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Itapema FM  | 18/09/2014 12h01min

Migrando

Colunista Thiago Momm fala sobre o impacto das vendas online nas livrarias

Atualizada às 14h48min Thiago Momm  |  thiagomomm@gmail.com

Pela altura e aparência, o moleque tinha seis ou sete anos. Ele foi estendendo o braço e pinçando o Cebolinha na prateleira até ser esculachado pela mãe: "Você não sabe ler. Eu não vou comprar o gibi para você ver figurinhas".

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Caricato, eu sei. Um microconto simplório da ignorância. Em todo caso, realmente aconteceu: Livraria Laselva do Aeroporto de Guarulhos, quarta-feira à noite, último dia 10. A mãe falou de um jeito tão decidido que cheguei a rir.

Ficou menos engraçado quando olhei melhor em volta. Não porque os adultos alfabetizados estavam comprando livros de complexidade moral inferior à do Cebolinha. Não porque os livros de negócio pareciam condenar à pobreza quem lesse outros gêneros, ou porque o mundo precisa de um best-seller para saber que uns bofetões durante o sexo não matam. Até aí, tudo soporífero.

O que me pareceu sombrio foi não encontrar qualquer livro que valesse levar para o voo. Zero. Zero não hiperbólico. Nada, niente. Não estou falando da falta de Kierkegaard ou de Tony Judt. Estou falando de nenhuma compilação magrinha de crônicas, nenhum livro informal de história, nenhum 501 ou 1001 melhores-qualquer-coisa. Nem aquele L&PM de bolso da Jane Austen!

A culpa não é das estrelas. Livrarias são negócios e têm que lucrar. Livrarias de aeroporto sempre foram mais agressivas do que as outras. Espaços nas prateleiras são valiosos e livrarias de aeroportos não são muito espaçosas. Também as outras livrarias, ainda que mais hesitantes, estão implodindo o velho modelo.

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Até aí me resigno. O difícil é não lamentar que as livrarias de aeroporto antes lucravam sendo democráticas. Sendo referências cosmopolitas, inclusive. Ali eram vendidos os best-sellers em inglês e a Economist, mas também Ruy Castro, Philip Roth e os romances russos reeditados pela Cosac Naify. Agora, na migração para as compras online, os leitores de livros menos tolos foram empurrados para casa primeiro. Foram empurrados ou fisgados pelos descontos da Amazon, é verdade, como no meu próprio caso. De qualquer maneira, foi a primeira vez que senti uma livraria como um lugar completamente dos outros, e foi medonho. La selva alheia.

É difícil prever todas as implicações dessa mudança de modelo, mas uma já é evidente: pedimos os bons livros cada vez mais pelo correio, reclusos como pornógrafos encomendando fitas VHS algumas décadas atrás.

Para seguirem vivas, muitas livrarias se diversificaram, anexando cafés, vendendo gadgets, promovendo leituras, conversas e shows. Tudo bem-vindo, mas sumindo os bons títulos, somem os clientes mais habituais. Estamos sendo desconvidados, em suma. Provocando e completando o ciclo, há poucas semanas a Amazon começou a vender livros físicos no Brasil.

Gosto de acompanhar o andamento do pedido por e-mail, depois abrir afoito a caixa de papelão e o plástico bolha, mas também gostava de ver centenas de bons livros juntos, de folhear sem pressa, de observar a fauna das livrarias. Não se pode ter tudo, como bem sabe aquele moleque esculachado pela mãe.

ANEXO
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