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Itapema FM  | 07/07/2014 08h01min

Zuza Homem de Mello reúne 60 anos de música em livro

De ídolos do jazz a ícones da MPB, jornalista conta o que viu da música em "Música Com Z"

Gustavo Brigatti  |  gustavo.brigatti@zerohora.com.br

Imagine um movimento musical importante surgido nos últimos 60 anos no Brasil e nos EUA. Zuza Homem de Mello estava lá.

Jazz? O musicólogo, jornalista e produtor musical paulista assistiu a monstros sagrados como John Coltrane, Miles Davis e Duke Ellington tocarem no auge de suas carreiras – e a Ray Charles estrear, no prestigioso Carnegie Hall.

MPB? Ele operava o áudio do programa O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues, e escreveu resenhas para discos seminais de Dominguinhos, Maria Bethânia e Luiz Melodia.

Samba? Perfilou de forma comovente Cartola e Noel Rosa.

Todo esse material produzido ao longo de mais de cinco décadas rendeu centenas de textos para jornais e revistas e muitas horas de programa de rádio, dos quais Zuza fez um apanhado para Música Com Z – Artigos, Reportagens e Entrevistas (1957 – 2014). Recém-lançado pela Editora 34, o livro traz as histórias de um homem que foi mais do que uma testemunha ocular da música de várias gerações.

Em entrevista ao 2º Caderno, Zuza fala sobre suas aventuras pelos bares de jazz na Nova York dos anos 1950 e avalia o que seria a cara da MPB hoje no Brasil e no Exterior.

Boa parte do livro traz textos escritos durante sua estada em Nova York, nos anos 1950. Foi uma escola e tanto, não?
Nos anos 1950, ir aos EUA era uma loucura, tanto que frequentemente recebia amigos do meu pai que estavam por lá sem noção de como se movimentar em Nova York. Hoje, é diferente, mas, na época, eu era uma espécie de cicerone, levava essa gente para os lugares, principalmente a restaurantes. Era quando eu aproveitava para comer bem também (risos).

Nessa época, de forte segregação racial nos EUA, o senhor era um jornalista branco frequentando espaços de música negra. Nunca se sentiu intimidado?
Sim, muito. Tanto que, nos lugares que eram mais segregados, como igrejas batista ou o Apollo Theater, eu ia com muito cuidado. Ao Harlem (tradicional bairro negro nova-iorquino), também fui inúmeras vezes, algo que hoje é corriqueiro, mas na época era complicado. Teve uma vez em que fui ao Apollo para ver um show e, no mesmo dia, havia ocorrido uma luta de boxe entre Sugar Ray Robinson, lutador negro, e Carmen Basilio, lutador branco. O Sugar Ray derrubou o cara, deu uma surra incrível. Os negros naquela noite estavam numa euforia que você não faz ideia, e aí eu me comportei igual (risos). Eu, de fato, torcia para o Sugar Ray e não queria arrumar encrenca. Mas a minha bandeira, o meu passaporte, era o jazz. E, quando eu começava a falar sobre jazz, estava garantido.

Esse conhecimento também deve ter sido útil quando entrevistou o influente contrabaixista de jazz Charles Mingus, que não era muito fã de brancos.
Com o Charles Mingus, até hoje não sei explicar como ele foi com a minha cara. Junto com o Miles Davis, era um dos mais segregacionistas do jazz. Inclusive, tem um capítulo no livro, Figuraças, em que narro um encontro que tive com o Davis no elevador, e até acho que ele foi com a minha cara (risos). Mas troquei apenas palavras breves quando ele ia ao Birdland como assistente, não como músico.

Difícil imaginar hoje um músico do calibre de Miles Davis assistindo, tranquilamente, a um show em um bar.
Nunca tinha pensando nisso, mas é verdade. No entanto, é bom lembrar que isso acontecia com mais frequência em dois lugares. No Birdland, por causa de uma área reservada para os músicos, junto ao bar, ao lado do palco. Naturalmente, eles iam assistir aos seus ídolos e conversar. Cansei de ver os maiores músicos de jazz da época por ali e, às vezes, eu me aproximava, até para conversar.

