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Itapema FM  | 05/02/2015 10h47min

Thiago Momm comenta a atualidade do livro O Estrangeiro, de Albert Camus

Para o colunista, nosso noticiário não para de lembrar o romance publicado em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial

Atualizada às 10h47min Thiago Momm  |  thiagomomm@gmail.com

Dá na mesma

Um PM de folga mata um surfista em uma tola discussão matinal. Em menos de meio minuto de perseguição, um PM dá nove tiros de fuzil contra um carro que não parou, matando uma menina. Etc. Nosso noticiário não para de lembrar O Estrangeiro, o clássico de Albert Camus.

Isso porque o absurdo anestesia, e poucos protagonistas sintetizam tão bem a anestesia do absurdo quanto Mersault, o protagonista do romance. O livro foi publicado em 1942, durante a Segunda Guerra. Daí se poderia associar a indiferença do personagem a um mundo cada vez mais non sense, mas Camus preferiu não insistir na conexão. A atmosfera da época certamente estimulava vidas tão sem sentido quanto a de Mersault, mas a obra ganha mais ao preferir fazer literatura com a falta de sentido, não com as suas causas.

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Mersault não é um Proudhon maldizendo ou um Thoreau desacreditando abertamente a sociedade. É isso o que o diferencia e chamou tanta atenção dos leitores na época. Ele tem como mantra "cela n'est igual", um "dá na mesma" que aplica para tudo. Marie insiste em saber se ela a ama. Ele diz: "Eu respondi que isso não quer dizer nada, mas que me parecia que não". Também o vemos com sono no velório da sua mãe, ou dizendo ao chefe, sobre a possibilidade de ir trabalhar em Paris: "Eu respondi que a gente não muda jamais de vida".

Finalmente, claro, Mersault comete o famoso assassinato de um árabe na praia. Sua motivação gratuita é um marco da literatura. Melhor dizendo: os motivos existiam, mas eram estapafúrdios. O tempo parece não passar. "Eram o mesmo sol e a mesma luz, sobre a mesma areia, que se prolongavam até aqui. Fazia já duas horas que o dia não progredia, duas horas que lançara âncora num oceano de metal fervilhante". Ele pensa em dar meia-volta e não matar o árabe, mas desiste porque sente "toda uma praia vibrante de sol" atrás de si. Insolação e dúvidas se misturam e ele atira.

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Não podemos explicar a falta de sentido do homicídio e da vida de Mersault em geral pela anedônia, a incapacidade de ter prazer, a "rigidez afetiva em consequência de experiências traumáticas" (Houaiss). Mersault gosta de nadar, gosta do sol, às vezes gosta inclusive de Marie. O problema - como sabemos hoje, quando focamos cada vez mais em entretenimentos aleatórios em detrimento de longos projetos - é que a sua existência é um eterno presente. O romance é uma sucessão de observações instantâneas suas, e muito menos suas considerações sobre passado ou futuro.

Não à toa o assassinato na praia. Calor e praia são ícones de abandono ao presente.

Muita gente julga o focar no momento atual uma sabedoria. Como resposta a expectativas demais concentradas em anos futuros, sem dúvida. Como motivação permanente, tende a nos levar para o aleatório, para o "dá na mesma" de Mersault. Os tiros dos PMs podem ter muitas explicações, mas em algum momento elas parecem passar, como tantos outros dos nossos absurdos, pela falta de sentido que é não ser levado por nada além do agora.

 

ANEXO
Wikicommons / Divulgação

No livro de Camus (foto), o protagonista Mersault tinha como mantra um "dá na mesma", que aplicava para tudo
Foto:  Wikicommons  /  Divulgação


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