Floripa 284 anos | 19/03/2010 20h19min
Caros leitores!
Muito cuidado ao transitar pela Ilha de Santa Catarina. Principalmente se for à noite. Por aqui existem pelo menos dois lobisomens em Santo Antônio de Lisboa. Se for noite de lua cheia então, a aparição do bicho é dada como certa nas proximidades do Engenho dos Andrade. O outro...,bem fui proibida de dar qualquer informação.... pelo próprio.
Tem também um boitatá que, vez por outra, dá as caras, ou melhor, se incandesce cá e lá. Para pegar o bicho não é fácil. Só com corda de sino.
Ainda bem que o diabo que habitava a região do Albardão, ali no Massiambu, já foi espantado faz tempo por Dona Lídia Rodrigues, de tanta reza que a professora fez com os alunos. Quilômetros de velas foram acesas nas entradas e saídas das aulas. E, vejam só, tudo por conta de uma paixão.
Uma moça caiu de amores por um rapaz bonito e de boa família que morava numa servidão perto de sua casa. Lá pelas tantas, os dois começaram a jogar
sério. Como dizem que, por amor vale tudo, ela fez
um acordo com o diabo: se cassasse acenderia velas para o demônio. Pois não é que o pedido foi atendido? A moça casou (não estava de barriga, não!), só que, espravoada que só ela, não acendeu a vela. Resultado? Morreram os dois e o chifrudo passou a assombrar toda a área.
Bastava uma noite quente e úmida e aquelas luzinhas começavam a piscar. A manezada tremia, e entre suspiro e outro, alguém dizia:
— Lá vem ele buscar uma alma!
E o escolhido poderia ser o primeiro que desafiasse aquela figura de olhos em brasa. De medo, teve gente que foi embora dali. Outros ficavam alertas mesmo quando estavam de cróca em frente a casa jogando conversa fora. Ninguém queria correr o risco de receber uma coberta d'alma. Ao que consta, o diabo sumiu daquela região. Mas isso não é garantia de que ele não vá aparecer daqui a pouco, bem aí do seu ladinho, e resolva estrovar a sua vida, o que pode lhe deixar amachorrado ou, até quem sabe enfunchado, assim que nem
cobra sem veneno. Sim, porque aqui,
quando as cobras vão tomar água, despejam todo o veneno de suas presas numa folha. E manezinho, muito sabido, vai na beira do rio e rouba a folha. Com veneno e tudo. Quando a cobra se dá conta de que foi passada pra trás, sai enlouquecida em busca do homem. E ele ficava dando risada... bem no alto de uma pedra.
Bem, isso se ele não estudou na escola do Balduíno, um matuto que vendia carvão no Sertão do Córrego Grande. E tinha o dom de entender, sempre, tudo errado. Por isso, se você conhece alguém assim, com certeza, frequentou a escola do carvoeiro. Não estudam por preguiça ou lerdeza e depois ficam vagando por aí com a mula amarrada. Agora, se a pessoa for algum bucica da curriola do doutor Russo também tem que ficar esperto para não cair em mãos de Amaro, aquele delegado de polícia que mandava e desmandava na região das três pontes. Quem não seguia a lei, levava uma coça de boi ladrão.
Por essas e outras que é muito importante ter sempre na carteira um trevo de
quatro folhas plastificado
e o brebe, este sim garantia de proteção. Mas não deixe ninguém tocar nele senão...
De onde veio?
Em Florianópolis, no Sertão do Pantanal, vive um dos maiores (ou melhores) folcloristas de Santa Catarina. Baixa estatura, olhos espertos e pensamento rápido, o manezinho Ilson Rodrigues, como todo bom manezinho, adora uma boa história. Ouvir ou contar, tanto faz. Ilson é engenheiro civil, e junto aos projetos que desenvolve na carreira profissional está um que trabalha com especial carinho: recolher e registrar expressões, palavras e regionalismos da Ilha de Santa Catarina.
Conta os causos e lendas que fazem parte do folclore ilhéu com tanta convicção que qualquer um é capaz de acreditar. Suas fontes são altamente confiáveis, todos moradores com mais de 70 anos. O trabalho começou como uma brincadeira em 1981 e hoje já soma mais de 300 entrevistas, que ainda precisam ser digitadas.
Se o texto ao lado
não tem nenhuma palavra grafada como se fala, seguimos a
primeira observação que Ilson fez ao nos receber em sua casa.
— Falar é uma coisa, escrever é outra. Manezinho pode falar com sotaque diferente, mas isto não significa que escreva errado. O manezês vem dos açorianos e não é uma corruptela da língua portuguesa. É erudito - afirma.
Ele lembra que os açorianos que por aqui aportaram eram súditos de Dom Miguel I, que foi expulso de Portugal e exilado nos Açores.
Eles, que trouxeram o linguajar que, apesar de todas as mudanças, resiste à miscigenação de culturas e encanta qualquer pessoa que desembarque por aqui.
Vocabulário
:: Jogar sério - namorar
:: Estar de barriga - grávida
:: Estrovar - importunar, incomodar, atrapalhar
:: Espravoada - avoado,
desatento; quem não olha onde mete o pé
:: Cróca - sentado sobre os calcanhares
:: Coberta d'alma - quando alguém
morria, era dada roupa do falecido para outra pessoa, pela alma daquele. O presenteado com a coberta d'alma deveria usar a dita na missa de sétimo dia
:: Amachorrado - aquietado, encolhido, entristecido, macambúzio
:: Enfunchado - chateado, aborrecido, amuado
:: Escola de balduíno - lugar onde estudam os analfabetos
:: Escola do doutor Russo - usado para designar sujeito espertalhão
:: Estar com mula amarrada - ficar emburrado, calado
:: Bucica - vagabundo, sem-vergonha
:: Região das três pontes - local onde hoje é a Avenida da Saudade
:: Coça - camassada de pau
:: Boi
ladrão - diz-se quando o boi invade uma lavoura e come a plantação
:: Brebe - espécie de talismã, constituído de uma oração escrita num pedaço de papel e contido dentro de um pequeno saquinho, que
se carrega pendurado no pescoço ou na carteira
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