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Itapema FM  | 25/08/2014 07h01min

Mia Couto abre hoje o ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento

Poeta até mesmo quando escreve prosa, nesta entrevista, escritor comenta que a ciência às vezes é "demasiada assertiva"

Carol Macário  |  caroline.macario@diario.com.br

Aos 59 anos, Mia Couto é um dos escritores mais festejados da língua portuguesa. Nascido em Beira, litoral de Moçambique, publicou 27 livros, entre contos, crônicas e romances, e no ano passado recebeu o Prêmio Camões, concedido pelos governos do Brasil e de Portugal. Ele abre hoje o ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, no Teatro Pedro Ivo, em Florianópolis. O evento terá também a participação do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis amanhã e do psicólogo canadense Paul Bloom na quarta. No entanto, só há ingressos ainda para Bloom. Para os outros dois dias estão esgotados. A seguir entrevista que o escritor condedeu ao jornal Diário Catarinense.

Em suas obras o realismo não é uma característica. É algum tipo de resistência?
Mia Couto -
Não, na verdade não sei fazer de outro modo. Também não sei se concordo com esse espartilho na classificação e demarcação de gêneros literários. Eu venho da poesia e creio permanecer nela quando escrevo prosa. E mesmo aquilo que se chama "realismo mágico" em contraposição com o "realismo" me parece uma construção de quem não entende o imaginário que é dominante nos chamados países do Terceiro Mundo. O realismo é sempre mágico e a literatura é esquiva a esta departamentalização. Quem inventou essas classificações não foram, por certo, os escritores. Eu gostaria, pelo menos, que a minha não coubesse nesse caixilho.

Em uma entrevista você disse que estava para terminar um livro de prosa, mas foi atropelado pela poesia. Conto, prosa, poesia são diferentes para você, como formas de expressão?
Mia -
Quando me surge uma ideia e ela me ocupa de modo obsessivo como se me engravidasse, eu sei, de imediato, que está ali um núcleo de qualquer coisa. Quando essa ideia surge eu sei de imediato se ela pede a poesia ou a prosa breve de um conto. E quando ela se enovela então eu sei que estou perante a proposta de uma narrativa mais longa. Na verdade, de todas as vezes que me propus escrever um romance eu comecei por ser atropelado por versos que me surgem quase involuntariamente. Quero concentrar nessa disciplina do texto longo e sou constantemente visitado por versos. Nesses casos, chego a amaldiçoar essa visitação. Mas eu, com o tempo, fui percebendo que a poesia me ajuda a limpar o pensamento. É como a chuva que deve acontecer para limpar o céu.

Você tem uma forma comovente de explicar o mundo. Para que serve a ficção, na sua opinião?
Mia -
A ficção não serve. É como o amor. E não servem não porque sejam inúteis mas porque estão para além de uma razão funcional. Nós precisamos de viver em fantasia e carecemos da ficção como do ar que respiramos. Aconteceu assim desde que somos espécie humana. Era vital caçar tanto como era vital produzir e contar histórias de caça, pintar e esculpir cenas de caça. Os grandes caçadores eram grandes sonhadores. Antecipavam em sonho o que ia suceder e venciam os seus medos e fragilidades nessa construção ficcional. E mais ainda essa fantasia os tornava próximos dos deuses. Ainda hoje cerca de 30% do nosso tempo é passado no exercício da fantasia (lendo, jogando, vendo televisão).

Você parece acreditar que há sempre uma outra maneira de olhar para as coisas e até mesmo temas como violência e dor são abordados depois de algumas voltas. Há alguma razão para isso?
Mia -
Acredito que quase sempre é a pergunta e não a resposta que está errada. A maior parte das vezes que pensamos dialogar estamos laborando num erro de base: o que os outros dizem não é o que escutamos. No fundo, falta-nos estar disponíveis para entender os outros. Falta sermos capazes de sairmos de nós. A imagem que temos desses outros (e sobretudo dos nossos supostos inimigos) é feita de clichês e lugares-comuns.

