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Itapema FM  | 14/03/2014 15h01min

Os sentidos da voz: humano, demasiado humano

Uma reflexão sobre verossimilhança do filme Ela, de Spike Jonze

Luiza Milano* e Valdir do Nascimento Flores**

— O que ia dizer?

— Só que ontem à noite foi incrível. Eu sinto que algo mudou em mim e não tem volta. Você me acordou.

— Ótimo. Mas eu preciso dizer que não posso me comprometer. Quero ser honesto.

— É? Eu disse que queria compromisso? Estou confusa!

— Eu só estava preocupado.

— Não fique preocupado, não vou te perseguir.

O diálogo acima não surpreenderia se não tivesse ocorrido entre um homem e uma voz. Sim, Ela (Her), filme de Spike Jonze, mostra uma inusitada história de amor entre um escritor de cartas e a voz de um sistema operacional. Theodore, o protagonista, é um homem solitário, em processo de separação de sua esposa, que, após algumas tentativas frustradas de encontrar um novo amor, adquire um sistema operacional, autonomeado Samantha, que tem a estranha capacidade — ao menos para os sistemas operacionais — de falar.

O leitor não se engane. Não é um filme de ficção científica — embora possamos interpretá-lo assim —, não é nem mesmo um filme sobre como máquinas podem adquirir traços de humanidade. É, antes, um filme sobre o humano. Sem adiantar algo que comprometa as surpreendentes cenas do filme, o diálogo acima é suficiente para ilustrar que a relação (sim, há uma relação) entre Theodore e Samantha resguarda quase todos os aspectos de uma relação qualquer. O diferencial de tudo — e, sem dúvida, é a grande questão posta por Spike Jonze para a nossa contemporaneidade — é que Samantha não tem um corpo, também não é um androide, não tem nem mesmo uma imagem virtual. Samantha é apenas uma voz. E é em companhia dessa voz que Theodore vivencia uma experiência, no mínimo, singular.

Frente a tantas possibilidades de abordagem de Ela, optamos por falar sobre a voz. Por quê? Porque isso é o que nos coloca em situação de maior embaraço no filme. O que convoca Theodore a habitar a reversibilidade do "eu-tu" na relação com Samantha não são as palavras, nem uma certa condescendência com as atitudes dele (afinal, ela não parece julgá-lo), nem o fato de — por ser um sistema operacional que se autoalimenta das informações que reúne de Theodore — Samantha "dizer a coisa certa na hora certa", o que seria a realização de um sonho comum no imaginário de tantos casais.

Não. O que mais surpreende, já na primeira fala de Samantha, é o fato de ela ter uma voz humana — para lembrar o belo título da peça de Jean Cocteau La Voix Humaine. E o que é a voz humana?

A pergunta, embora surpreendente pela obviedade que parece encerrar, é fundamental para circunscrever nosso ponto de vista. Não tomamos, aqui, a voz em sentido metafórico (a "voz do povo", a "voz dos animais"), ou em sentido gramatical("voz do verbo"), ou em sentido fisiológico (as "cordas" vocais) ou físico (a acústica da voz). Nem falamos, tampouco, em seu sentido literário — a "voz do narrador". O que o filme de Jonze coloca em destaque é a voz como a singular propriedade que têm os homens de formular sonoramente seus desejos, opiniões, sentimentos... Não se trata mais de pensar no que é dito, mas no invólucro do dito.

Alguns se apressariam em dizer que o que chamamos de invólucro nada mais é que a entonação, a prosódia, o estilo de cada um. Deixemos de lado a precisão dos termos até porque, cremos, não estamos propriamente cercando nenhum desses aspectos. Para nós, o próprio da voz humana é o fato de que ela significa de uma maneira paradoxal: ela é, simultaneamente, o específico de cada um de nós — que, inclusive, não admite reprodução ou cópia —, e o partilhado com o outro. A voz tem essa propriedade de ser única e, ao mesmo tempo, social. A filósofa italiana Adriana Cavarero diz que na voz "ecoa a condição humana da unicidade", Ao mesmo tempo, a voz mostra "que tal condição é essencialmente relacional".

Não estamos aqui fazendo apologia da voz em detrimento da legitimidade de outras formas de o homem manifestar os sentidos. Há os gestos, há a escrita, há tantos canais quantas forem as necessidades do homem. Mas o fato de termos voz não é algo que possa ser minimizado na nossa cultura. Ou como questiona o também filósofo italiano Giorgio Agamben: "que coisa existe na voz humana, que articula a passagem da voz animal ao logos, da natureza à polis?". Ou seja: o que há na voz do homem que o transpõe para o mundo da linguagem, que o transpõe para a sociedade?

É que a voz diz muito de quem a emite. O que a voz pode dizer de alguém? Que está triste? Alegre? Inseguro? Apaixonado? Irado? A lista certamente não teria fim. Essas alternativas são uma espécie de etiqueta que identifica o valor atribuído pelo ouvinte à parte do que ouviu. E que parte é essa? A da voz, que revela tanto quanto esconde; que trai tanto quanto atrai. Como diria o antropólogo David Le Breton: "a voz é um princípio essencial do sentimento de si".

O que pulsa numa voz escapa àquilo que geralmente costuma se tomar como sua porção "tangível". É o tom, o volume e as tantas tentativas de adjetivá-la (voz rouca, voz áspera etc.). Porém, os sons emitidos pelo homem, através da voz, são dinâmicos e efêmeros. Isso nos leva a dizer que falar em voz é falar em efeitos. Em que lugar a voz encontra abrigo? Na escuta do outro. É a partir do que o outro nos devolve sobre nossa própria voz que nos constituímos enquanto donos da voz, parafraseando Chico Buarque na canção.

Enquanto assistimos Ela, superada a estranheza de alguém se apaixonar por uma voz, começamos a torcer pela relação de Theodore e Samantha; chegamos, inclusive, a esquecer tratar-se "apenas" de uma voz; conseguimos até rir de certas cenas que, sabemos, somente os casais supostamente felizes protagonizam. Porém, chega o momento em que se impõe a natureza incorpórea da voz de Samantha e isso é aterrorizante: uma voz sem corpo, que não faz corpo.

Como pode uma voz sem corpo ter tomado lugar na escuta e no desejo de Theodore? Ora, Theodore vê n'Ela um objeto de encantamento. E, bem sabemos, quando se trata das paixões é sempre assim: o objeto é imprevisível.

Eis o passo necessário para nos resignarmos quanto aos destinos da relação entre Theodore e Samantha. Ela nos enganou? Em momento algum. Nós é que somos incapazes de esquecer nossa natureza humana, demasiado humana.

 

*Fonoaudióloga e professora de linguística
**Linguista e também professor de linguística

DIÁRIO CATARINENSE
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