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Itapema FM  | 20/08/2014 23h46min

A noite em que cegos e surdos contemplaram O Som das Cores em peça de teatro

Apresentação do espetáculo, terça-feira, no TAC, em Florianópolis, faz parte da programação do Festival de Animação, que se encerra no sábado

Ângela Bastos  |  angela.bastos@diario.com.br

Gente, que cheiro bom é este?

— Acho que é chocolate quente.

— Pois eu já acho que é pipoca com chocolate.

A conversa se faz terça-feira à noite, em frente ao Teatro Álvaro de Carvalho, o TAC, em Florianópolis.Como as portas ainda estão fechadas, outros assuntos surgem entre o grupo de 12 jovens e adultos que vieram da Associação Catarinense para Integração do Cego, a Acic, para acompanhar o espetáculo das 19h30min.

— Já participei de uma peça na escola, em Blumenau. O papel que era estranho: a pia de um banheiro público, que fofocava com seu amigo espelho — conta Maria Ester Reis Horburg, 22 anos. Taila de Oliveira Aguiar, 23, diz aos amigos que esta é a segunda vez que vai ao TAC.

— Subi no palco para cantar uma música em um espetáculo — conta a moça que veio de Porto Alegre e atualmente mora no centro de hospedagem da Acic.

Quando o acesso é permitido, o grupo caminha para dentro do teatro. Todos têm bengala e com essas vão tocando os degraus. Pessoas da organização os auxiliam. Maria Ester e Taila sentam na primeira fila. A primeira nasceu cega. A segunda tem apenas 5% de visão.

Todos os cegos recebem um aparelho para acompanhar a audiodescrição. Uma espécie de radinho de pilha com fones. Dentro de uma cabine, na parte superior do teatro, uma profissional fará a descrição das informações visuais.

Adriana Focas integra a companhia e narra aquilo que não é falado. Começa descrevendo o cenário. Explica serem quatro atores usando roupas e máscaras pretas. Avisa que a cada cena o quadrado iria girar. Maria Ester e Taila sentem que a noite vai ser boa. Gostam do que ouvem. Riem, cochicham, falam mais alto, dão-se as mãos. Assim ficarão durante todo espetáculo. No palco — ora parado, ora em movimento — o boneco é o objeto de interpretação. Em meio à plateia, um pouquinho mais atrás de Maria Ester e Taila, estão pessoas surdas. Essas acompanham o espetáculo O Som das Cores pela mediação de uma intérprete para libras.

A trama envolve a todos. Enxergue ou não, ouça ou não. A plateia silencia, vibra, se encolhe, se estica para acompanhar as aventuras e desventuras da adolescente de 15 anos que subitamente perde a visão. Segue o desespero de Lúcia pelos subterrâneos do metrô à procura do seu cachorro, Tobias, a quem achou que tinha perdido junto com a visão. Um trajeto onde tem de enfrentar medos e perigos. Onde uma simples lixeira vira monstro. Ou um poste pode conduzir a um labirinto sem volta. Lúcia enfrenta um desafio imposto à própria mente. Ela quer recuperar a visão, entendeu Maria Ester. Mas para isso terá de ver o mundo com outros olhos, compreendeu Taila.

Isso mesmo. A peça é engenhosa e fantasiosa. Espetáculo construído com recursos de ilusionismo e trilha sonora especialmente criada com efeitos surround. Isso é, o som tem uma qualidade tão boa que é como se o público estivesse em uma sala ouvindo um concerto. Foi o que sentiram Maria Ester, Taila e seus amigos. Deles, que depois de encerrado o espetáculos subiram ao palco, os atores ouviram uma sugestão:

— Melhor que a audiodescrição não diga "a luz se apaga", pois se confunde com o nome da Lúcia. Ficaria bom se dissessem "apaga-se a luz".

Sugestão aceita.

Desta vez, as cortinas se fecharam no palco do TAC. Mas o espetáculo da participação continuou.

Assim como o cheirinho de chocolate que os sentidos de Maria Ester e Taila perceberam na chegada.

E quando a luz se apagou, no quarto de Maria Ester, lá na Acic, veio um sonho.

— Sonhei que eu era a Lúcia, mas não em forma de boneco — contou-me na manhã seguinte, em um encontro casual.

Quis saber como foi:

— Eu era Lúcia em carne e osso. Tinha pele clara e meus olhos castanhos tinham virado azuis.

Quis saber como sabia que seus olhos eram castanhos.

— Minha mãe disse.

Quis saber como era o azul.

— Imaginado. Como Lúcia.

Assista ao vídeo do evento:






Pela primeira vez público surdo pode acompanhar o espetáculo que teve intérprete na língua Libras

O espetáculo é baseado no livro O Som das Cores, do taiwanês Jimmy Liao e em poemas de O Livro das Imagens, do tcheco Rainer Maria Rilke. faz um ano que a Companhia mineira Catibrum leva a peça para os palcos brasileiros. Até então, somente audiodiscrição era feita. Na noite de terça-feira, pessoas surdas também estavam nas primeiras poltronas.


Foto: Ricardo Wolffenbüttel/Agência RBS

A proximidade facilitou a visualização de Natália Schleder Rigo, profissional contratada para interpretar a peça para a língua de sinais (libras). Ela ficou em cima do palco, no lado esquerdo, sentido de quem olha das cadeiras, aproveitando a luz do cenário.

A organização do evento, explicou, a repassou com antecedência um vídeo com a peça e o texto para estudar. Diferentemente do que ocorre com os cegos, os surdos não precisam de equipamento. Apenas da interpretação simultânea para libras.

— A língua de sinais é uma língua humana, assim como o português, o francês, o espanhol. O que difere as línguas de sinais das orais é sua modalidade, que é visual-espacial e não oral-auditiva — explica Natália.

Rodrigo Custódio da Silva, 29 anos, compareceu com um grupo de amigos da Universidade Federal de Santa Catarina. Professor de Linguística no curso de Letras, Habitação em Libras, da UFSC, ele destacou a importância da presença de um profissional que faça a mediação.

— Quando criança gostava de ir ao teatro, mas a figura da intérprete não existia nas peças. Por isso não conseguia compreender toda a história, só a parte visual — contou em libras, língua interpretada para a reportagem por Natália.

Formada em Artes Plásticas e também em Letras Habilitação em Libras pela UFSC, ela é mestre em estudos da tradução. Servidora na universidade, atualmente trabalha como tradutora-intérprete nos contextos da instituição.

Confira a galeria de fotos



Agende-se

O quê
: 8º Festival Internacional de Teatro de Animação _ Fita Floripa

Quando: até sábado

Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), para os espetáculos no Teatro Ademir Rosa (CIC), Teatro Álvaro de Carvalho e Teatro Governador Pedro Ivo, em Florianópolis. Gratuito para os demais locais e cidades (Biguaçu, Blumenau, Balneário Camboriú, Brusque, Criciúma, Joinville, Tijucas e São José)

Programação: fitafloripa.com.br

1 / Agencia RBS

Maria Ester, 22 anos, nasceu cega. Depois da peça, ela interagiu com atores e cenário
Foto:  1  /  Agencia RBS


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