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Geral  | 29/08/2013 05h32min

Mistura de fatores mobiliza o debate em torno dos médicos cubanos

Episódio de vaias contra profissionais estrangeiros que chegaram ao país acirra discussão sobre o porquê de Cuba mobilizar tanta paixão e ódio

Humberto Trezzi  |  humberto.trezzi@zerohora.com.br

Antes encabeçada pelos profissionais da saúde, a discussão sobre o programa Mais Médicos saiu do twitter para ganhar o ciberespaço. Só se fala nisso desde que o médico cubano Juan Delgado, um negro alto e vestido em roupas simples, foi vaiado e chamado de escravo por médicos brasileiros contrários à importação de estrangeiros para atuar nos grotões do Brasil.

O episódio ocorreu na segunda-feira, em Fortaleza, e, desde então, a foto dele sendo enxovalhado virou viral no Facebook. Alguns veem na manifestação — puxada pelo Sindicato dos Médicos do Ceará (Simec) — uma mera disputa corporativa. Outros vão além, classificando a atitude como racista e xenófoba.

Na contramão dessa opinião, correntes de e-mails insistem que a vinda de médicos de Cuba é apenas a ponta de lança de um processo que pretende introduzir a revolução castrista no Brasil, pela importação de "militantes comunistas" — como os e-mails classificam os cubanos.

O debate, antes virtual, extrapolou as mídias sociais, chegou às ruas e ponteou os assuntos nas conversas de botequim. Além do episódio envolvendo Delgado, contribuiu para incendiar o ciberespaço a postura da jornalista do Rio Grande do Norte Micheline Borges, que postou no Facebook o seguinte comentário :

— Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm cara de empregada doméstica. Será que são médicas mesmo? Afe, que terrível... Médico, geralmente, tem postura, cara de médico, se impõe a partir da aparência. Coitada da nossa população...

A reação foi tamanha que Micheline fechou a conta na rede social. Nesta quarta-feira, Zero Hora tentou contato com ela, mas mão a encontrou.

Mas, afinal, por que Cuba ainda mobiliza paixões e ódios, 54 anos após a revolução que transformou aquele país? A questão é ideológica ou existe preconceito no repúdio aos médicos cubanos? É por que não são brasileiros ou por que muitos são negros?

Especialistas ouvidos por ZH acreditam que a causa é uma mistura disso tudo, que explodiu a partir de uma mera disputa por reserva de mercado. Paulo Moura, coordenador do curso de Ciências Sociais na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), crê que o governo "mexeu num vespeiro" ao confrontar a classe médica, uma das mais organizadas do Brasil.

"É uma baixaria", resume cientista

Para Paulo Moura, o ataque verbal dos médicos cearenses aos colegas cubanos foi "um terrível erro político". O cientista enxerga interesse eleitoral no debate — "da oposição, para desgastar o governo junto aos médicos, e do governo, para ganhar simpatia popular ao colocar médicos nos confins". Mas Moura considera que nem tudo está esclarecido.

— O governo de Cuba vai se apropriar de 60% dos salários desses médicos, um atentado às leis trabalhistas. Sem falar na questão da dispensa na revalidação do diploma, também polêmica — opina o professor da Ulbra.

Moura refere-se ao fato de os cubanos ganharem apenas R$ 4 mil dos

R$ 10 mil que o governo brasileiro pagará nos contratos. A outra parte, a maior, ficará com o governo cubano. Moradia e alimentação também serão custeadas pelo governo brasileiro.

A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Celi Pinto também cientista política, diz que a disputa está em "tão baixo nível" que sente vergonha de ser brasileira.

— Gostaria que fosse um debate ideológico ou profissional, mas não é. Os cubanos estão sendo hostilizados por preconceito de classe e até racial. Eles vêm para trabalhar 40 horas para o governo, algo que a maioria dos médicos se recusa a fazer. O debate tem componente pré-eleitoral, mas muito de racismo também. Ainda bem que o mundo fala pouco português e não vê essa baixaria — desabafa Celi.

Em um avental justo, desde que os colegas cearenses hostilizaram os cubanos, o presidente do Sindicato Médico do Estado (Simers), Paulo de Argollo Mendes, diz que o debate deve se concentrar nas qualidades profissionais dos médicos e não em suas origens geográficas ou culturais.

— Existem bons e maus médicos. Ninguém vai exigir dos cubanos habilidades de neurocirurgiões ou cirurgia microvascular. Eles teriam de ser testados em quatro disciplinas básicas, mas o governo decidiu dispensá-los dessa revalidação. É importar profissionais pela porta dos fundos. Quem é qualificado não tem o que temer.

"Seremos escravos da saúde", afirma cubano

O médico cubano que se viu imprensado por vaias de profissionais brasileiros na noite de segunda-feira, em Fortaleza, Juan Delgado, afirmou ontem não entender as razões da hostilidade dos colegas. "Vamos ocupar lugares onde eles não vão", comentou, em entrevista à Folhapress.

Delgado se disse impressionado e lamentou a manifestação, especialmente ao ser chamado de escravo.

— Não sei por que diziam isso, não vamos tirar seus postos de trabalho. Vamos aos lugares mais pobres prestar assistência. Os brasileiros deveriam fazer o mesmo que nós. Seremos escravos da saúde, dos pacientes doentes, de quem estaremos ao lado todo o tempo necessário — ponderou.

O médico, que já trabalhou no Haiti, declarou ter vindo ao Brasil por vontade própria. Ontem, em entrevista a rádios de Minas Gerais, a presidente Dilma Rousseff saiu em defesa de Delgado.

— É importante dizer que os médicos estrangeiros, não só cubanos, vêm ao Brasil para trabalhar onde médicos brasileiros formados aqui não querem trabalhar — afirmou a presidente.

O Mais Médicos é uma polêmica que está longe de acabar. Ontem, no Distrito Federal, o Ministério Público do Trabalho instaurou inquérito civil sobre o programa. Uma das questões investigadas é se as contratações dos estrangeiros obedecem ao princípio constitucional da isonomia — nas mesmas condições, os prestadores de serviço devem receber os mesmos salários. A informação é que os brasileiros ganham R$ 10 mil, enquanto os cubanos receberiam

R$ 4 mil (o complemento dos R$ 10 mil

será pago ao governo cubano).

Uma outra investigação já foi aberta pelo Ministério Público Federal.

O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, garantiu nada temer e disse que a decisão de contratar médicos estrangeiros tem "segurança jurídica" — ontem à noite, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou pedido liminar feito pelo deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) para suspender o programa.

— Podem fazer críticas e sugestões para aprimorar. Agora, não venham ameaçar a saúde da nossa população — comentou o ministro Padilha.

Para contar na sala de espera

Como funciona o programa que virou centro de uma polêmica nacional

1) OS MÉDICOS CUBANOS ESTÃO VINDO COMO ESCRAVOS, COMO DIZEM ALGUNS BRASILEIROS?

Não. No total, seus vencimentos serão de R$ 10 mil, o equivalente ao que ganham os brasileiros. A questão é que, dos

R$ 10 mil, só R$ 4 mil irão de fato para o bolso dos médicos. Os R$ 6 mil restantes serão abocanhados pelo governo socialista cubano. Isso levanta críticas, como a do cientista político Paulo Moura, professor da Ulbra, que considera a situação "um atentado às leis trabalhistas".

2) QUEM FEZ A SELEÇÃO DOS MