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Itapema FM  | 07/12/2013 11h39min

Por que a comparação entre filmes e séries nem sempre faz sentido

As séries de tevê já superam de longe os longas-metragens, repetem alguns à exaustão. Será mesmo?

Daniel Feix  |  daniel.feix@zerohora.com.br

O cinema vai acabar em poucos anos, profetizam os apocalípticos da linguagem, para quem o 3D e o Imax podem ajudar a manter a indústria, mas não os filmes como os conhecemos até hoje. As séries de tevê já superam de longe os longas-metragens, repetem à exaustão cronistas, pensadores menos ortodoxos (mais antenados) e fãs de Breaking Bad.

Será mesmo?

Depende, em primeiro lugar, dos parâmetros de comparação. Não faz sentido tomar como exemplo a citada jornada de Walter White, uma das obras-primas do século 21, e não fazer o mesmo com os grandes filmes produzidos no período. O melhor produto da televisão tem de estar lado a lado com o melhor do cinema. E o melhor do cinema, ainda que seja impossível defini-lo como algo único, homogêneo, não têm vindo de Hollywood.

::Excelência das novas séries de TV desperta comparações com os longas

Invariavelmente, os grandes filmes contemporâneos fazem a linguagem evoluir em um sentido oposto àquele das séries televisivas mais bem-sucedidas. Parece lógico que, dispondo de dezenas de horas para dar complexidade a suas tramas e profundidade a seus personagens, diretores e produtores de tevê aprimorem modelos narrativos que levem em conta essa particularidade – e construam curvas dramáticas que alcancem níveis raramente experimentados pelos longas-metragens em seu formato mais usual. Da mesma forma, faz cada vez menos sentido que cineastas e produtores de cinema, por sua vez, apostem na repetição das fórmulas cujas limitações têm sido escancaradas na comparação com a televisão.

Há novos autores com obras sólidas construídas a partir de exercícios de gênero e filmes com narrativas próximas do que se pode chamar convencionais, inclusive – e sobretudo – nos EUA, de James Gray (Amantes) a Tarantino (Bastardos Inglórios). Desde Cassavettes (Uma Mulher Sob Influência), por outro lado, Hollywood também dá guarida a títulos mais difíceis, por assim dizer – lembre-se, citando exemplos mais recentes, de David Lynch (Cidade dos Sonhos) e dos irmãos Coen (Onde os Fracos Não Têm Vez). É claro, no entanto: trata-se de uma espécie de política de cotas, distribuídas de maneira segura e, principalmente, indolor (para os bolsos, evidentemente).

Há de tudo, em qualquer um dos dois meios. Se a série Parks and Recreation visita a fronteira da ficção com o documentário, algo que no cinema já se tornou usual, determinadas franquias cinematográficas, de tantas sequências e prequels que apresentam, são empacotadas para comercialização em home video, não por coincidência, de maneira semelhante a uma temporada de telessérie. Os projetos que fazem a diferença, mas nem sempre são levados em conta em certas análises recorrentes, são aqueles moldados a partir das peculiaridades de cada formato. Ainda que o consumo tenha mudado, e as séries possam ser vistas como filmes, em telas maiores e com a solenidade da sala escura e do som de cinema, os formatos de uma coisa e de outra se mantêm distintos entre si.

Enquanto as grandes produções de tevê têm a prolixidade como característica, o melhor cinema atual é aquele que aposta em supressões, elipses e outros recursos da linguagem que tornam a fruição diferente – e não pior. Essa dicotomia remete àquela estabelecida entre curtas e longas-metragens, ou, estendendo a questão à literatura, entre contos e narrativas longas: para tamanhos desiguais, propostas estéticas desiguais.