Tem trabalhado em alguma nova obra?
Mia -
Estou. Trata-se de um romance que tem a ver com um império indígena que dominou o Sul de Moçambique de 1830 até ao final do século 19. Uma vez mais, contudo, fui atropelado pela poesia. E aconteceu-me um livro de poemas que está terminado e será lançado em outubro. Esse novo livro de poesia chama-se Vagas e Lumes. Agora, regresso ao romance que tinha projetado. Estou trabalhando nesse texto e creio que terei ainda uns meses largos para o terminar

Em um texto você disse que o mundo estava desencantado. O que isso quer dizer?
Mia -
Eu lutei não apenas pela independência do meu país (que é Moçambique) mas por uma mudança revolucionária da sociedade moçambicana. A independência aconteceu, a revolução socialista também. Mas ela foi derrotada e os mesmos que proclamaram derrubar o capitalismo são hoje capitalistas bem instalados. Mas isso não faz de mim um desencantado. Não fiquei amargo nem ressentido. Acho que eu é que entendi mal a complexidade da mudança que sonhava. E pensava o mundo de forma muito simplista. De algum modo, o projeto político que abracei não era tão encantado assim. Acho que estamos partilhando todos um mesmo sentimento de desnorte. Isso acontece de forma global. Deixamos de entender quem manda, as forças que detêm o poder já não são tanto os governos. Os capitalistas que combati pelo menos tinham nome e rosto. Mas o mundo não foi desencantado apenas por razão de regimes políticos e por disputas de poder. Há algo anterior a isso. O modo como pensamos o mundo deve ser repensado. Temos que aceitar que não será apenas por via da tecnologia que alcançaremos mais e melhor. Precisamos de um outro fundamento para entender o mundo e para ser felizes de modo coletivo.

Em A Confissão da Leoa você traz à tona uma reflexão interessante acerca do quanto a força dos mitos e tradições pode ser por vezes opressora ou libertadora.
Mia -
É um livro sobre a mulher, sobre a condição da mulher em Moçambique. Séculos de domínio patriarcal fizeram pesar sobretudo sobre as mulheres o peso de mitos e tradições. A maior parte dessas tradições não são assunto do passado. São práticas reinventadas e reatualizadas à medida das conveniências da manutenção de antigos poderes patriarcais. Estamos sempre preocupados com os regimes políticos formais mas escapam-nos que, na vida quotidiana, outros poderes são mais opressivos que as ditaduras políticas.

Aqui no Brasil ainda é muito comum certa mitificação da África _ muitos ainda pensam no continente como o local de onde vieram nossos ancestrais trazidos como escravos. Qual a sua percepção sobre isso? O temos a aprender com a África contemporânea?
Mia -
Acho que a primeira aprendizagem é anterior a qualquer busca fora de nós. É preciso aceitar que não se conhece assim tão facilmente um continente seja ele qual for. África é um território altamente diversificado, composto por tantas culturas e histórias que não cabem num só nome. O problema é que muitos pensam que conhecem e isso é mais grave que não conhecer. O primeiro passo é reconhecer a ignorância que todos temos, mesmo nós, os africanos. Eu nasci e vivi toda a minha vida na África. Sou parte dela. E ainda assim conheço muitíssimo pouco. Tenho sim uma enorme paixão pela viagem desse encontro múltiplo. Por isso, saúdo os brasileiros que têm trabalho nessa aproximação séria e honesta com o outro lado do Atlântico. E saúdo, em todos eles, o vosso e nosso Alberto Costa e Silva que recentemente ganhou o Prêmio Camões pelo extenso labor no conhecimento e divulgação do continente africano. O que temos que aprender? Eu acho que a história do continente africano e das suas culturas ensinam o valor da diversidade que é a maior arma da espécie humana. Pessoalmente eu aprendi muito com a religiosidade plural dos africanos. Há ali uma aceitação dos outros e da razão alheia que me parece fundamental. Aprendi a conviver com a minhas temporárias ignorâncias. Existe no meu lado europeu um convite obstinado que a entender tudo e apenas me sentir confortável domino os segredos do que me circunda. Essa minha herança ensinava-me a temer e a suspeitar de tudo que não fosse inteligível. Agora, dou-me bem com a ausência dessa posição de saber que é sempre uma situação de poder. Dou-me bem com o que não sei e com o tempo que há para que essas coisas não imediatamente visíveis se revelem. Perdi o medo de não saber. Perdi o medo de não poder prever. Essa foi uma lição que África me deu. Outras lições têm a ver com a relação com os mortos. Aprendi a pensar (e sobretudo a sentir e viver) que eles permanecem não apenas presentes mas continuam vivos dentro de nós e entre nós, os viventes.

