| 03/03/2007 07h50min
Do período em que esteve à frente da embaixada americana em Brasília (2002-2004), Donna Hrinak sente muita falta dos abacaxis.
– Da fruta - esclarece.
Mas admite em seguida:
– É, tem abacaxi nos dois sentidos.
Aposentada do serviço público, ela trabalha hoje como diretora de Assuntos Corporativos e de Governo para a América Latina da empresa Kraft Foods, multinacional do setor de alimentos responsável por marcas como Lacta, Tang e Trakinas, entre outras. Vive em Miami - "que é quase nos Estados Unidos", como diz - e viaja ao Brasil em média a cada dois meses para visitar instalações e, claro, matar saudade dos abacaxis.
Apesar de não ter perdido o cacoete contemporizador da diplomacia, Donna ganhou na iniciativa privada mais liberdade para expressar o que realmente sente, como ao insinuar que os EUA talvez devessem ter voltado antes as atenções para a América Latina. É o que se nota em trechos da entrevista a seguir, concedida por telefone, de Miami, na quarta-feira:
Pergunta – A visita de Bush ao Brasil é mera formalidade ou pode representar de fato algum avanço concreto em temas de interesse dos dois países?
Donna Hrinak – Acho que não é só uma visita formal. A relação entre Brasil e Estados Unidos, e especialmente entre Bush e Lula, já passou da fase em que as visitas eram apenas cerimoniais. Os dois países vão tirar vantagem dessa visita, sobretudo na área de energia alternativa. É um campo no qual o Brasil tem uma liderança reconhecida no mundo. Faz algum tempo que o governo Lula tenta conseguir uma colaboração dos EUA nessa área, e a visita irá concretizar essa colaboração.
Pergunta – A que a senhora acha que se deve essa preocupação súbita de Bush com energias alternativas?
Donna – O preço do petróleo está forçando uma ação nessa área. Bush tem dito que devemos procurar alternativas aos combustíveis fósseis, que vêm em parte de áreas instáveis do mundo. Não digo que devamos ter independência energética, o que não acho possível, mas temos de assegurar uma fonte de energia para todos os países do nosso continente. Isso não quer dizer que outros países devam produzir para fornecer seu produto aos EUA, e sim que devemos desenvolver juntos uma política em relação à energia. O Brasil é um país estratégico nessa e em muitas outras áreas. Existe uma liderança natural do Brasil.
Pergunta – A visita também não demonstraria uma certa insatisfação dos EUA com a postura do Brasil em relação à Venezuela?
Donna – Há muitos comentários nesse sentido. Talvez haja mesmo algumas pessoas no governo dos Estados Unidos que pensem assim. Na minha opinião, porém, seria um erro encarar a relação entre Brasil e Estados Unidos pela perspectiva de Caracas. Os laços são fortes por si, não precisamos discutir atitudes em relação a outro país ou governo. Temos coisas muito mais positivas para fazer.
Pergunta – Lula e Bush discutirão esse assunto?
Donna – Imagino que sim. Mas não deveria ser o foco principal da visita.
Pergunta – A postura do Brasil em relação à Venezuela é correta?
Donna – Cada país tem de decidir o que é melhor para si.
Pergunta – O Mercosul acabou, como a senhora já chegou a dizer?
Donna – Essa é uma opinião muito presente em Washington, no círculo das pessoas que tratam com comércio internacional. Obviamente, o Mercosul tem tido muitos problemas e muitas dificuldades. Não é nenhum segredo dizer que o presidente (Hugo Chávez) do sócio mais novo do bloco, a Venezuela, parece ter outras idéias sobre o Mercosul.
Pergunta – E qual seria a alternativa? Investir em acordos bilaterais com os EUA?
Donna – Esses acordos bilaterais não são solução, são paliativo. O ideal seria ter o continente inteiro ligado pelo comércio. É o que muitas empresas já estão fazendo, em vez de apenas esperar que os governos o façam. Mas seria melhor ter um acordo estável envolvendo todos os países para o comércio crescer em benefício de todos os setores.
Pergunta – Começa a aumentar a pressão internacional pela retomada da fracassada Rodada de Doha. Ela ainda tem chances?
Donna – Tem. Brasil e Estados Unidos deveriam unificar sua posição nas negociações. Os dois são grandes exportadores na área de agricultura. Devíamos encontrar um denominador comum entre os dois países, em vez de um se concentrar na área do produtor e outro na do importador. Temos a oportunidade de liderar o mundo nessa área.
Pergunta – Como é possível unificar posições se os dois países divergem em relação, por exemplo, aos subsídios agrícolas nos EUA?
Donna – Eu sempre digo que os subsídios nos EUA podem ser facilmente justificados quando se olha para Europa e Japão, onde os subsídios são muito maiores.
Pergunta – E a senhora acha que há chances de Europa e Japão cederem nesse assunto?
Donna – Não acho que exista chance imediata.
Pergunta – Existe uma polêmica no Itamaraty em torno de um suposto antiamericanismo na política externa do país. Na passagem pela embaixada em Brasília, a senhora notou alguma ideologização da diplomacia brasileira?
Donna – Nunca senti uma política antiamericana. O Brasil defende os seus interesses, como os EUA também o fazem. O melhor exemplo da boa relação é a amizade entre Lula e Bush. O tom vem de cima.
Pergunta – A relação entre os presidentes pode ser chamada mesmo de amizade, apesar de Lula ter criticado Bush em algumas ocasiões, como na invasão do Iraque?
Donna – Sim. Basta ver que Lula foi o primeiro presidente que se opôs à invasão do Iraque a ser recebido na Casa Branca.
Pergunta – Ao mesmo tempo, porém, Bush não veio muito ao Brasil. A viagem dos próximos dias sinaliza uma mudança de postura em relação ao país e à região?
Donna – Não é mudança, é recuperação de uma visão que o presidente tinha no início de seu primeiro mandato. Bush tinha a intenção de focar a política externa na América Latina. O 11 de Setembro e a falta de pessoas com experiência em América Latina no seu círculo íntimo mudaram os planos. Agora ele está começando a recuperação. Espero que não seja tarde demais.
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