| 05/06/2009 16h43min
Especialista em dependência química pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e mestre em Psicofarmacologia no Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o médico psiquiatra Marcos Zaleski é considerado uma referência no tratamento da dependência química, principalmente do crack, em Santa Catarina.
Nesta entrevista, ele diz que o crack ignora classes sociais, pode criar dependência na primeira pedra, destaca a necessidade de mobilização social para conter o avanço da droga e conta que já foi ameaçado por um dependente – fato que faz muitos médicos terem receio de atender usuários.
Diário Catarinense – É fato que o crack já não seria apenas uma droga da periferia, e sim das classes média e alta?
Marcos Zaleski – Sim. O crack começou tipicamente como uma droga entre as pessoas pobres das grandes cidades. Começou nos EUA em
metrópoles como Nova York na década de 1980. Na década de 1990 ela passou a
cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, Salvador, geralmente na periferia. O usuário de cocaína e droga injetável era um indivíduo da classe média. No entanto, pelo efeito maior do crack, o usuário da classe média começou a experimentar. E uma vez migrando para o crack ele não volta para a cocaína porque o poder de crack na geração do prazer, apesar do risco, é muito maior.
DC – Já é realidade a presença de pacientes das classes média e alta nas clínicas de Santa Catarina?
Zaleski – Sem dúvida alguma. Temos pacientes de todas as classes a nível de consultório e de clínica com problemas exclusivamente com crack. São indivíduos que sequer usam maconha ou álcool, por exemplo.
DC – A primeira droga deste usuário geralmente é o crack?
Zaleski – A maioria começa com bebida alcoólica na transição para a adolescência e
depois passa para a maconha. Muitos não têm problema com o álcool e até não são usuários
frequentes de maconha. Quando experimentam o crack, por volta de 16, 18 anos, na classe média é mais nessa faixa, o que acontece com mais frequência é o consumo de álcool, maconha e depois o crack. Aí eles não saem do crack. Eles abandonam as outras drogas. Nas comunidades pobres você já tem um consumo direto do crack porque é uma droga barata.
DC – O senhor já viu casos de paciente morrer em razão do crack?
Zaleski – Sem dúvida. Nós perdemos, na clínica, de um a dois pacientes por consumo de crack por ano.
DC – O crack pode mesmo viciar no primeiro uso?
Zaleski – Sim. É uma das poucas drogas que tem este efeito. Com a heroína também pode acontecer isso. Isso é uma coisa não muito científica, mas em torno de 80% de chance do indivíduo criar a dependência na experimentação da droga.
DC – Que sequelas definitivas o crack deixa no usuário?
Zaleski – O indivíduo
pode ficar com alterações psicóticas, ter quadros psiquiátricos que não retornam e pode ter lesões cerebrais que geram crises convulsivas, além das sequelas cardiovasculares.
DC – O senhor conhece casos de quem se recuperou?
Zaleski – Há casos, sim. Geralmente as internações e desintoxicações em clínicas são seguidas de recaídas. Depois há encaminhamentos a ambientes em comunidades terapêuticas. Também é necessário um trabalho de prevenção a recaídas.
DC – No Estado se fala pouco dessas comunidades terapêuticas, tanto em quantidade quanto em qualidade. O que o Estado precisa?
Zaleski – A comunidade terapêutica vem no vácuo – sem nenhuma crítica porque temos boas comunidades que prestam serviço interessante – da prestação de serviço que o Estado teria de oferecer à população. A gente teria que ter um hospital tipo
comunidade terapêutica, com espaço adequado, serviço multidisciplinar, médicos, serviço social,
enfermagem, cuidados com doenças infecciosas, pois esses pacientes são muito suscetíveis a contrair tuberculose, HIV.
DC – Qual a orientação a um pai, a uma mãe desconfiada que o filho usa crack?
Zaleski – O crack é uma droga que dá sinais muito claros nos indivíduos que começam a usar. Ele some de casa desde manhã, tem períodos de hipersonia, dorme muitas horas seguida. Ele vai precisar furtar ou roubar algo de casa. Então essa alteração de conduta requer intervenção imediata. Algumas famílias têm medo de se expor, principalmente de classe média, ou negam a doença. “Ah, ele está usando só maconha ou experimentou cocaína”, afirmam. É uma droga, no entanto, que não deixa assim um traço característico, como a maconha, com as sementinhas pela casa ou aqueles papéis de seda. No caso do crack, não. Ele queima o crack e usa até o último momento. Usa normalmente em ambientes fora de casa e vem para casa já intoxicado
e os pais não sabem o que está acontecendo.
Muitas vezes com cheiro de álcool, que mistura para acalmar a agitação.
DC – O senhor acha que só repressão basta para acabar com o crack?
Zaleski – Não. Noventa por cento dos crimes são associados ao consumo de drogas e a principal delas é o crack. Tem que ter uma mobilização não só do governo, mas das famílias. No Morro da Cruz, em Florianópolis, há um movimento com o padre Vilson Groh. Você precisar ter informação maciça disponível pela mídia, campanha, educação continuada alertando os jovens e os pais e, lógico, repressão e combate à corrupção de jovens, além de investimento na área da saúde.
DC – Fala-se que não há médicos em quantidade suficiente especializados em crack em Santa Catarina. É verdade?
Zaleski – Não existe uma especialidade em dependência química. Os médicos têm medo de atender usuário de crack
por desconhecimento. O médico pode ser ameaçado. Eu mesmo já fui ameaçado por usuário de crack.
A maioria dos usuários está contra sua vontade no tratamento. E se você fizer uma colocação para ele no momento que ele está muito fissurado e aquilo for contra a vontade dele e ele sentir que você é o responsável pela perda de liberdade, ele realmente pode fazer ameaças.
DC – É verdade que os traficantes estão colocando crack no cigarro de maconha?
Zaleski – É fato. Aqui já temos pacientes e no Instituto de Psiquiatria. É para viciar. O grande problema do crack são esses atalhos, como o álcool e a maconha.
Leia mais sobre o assunto no especial Crack, nem Pensar.
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