E qual o outro lugar onde encontrava esses músicos?
O Five Spot Café, que na época recebia uma turnê do Thelonious Monk depois de muitos anos afastado por problemas legais. E ele voltou em grande estilo, lançando o Brilliant Corners (de 1957), que foi um disco revolucionário e que me colocou no caminho do jazz de fato. Daí o Five Spot passou a ser o lugar que mais frequentava, principalmente para ver o John Coltrane com o Monk. Quando conto isso para músicos americanos de jazz, ninguém acredita, querem me beliscar (risos). Tive muita sorte de ter ido numa época áurea do jazz. E aproveitei.

Música Com Z remete a um tempo em que o trato com a música, principalmente o consumo, era muito diferente. Para não dizer difícil.
Eu acho que localizar o que é bom e novo continua sendo difícil se você não sabe onde procurar. Você precisa partir de alguma coisa, um nome, um título de música, um disco, uma pista que lhe faça localizar aquilo. Sem isso, você não avança. E você só encontra essas pistas indo nos lugares. Você tem que ir ver o cara tocar, nos botecos, na bibocas, em todos os lugares possíveis para descobrir o novo antes que ele surja. E não se deixar iludir pelo que o rádio e a TV querem enfiar goela abaixo como se fosse grande coisa quando, na realidade, é tudo bobagem. Tem que ir atrás, e era isso que eu fazia. Em Nova York, frequentava uma loja de discos e, todo sábado, comprava um ou dois long plays.

E como você consome música hoje?
Sou do CD. Primeiro pelo tipo de audição. Audição pela celular ou pelo computador é uma audição ridícula, é uma referência de música apenas. Se quero ouvir da maneira mais próxima com que foi gravado, não será através de um iPhone ou pela internet. Eu tenho a minha coleção de vinil intacta, 10 mil discos, todos muito bem guardados e fáceis de acessar. Porque grande parte do que saiu em vinil não saiu em CD ainda.

Mas o CD matou o vinil.
O vinil foi pro brejo, sim, e eu acho isso uma lástima. Convenhamos, manusear um CD é um horror. Ele ocupa um espaço enorme que, se fosse num envelopinho, seria muito melhor. Aliás, foi o que fiz com os CDs que tenho na minha casa em São Paulo, joguei fora os estojos de plástico e botei tudo em envelope. É uma bobagem, aquilo é pra aumentar o preço de um produto que deveria custar 2 dólares, mas é vendido por 20 dólares. Se fosse vendido só num envelope bem vagabundo e com uma notinha bem escrita, custaria 3 dólares e a gravadora não estaria milionária. Em compensação, nós estaríamos muito melhor, teríamos muito mais acesso.

Lembrando que o preço dos CDs foi, em parte, responsável pela quebradeira da indústria fonográfica.
Foi fundamental. Quem ganho dinheiro, ganhou. Quem não ganhou, não ganha mais.

O senhor acha que o declínio das grandes gravadoras foi também o declínio da música? Porque, para o bem ou para o mal, elas investiam uma soma que ninguém mais investe hoje.
Realmente, a falência das majors acabou invalidando ou diminuindo a possibilidade de se fazer produtos bem feitos. Há exceções, como a gravadora (Biscoito Fino) que fez o disco do Chico Buarque, um produto excepcional. Agora, tem produtos em que as gravadoras apostam e que são um nojo, e nos empurram porque o retorno tem que ser imediato. Essa é a grande perda: a construção de uma carreira discográfica, que não se faz num disco só, mas com o tempo, até que a obra daquele cantor ou compositor possa se constituir. E é isso que vejo como a grande perda na falência das majors. Você não tem mais uma obra, entende?

Os artistas não têm mais tempo de desenvolver uma obra, é isso?
Exato. Tem que tirar tudo o que puder o mais rápido possível porque, em seguida, tem outro. Mesmo o caso da filha da Elis, a Maria Rita. Ela não tem uma obra. É uma coisa de merchandising, para vender. Não dá para admitir que uma gravadora gaste uma fortuna com um disco da filha da Elis cantando as músicas da Elis com os mesmos arranjos da Elis. Isso já está feito, não tem cabimento fazer de novo. E, no entanto, a gravadora esfregou as mãos porque vendeu pra caramba. Mas por que vendeu? Porque o público foi induzido a comprar aquilo pensando que era a Elis.

