.O.M. Essas técnicas fazem com que a gente ganhe escala, precisão. Tudo é feito na ponta do dedo. É quase um trabalho de relojoeiro.

É como você definiria a cozinha do D.O.M.?

No D.O.M, temos mãos absurdamente treinadas. O D.O.M. é luxo. Mas o que é luxo? Se conhece Gucci, Prada, Louis Vuitton. Existiram homens com esses nomes e eles tinham a mesma profissão: eram artesãos do couro. Essa habilidade, de juntar dois couros, dar acabamento, conforto, design, isso gera luxo. O que fizeram Paul Bocuse, Joël Robuchon, Ferran Adrià a vida inteira? A habilidade de juntar ingredientes e gerar sabor, apresentação, emoção, isto é luxo.

É muito mais manualidade do que ciência, muito mais trabalho de artesão. Execuções perfeitas, cortes precisos, equilíbrios, surpresas. O D.O.M. busca o depois da vírgula. Qual sua avaliação da onda dos food trucks?

Eu gosto deles, acho que tinham que existir, o pecado é que essa lei que possibilitou o food truck não é inclusiva. Ajuda muito quem tem poder aquisitivo para comer em food trucks, eles não são baratinhos. Ajuda pessoas como eu, que estão estabelecidas e que dispõem de um capital importante. Mas, no Estado de São Paulo, a lei que regulamenta comida de rua continua parada. Tudo que tem comida de rua hoje é ilegal. Inclusive os food trucks. Eu sonho com a regulamentação de toda a comida de rua, ela é o cartão de visitas de uma cidade.

Você sempre elogia muito o serviço brasileiro dos restaurantes. Por quê?

É o melhor serviço do mundo. O problema é que as pessoas gastam pouco tempo em treinamento. O brasileiro é sorridente e servil. É um povo que gosta de fazer bem. As pessoas falam do serviço na Europa, mas esquecem daquele momento em que você está sentado e o garçom coloca a conta na mesa, que o cara bufa se você não sabe pedir. Não acho o serviço lá a fina flor. E vejo serviços afinadíssimos aqui. A qualidade humana brasileira é muito boa.

Você tem dito que quer passar a bola de chef número 1 do Brasil. O que te cansou?

Eu não cansei, mas é que o Brasil está pronto. Tem os ingredientes e tem uma nova geração. Eu continuo acreditando que o maior inimigo da cozinha brasileira sou eu. Se eu continuar querendo tomar a frente, não vai. É natural que, como um cara mais velho, com um restaurante, que as atenções venham para mim, mas não podem mais vir para mim, precisam ir para um conjunto. Do Rio Grande do Sul ao Pará, à Amazônia, te dou um por um grandes chefs nas capitais brasileiras. É minha função dar um passo para trás.

Mas quem?

Eu tenho evitado dar nomes porque as pessoas envaidecem muito rápido. Tenho evitado dar nomes, a não ser os que já estão aí, como a Roberta Sudbrack, a Helena Rizzo (ambas chefs gaúchas, a primeira radicada no Rio, e a segunda, em São Paulo).

Você sempre fala muito de ingredientes da Amazônia, do Norte, do Nordeste, do Cerrado. E o Pampa?

Obrigado por essa pergunta. Vou fazer um preâmbulo. O cartão-postal mais visitado da cidade de São Paulo é o nosso Mercado Municipal. Ele reflete muito bem a nossa diversidade cultural, com italianos, portugueses, japoneses. Já o ingrediente brasileiro não está bem representado. Existe um mercado de Pinheiros onde o Atá está fazendo um projeto para administrar cinco boxes dedicados a cinco biomas. Já estamos fechados com Cerrado, Mata Atlântica, Amazônia, Norte e Nordeste e falta um. Estou buscando desesperadamente alguém para representar os pampas. Pela história do churrasco, pela cultura do chimarrão. Esse box não tem que vender comida, tem que vender cultura. Toda a cultura gaúcha, o pampa, tinham que estar presentes nesse mercado. E estamos buscando quem, onde, e é duro.

Que ingrediente do Sul te chama a atenção?

Na Serra, tem o alho bugre, um alho grande, amargo, um tremendo de um ingrediente, mas as pessoas desconhecem. Existem pérolas que as pessoas simplesmente não conhecem.

Qual o seu prato favorito?

Um arrozinho com feijão, porque me traz lembranças de infância.

E o que você não come?

Nada. Como de tudo, é o meu trabalho.

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Rubens Kato / Divulgação

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Foto:  Rubens Kato  /  Divulgação


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