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 | 20/12/2012 14h26min

'As Aventuras de Pi', filme baseado em livro envolvido em polêmica com obra de Moacyr Scliar, estreia no Brasil

Com belas imagens, longa busca transcendência espiritual

Atualizada em 02/07/2018 às 13h41min Daniel Feix  |  daniel.feix@zerohora.com.br

O primeiro filme da safra de verão, aquela que costuma trazer os principais candidatos ao Oscar, estreia nesta sexta-feira nos cinemas brasileiros. Dirigido por Ang Lee, As Aventuras de Pi é baseado no best-seller de Yann Martel, livro superpremiado e polêmico (por conta de suas semelhanças com Max e os Felinos, de Moacyr Scliar, sobre o qual você pode ler abaixo).

E, além disso, um livro tido como “infilmável”.

Isso porque narra a fábula de um menino indiano que atravessa o Pacífico dividindo uma pequena embarcação com um tigre ao longo de mais de 200 dias, ao fim dos quais aporta no México. Vencedor do Oscar de direção com O Segredo de Brokeback Mountain, em 2006, Lee não apenas transformou a história em filme: usou seu talento de esteta (visto antes, por exemplo, em O Tigre e o Dragão) para recriá-la com imagens inesquecíveis que exploram o 3D como poucos filmes o fizeram – o nível aqui é o de Avatar e A Invenção de Hugo Cabret, e não muitos outros.

A estrutura narrativa é simples. As Aventuras de Pi começa com o protagonista, interpretado por Irrfan Khan, já adulto, contando a aventura a um escritor (Rafe Spall). São tantos os detalhes que boa parte do longa se passa à época de sua infância, quando Pi sofria bullying na escola devido ao seu nome, Piscine (o pai adorava o azul das águas e o batizou inspirado na Piscina Molitor, de Paris), e gastava seus dias no zoológico da família, na Índia.

Até então interpretado pelo ator-mirim Ayush Tandon, Pi só ganha o corpo do adolescente Suraj Sharma quando seus pais (Adil Hussain e a atriz indiana Tabu) resolvem mudar de vida, embarcando num navio rumo ao Ocidente. A embarcação não resiste a uma tempestade, e os únicos sobreviventes são Pi, uma hiena, uma zebra e um macaco – e um tigre, que inicialmente se escondera sob a lona do bote e cuja aparição, devido ao bom uso do 3D, deve resultar em sustos coletivos na sala de cinema.

O filme cresce quando o tigre devora os três animais, e a provação do menino realmente tem início. Mas há uma razão para que Ang Lee dedique tanto tempo à infância de Pi: fazendo valer sua reconhecida capacidade de aprofundar o perfil psicológico dos personagens (lembre Tempestade de Gelo e Desejo e Perigo), o cineasta de origem taiwanesa quer dar transcendência religiosa e existencial à jornada do menino. E é com a curiosidade típica das crianças que Pi se dedica a entender o sentido da vida, questionando os adultos sobre fé, razão e espiritualidade. O “milagre” da sobrevivência, indica Lee, só será possível pela experiência pregressa do protagonista.

Se há algo questionável em As Aventuras de Pi é a eficácia dessa premissa. O filme pode ser plasticamente deslumbrante, mas isso não significa que suas imagens correspondam à pretensão dramática. Talvez, para funcionar, a trama exija que o espectador tenha ele próprio a sua fé. Veja e tire a prova – o longa é bom a sessão vai valer a pena de qualquer jeito.

Scliar inspirou livro

Dez anos antes de virar filme, Life of Pi, título original de As Aventuras de Pi e também nome do livro com o qual Yann Martel ganhou o Booker Prize, entre outros prêmios, esteve no centro de uma polêmica. O escritor canadense disse ter criado a história a partir do argumento de Max e os Felinos, de Moacyr Scliar (1937 – 2011) – que garantia conhecer apenas por meio de uma resenha do New York Times.

Martel chegou a incluir um agradecimento a Scliar no prefácio de Life of Pi, o que não impediu acusações de que o teria plagiado. O autor gaúcho, por sua vez, foi diplomático: em texto publicado em Zero Hora de 9 de novembro de 2002, rechaçou a ideia de um processo jurídico dizendo desconhecer um “conceito estabelecido de plágio”. Na mesma data, em entrevista a ZH, Yann Martel afirmou “sentir muito” pelo ocorrido, fez elogios a Scliar e reiterou que nunca lera Max e os Felinos.