Como biólogo você se dedicou a estudar os seres vivos, a escarafunchar a realidade de como nasce e vive tudo o que respira na Terra. Como escritor, cria, inventa histórias, transforma a realidade, se debruça nas fábulas. De que forma acha que ciência e literatura de complementam?
Mia -
O entendimento "integral" do ser humano exige uma visão integral da nossa condição humana. E isso só pode ser alcançado negando uma outra visão, hoje dominante, e que resulta de uma filosofia mecanicista e cartesiana. Esta visão equipara a pessoa humana a uma engrenagem composta por componentes físicos. Essa mesma visão mecanicista tende a comparar o nosso cérebro a um computador. Este tipo de abordagem é hoje muito frequente e parece não ser interrogada. É preciso entender que a lógica do nosso ser e do nosso cérebro não funcionam dessa maneira. A forma orgânica e sistêmica com que nos estruturamos pedem uma outra lógica que não nos veja como uma soma de partes, mas como um sistema complexo feito de sistemas que estão vivos e que se fabricam a refabricam a si mesmos. No fundo, muito do que nos é essencial nasce das relações com os outros. Os cientistas que estudaram o genoma humano tiveram, no final, uma surpresa. Aquilo que pensavam ser a revelação da essência humana (e que resultaria da decifração do código genético) acabou contrariando a premissa da pesquisa: afinal, nem tudo estava nos genes. Mais importante que esses mínimos componentes eram as redes de relações vivas que eles criam com uma rede de outros componentes. Agora, certos cientistas propõem-se fazer a identificação das proteínas envolvidas na codificação genética: o resultado não será muito diferente. Uma vez mais não se chegará a uma fórmula que esclarece o grande segredo humano. Numa palavra, somos feitos de histórias e não apenas de células. A nossa espécie tem uma rica narrativa associada à sua emergência e ao seu desenvolvimento. A ciência é uma narrativa que, às vezes, peca por ser demasiado assertiva. Aquela ciência que me agrada praticar é a que coloca mais questões do que respostas. Sou apaixonado pela ciência que conta a mais bela de todas as histórias: a saga da vida e da nossa espécie humana. A biologia me ensinou linguagens de criaturas que aparentemente não possuem ligação nenhuma conosco: os bichos, as árvores, os seres que não escutamos nem vemos. Ganhei proximidade com essas outras entidades e aprendi a olha a vida como algo que só é entendido se for vivida nessa inteira disponibilidade de diálogo.

Programe-se para o Fronteiras do Pensamento
O quê: conferência com Paul Bloom
Quando: quarta-feira, às 20h
Onde: Teatro Pedro Ivo (Rodovia SC-401, km 5, 4.600, Saco Grande, Florianópolis)
Quanto: R$ 40 e R$ 20 (meia), à venda no site da Blueticket
Informações: (48) 3216-3432

*Os ingressos para a palestra de Mia e Miguel Nicolelis já esgotaram

Mauro Vieira / Agencia RBS

Escritor é um dos mais celebrados da língua portuguesa na atualidade
Foto:  Mauro Vieira  /  Agencia RBS


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