O pernambucano Luiz Gonzaga do Nascimento, nascido em Exu, há exatamente cem anos, no dia 13 de dezembro de 1912, é considerado por muitos o maior patrimônio da música popular brasileira. Pois tive a graça de estar uma semana inteira ao lado desse mestre, experiência que relato aqui.

Nos anos 1980, mudei-me para Santa Rosa, onde, por encomenda do prefeito Erni Friederichs, lancei o festival Musicanto Sul-Americano de nativismo, que dava um automóvel zero quilômetro para os autores da canção vencedora, cedido pela primeira concessionária que visitei. O diretor de outra concessionária pediu que eu produzisse outro evento e que desse um jeito de contratar o Rei do Baião. Fechei contrato, e, em setembro de 1983, recebemos o mestre Luiz mais seu sobrinho Joquinha (reforço no acordeom), um zabumbeiro e um “triangueiro”.

Luiz Gonzaga (cuja cinebiografia, Gonzaga – De Pai pra Filho, está em cartaz nos cinemas) andava com a sua sanfona branca, já tocando menos, mas cantando muito e falando coisas lindas.

No primeiro ensaio, notei que ele não estava contente com o moço do triângulo e menos ainda com o produtor que havia montado o trio. Após o primeiro show, em Horizontina, Gonzagão dispensou os dois. Dormiu, levantou por volta das 7h, com muita disposição, e não tocou mais no assunto. Já no segundo show, para cerca de 8 mil pessoas em Santa Rosa, passei a fazer parceria com ele no palco, o que se repetiria por toda aquela turnê gaúcha.

Em uma folga de quatro dias em Santa Rosa, visitamos a região – sempre no meu carro e com uma prosa que parecia não ter fim. Um pouco porque eu não parava de indagar, querendo saber de sua vida, do início de tudo, outro tanto porque ele mostrava gosto na conversa, querendo contar tudo e saber tudo sobre o Sul. Então, a primeira surpresa: contou-me que, no início da carreira, havia buscado inspiração na pegada do grande artista sulino Pedro Raimundo. Salientou que Raimundo havia levado o xote para o Nordeste e que os sanfoneiros de lá haviam imprimido o estilo nordestino.

Em Santo Antonio das Missões, outro momento inesquecível. Pela manhã, parei em uma churrascaria conhecida na região para comprar cigarro (vício que, graças a Deus, abandonei). Luiz Gonzaga adiantou-se e falou para a atendente:

– A minininha faiz favor de servir dois lisos desse conhaque bão que tá paradiniiiinho na pratilera?

Ouvi Gonzagão (com um copo em cada mão) falar para outros frequentadores:

– O senhor é servido?

– Não.

– E o senhor?

Mais um não. E mais outro e outro. Cinco “Não”! Então, completou se dirigindo a mim:

– Luiz, o copo da mão esquerda (o do coração) vai ficar no balcão porque pertence a essa gente querida da sua região, e o outro copo, metade minha e metade sua.

Lascou sua parte para dentro da goela e me alcançou o copo. Foram os 15 minutos de maior aprendizado de vida.

Mas havia mais: nos 80 quilômetros até São Borja, fiz uma pergunta sacana, com a intenção de confirmar o que já tinha como certo.

– Seu Luiz, qual o melhor acordeonista do Brasil?

Tinha certeza que ouviria o nome de um sanfoneiro nordestino (Sivuca, Osvaldinho, Dominguinhos, Camarão, Waldonis, entre tantos outros), mas qual a minha surpresa com o tapa recebido na coxa direita:

– CHIQUINHO É O MESTRE, MEU FIO! É GAÚCHO.

Romeu Seibel (Chiquinho do Acordeom), gaúcho de Santa Cruz do Sul, acabava de ser declarado mestre do acordeom pelo artista brasileiro mais respeitado por todos. Por coisas assim, pelo que foi o cidadão Luiz Gonzaga do Nascimento, pela obra deixada, pelo exemplo profissional, pelos incontáveis artistas inspirados em sua obra, digo que não estamos tão somente comemorando cem anos de seu nascimento, mas, com certeza, cem anos de luz na música brasileira.

* Luiz Carlos Borges é músico e compositor