Confira, abaixo, a íntegra do texto de Moacyr Scliar sobre o episódio e, na sequência, a entrevista que Yann Martel concedeu a ZH sobre a polêmica de 2002:

O conceito de plágio
Por Moacyr Scliar
(publicado em ZH de 9 de novembro de 2002)

Literatura é para mim escrever e desta forma estabelecer um vínculo afetivo e intelectual com pessoas. Todo o resto me parece secundário, incluindo as polêmicas literárias. Recentemente vi-me envolvido, a contragosto, numa discussão deste tipo, quando o escritor canadense Yann Martel venceu o Booker Prize desse ano com um livro (Life of Pi) baseado, segundo declarações do próprio autor, na mesma ideia que norteia meu livro Max e os Felinos. Existem aí duas questões:

1) Muitas pessoas me perguntam se vejo aí um plágio. Não tenho uma resposta para esta pergunta; eu precisaria recorrer a algum conceito de plágio estabelecido por pessoas ou instituições sérias, conceito este que, para dizer a verdade, não conheço: nunca precisei dele, porque nunca enfrentei esse problema;

2) A imprensa veiculou declarações atribuídas a Yann Martel segundo as quais ele teria tomado conhecimento do livro através de uma pouco favorável resenha do escritor norte-americano John Updike, publicada no The New York Times. Só que John Updike não escreveu resenha alguma sobre o livro, conforme declarou ao The New York Times de 6 de novembro. A resenha (elogiosa, se é que este detalhe interessa) publicada no The New York Times é de Herbert Mitgang. Mas, e isto quero destacar, em contraste a tais declarações, Yann Martel faz-me um agradecimento no prefácio de seu livro.

Sinceramente, espero que todas estas coisas se esclareçam e que cheguemos a um desfecho justo e consensual. É possível que esta situação, que já ocorreu no passado, ocorra no futuro e será bom, portanto, que tenhamos regras claras de relacionamento entre escritores e entre as obras. Para que possamos, nós, os autores, escrever nossas obras e para que possa o público lê-las com prazer e com emoção.

Entrevista com Yann Martel
(publicada em ZH de 9 de novembro de 2002)

Zero Hora – Como o livro de Moacyr Scliar Max e os Felinos (Max and the Cats, na edição americana) o inspirou ao escrever o romance Life of Pi?
Yann Martel –
Eu li uma resenha do livro de Scliar em uma revista americana 10 anos atrás. Pensei que tinha sido um comentário de John Updike no Review of Books do The New York Times, mas Luis Schwarcs, um dos editores da Companhia das Letras, me corrigiu. De qualquer maneira, foi em uma revista americana. Lembro que a resenha era confusa, mas a situação central de um menino isolado em um barco salva-vidas na companhia de um animal selvagem me impressionou.

ZH – O sr. leu o livro de Scliar? Tentou contato com o escritor gaúcho?
Martel –
Não li o livro, nunca cheguei a pôr os olhos em um exemplar. Esqueci sobre a resenha durante algum tempo até que o assunto voltou à tona cinco anos depois, durante uma viagem que fiz à Índia. Eu estava inspirado e escrevi Life of Pi. Nunca pensei em fazer contato com o sr. Scliar porque não vi razão para isso, mas agradeci a ele no próprio livro. Eu estou tentando contatá-lo agora em razão de uma matéria publicada na revista Veja, que dá a entender que eu o subestimo. E isso não é verdade. (O semanário atribui a Martel a afirmação "Como uma premissa tão brilhante pôde ser arruinada por um escritor inferior? Oh, quanto esta história renderia nas minhas mãos".)