Sua admiração pela Elis é de longa data, tendo inclusive participado da produção do programa O Fino da Bossa. Elis ainda é a maior cantora do Brasil?
Não tem ninguém como ela hoje, principalmente porque a Elis ia além do ofício de cantora. Você pode gostar da Gal, que é absurda, da Nana, da Bethânia... Vozes assim são maravilhosas, mas a Elis tinha um porção de qualidades para além do canto. A força que ela dava para gente nova era um aval de uma importância fundamental, que impulsionava a carreira para sempre. Por isso, tanta gente, como Milton Nascimento, Ivan Lins, João Bosco, tem adoração por ela. Além disso, era uma pessoa que vivia o tempo dela em todos os aspectos: político, social... Era uma pessoa muito aberta, mas que não se deixava iludir por aquilo que lhe era empurrado. E tinha sua opinião própria e respeitável, como o Caetano e o Chico, embora eles, de vez em quando, cometam alguns deslizes, como esse negócio das biografias (ambos participaram do grupo Procure Saber, que defendeu a necessidade de autorização prévia para a publicação de biografias).

Falando em Caetano e Chico, que são bem contemplados no seu livro, quem hoje representa a música brasileira no Exterior?
É só atravessar a fronteira para ver que o que se ouve são os filhos de Tom Jobim e João Gilberto. Não tem Zezé Di Camargo e Luciano tocando na Venezuela, no Nepal, no Canadá ou na França.

Mas a Europa tem vibrado com o Michel Teló.
Ah, mas aí tem um lance de dança, que é cíclico. Lembra do carimbó? Nos anos 1990, um francês resolveu fazer dinheiro com o carimbó e tornar esse ritmo uma mania universal. O carimbó é um gênero do Pará, iminentemente dançante. Esse francês montou um grupo de brasileiros e franceses e ganhou rios de dinheiro vendendo o carimbó como se fosse a verdadeira música brasileira. 

E há alguém das novas gerações que represente a nossa música?
Na área de canção, realmente falta alguém de grande projeção. Mas na área da música brasileira você tem três ou quatro nomes de primeira. O Yamandu Costa é um deles, um nome internacional de respeito, muito admirado. O Egberto Gismonti segue forte também, tem o Hamilton de Holanda que acabou de lançar disco, tem o André Mehmari, tem o Toninho Ferragutti. São nomes respeitados. Ou seja, existem grandes nomes atuais da música brasileira, falta mesmo é alguém da canção. Talvez o que cara mais original seja o Guinga, que não pertence a essa geração nova, é um cara de quase 70 anos, mas ele é respeitado, as pessoas lá fora gravam o Guinga. Mas não gravam o Michel Teló, certo? Essa é a prova dos nove. Falam "Ah, mas ele vende pra caramba", ou "na Alemanha cantam as músicas dele no idioma original, é um triunfo da música brasileira". Logo que o Michel Teló surgiu, me perguntaram o que eu achava eu eu disse que ele era igual a um pum (risos). Uma coisa mal cheirosa e que daqui a pouco desaparece.

Música ainda é capaz de revolucionar, de transformar?
No Brasil, a classe consumidora teve a entrada de pessoas sem hábito cultural. O consumidor de outros tempos não era um sujeito que ouve e aceita o que lhe cai nas mãos. Quando se ganha mais dinheiro, qual é a maneira de achar que algo deve ser bom? Pelo valor. Por que ele não tem discernimento, não teve tempo ainda. Então, nessa lógica, vale qualquer coisa, não apenas na música, mas nas artes. Pega o Romero Britto, aquilo é um horror, uma mentira deslavada, mas que as pessoas consomem e colocam em suas casas como se fosse uma grande aquisição. O único filtro é o valor. Por isso, as coisas estão tortas hoje em dia.

SEGUNDO CADERNO
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