Se em duas horas, que sejam três, seria difícil construir um personagem completo como Tony Soprano (The Sopranos) ou Don Draper (de Mad Men), quanto mais este Fausto contemporâneo e sua aventura digna de Dante e Virgílio, caso de Mr. White e Breaking Bad, só na imaginação é possível vislumbrar um Luz Silenciosa (de Carlos Reygadas) ou um Mal dos Trópicos (Apichatpong Weerasethakul) exibido semanalmente na grade de uma emissora de televisão. O raciocínio vale da mesma forma com dois outros exemplos mais difundidos (mas igualmente incluídos entre os melhores filmes deste século): seria inviável formatar O Pântano (Lucrécia Martel) ou Em Busca da Vida (Jia Zhang-ke) como telesséries, garantindo que sua recepção por parte do público seguisse minimamente parecida com o que é.

A comparação desses quatro exemplares (há muitos outros) com as melhores produções de tevê é menos problemática à medida que equipara o biscoito mais fino de um meio e de outro. Porém, paradoxalmente, escancara as diferenças entre esses meios e, por consequência, a falta de sentido na tentativa de equipará-los.

Pode não ser insano como confrontar uma escultura de Michelangelo com uma peça de Shakespeare, mas é o mesmo que fazê-lo com um poema de Pessoa e um romance de Eça de Queiroz. Séries são romances, filmes são poemas. A linguagem é a mesma (o audiovisual), mas sua maneira de explorá-la é outra. Séries podem se dar ao luxo da verborragia, da curva dramática de dimensões épicas; filmes precisam apostar em métricas econômicas, no silêncio que pode dizer mais do que a palavra. Obrigatoriamente, os tipos de sensações que impõem ao espectador precisam ser outros – melhor considerar assim do que tratar de dimensionar essas sensações, ou ranqueá-las.

Ver uma coisa pensando noutra é um sintoma de que estamos desacostumados ao que aqui insisto em chamar de "diferente". A overdose de narrativas audiovisuais a que estamos submetidos atualmente nos levou a uma espécie de vício em um padrão, que é repetido pelas novelas globais e os blockbusters de Hollywood e que segue três princípios básicos: imagens assépticas, subtexto óbvio (ou nulo) e tramas com início, meio e fim, nesta ordem. Texturas diferentes costumam ser associadas a "sujeiras", e ambiguidades não raro são menosprezadas (incompreendidas, quem sabe). A falta de fé no futuro do cinema tantas vezes manifestada por aí talvez tenha a ver com isso; o aumento da distância entre o público dos blockbusters e o cinema mais autoral certamente é consequência direta desse cenário; a insistência em nivelar algo tão diverso, por óbvio, advém da distância estabelecida entre espectadores e, para ficar nos quatro exemplos já citados, os trabalhos de Reygadas, Martel, Weerasethakul e Zhang-ke.

Vale lembrar que, quando se fala em indústria, da tevê ou do cinema, ninguém está livre das imposições do mercado. A necessidade de retorno imediato pode impor alterações em meio à exibição de muitas séries, mas também é verdade que a lógica do mercado distribuidor de filmes, monstro criado pela própria máquina de Hollywood, é determinada basicamente pelos resultados obtidos em curtíssimo prazo. Longas são jogados simultaneamente em até 50% das salas de um país (aconteceu nos EUA, repetiu-se no Brasil) para garantir lucros num patamar alto, que justifique o investimento maciço em um produto. Caso a arrecadação no primeiro fim de semana em cartaz seja ruim, não há pudor em alterar a estratégia da distribuição – nos EUA e também aqui.

Neste cenário, é ainda mais desprovido de sentido comparar um projeto como Breaking Bad com aquilo que Hollywood produz de mais convencional. A falta de concessões verificada nos cinco anos dedicados a Walter White (só os programas televisivos mais radicais fariam um episódio como o da mosca, na quarta temporada) encontra parâmetro, no cinema, apenas com longas que rejeitam o consumo mais rápido – não à toa, Breaking Bad ela própria foi uma produção que cresceu conforme o passar do tempo e o aprofundamento dos conflitos propostos.

A seu modo, filmes também necessitam de tempo de absorção. E mente aberta a propostas estéticas menos quadradas. Vale a pena – e seguirá valendo, a despeito das previsões em contrário.

CADERNO CULTURA
hbo / divulgação

"Mad Men"
Foto:  hbo  /  divulgação


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