ZH – O sr. poderia resumir a trama de Life of Pi?
Martel –
O romance se inicia com a advertência de que a história que se segue "fará você acreditar em Deus". A história em questão é sobre uma família indiana que cuida de um zoológico em Pondicherry, na Índia, nos anos 1970. Pi Patel, o filho de seis anos de idade, está estudando as fés hindu, muçulmana e cristã. A família decide fechar o zôo e emigrar para o Canadá. Como a maioria dos animais do zoológico será transferida para os Estados Unidos, a família decide viajar no mesmo navio cargueiro japonês em que vão os animais. Então, o navio naufraga e Pi acaba dividindo um barco salva-vidas com um tigre, uma hiena, um orangotango e uma zebra de pata quebrada. Em pouco tempo, a única fera que resta no barco é o tigre. A segunda parte de Life of Pi se detém especialmente no relato de como Pi sobrevive ao lado do tigre enquanto eles cruzam o Oceano Pacífico por 227 dias até atingirem a costa do México. A terceira parte é o interrogatório de Pi por dois investigadores japoneses que tentam descobrir como e por que o cargueiro afundou. Eles não acreditam na história de um menino e um tigre sozinhos num bote. Os investigadores pressionam Pi até que ele lhes conta uma outra versão, em que os sobreviventes são quatro homens, não quatro animais. É uma história muito diferente, até brutal. Mas nenhuma das duas histórias contadas por Pi consegue explicar como aconteceu o naufrágio. O romance termina com a partida dos investigadores, quando Pi lhes pergunta qual das duas histórias é melhor. Eles respondem que a dos animais. Este resumo é incapaz de explicar sobre o que Life of Pi trata. Mas o livro trata de fé e de como se conta uma história, trata do papel da imaginação em nossa compreensão da realidade. Em essência, é um romance religioso.

ZH – Em Max e os Felinos, há uma clara alusão à questão nazista. Quais os principais conflitos de Life of Pi?
Martel –
Life of Pi não é uma alegoria. Os animais que aparecem no livro não representam nada ou ninguém, estão lá por sua própria conta e risco. Os principais conflitos são, num enfoque literário, entre Pi e o tigre, e entre Pi e os investigadores japoneses. Num nível mais sutil, o principal conflito é com o próprio leitor, que tem de resolver em qual das histórias – a com animais ou a sem animais – ele vai acreditar.

ZH – Há planos de se publicar Life of Pi no Brasil?
Martel –
Várias editoras, Rocco e Record entre elas, manifestaram interesse pelo livro.

ZH – A imagem mais forte em seu livro – menino e animal isolados em uma barco salva-vidas – é idêntica à que Scliar usou em Max e os Felinos. Quais os limites que um artista deve respeitar quando se inspira nos trabalhos de outros artistas?
Martel –
Ótima pergunta. Em minha opinião, está claro que o que fiz está longe de ser considerado um plágio. Responda-me, baseado no que escrevi, sem ao menos ter lido o livro do sr. Scliar, você acha que eu o plagiei? É possível plagiar um livro que nunca se tenha lido? Talvez você ache que eu não devesse ter me inspirado na idéia dele? Neste caso, vá a uma locadora e retire um filme de Fellini chamado E la Nave Va. Não assisti a E la Nave Va, mas a partir do poster do filme posso afirmar que há uma cena em que um homem está sozinho num salva-vidas com um rinoceronte! Será que é preciso lembrar Noé e a sua boa e velha arca? Os artistas buscam inspiração em muitas coisas. Pegamos emprestado, mas também emprestamos. Shakespeare inspirou boa parte de suas obras em outros autores, como, por exemplo, Holinshed. Eu sempre me referi à resenha feita sobre o livro do sr. Scliar. Deixei claro que busquei inspiração em seu livro (ou, pelo menos, no que eu pude entender do livro a partir de uma resenha) para construir minha própria história. Tentei deixar isto claro tanto nas entrevistas quanto nos textos que escrevi a respeito.

ZH – Que mensagem o sr. gostaria de transmitir a Moacyr Scliar?
Martel –
Gostaria que ele soubesse que sinto muito por ele pensar que eu o menosprezei. Acreditava estar sendo polido ao reconhecer de onde partiu a inspiração de meu livro, mas aconteceu exatamente o oposto: o sr. Scliar acredita que fui rude com ele. Minha intenção nunca foi esta. Não conheço o sr. Scliar nem literária nem pessoalmente. O que sei sobre ele foi a partir de uma resenha, que me deslumbrou pela originalidade do enredo, pelo qual devo ao sr. Scliar não apenas respeito, mas admiração.

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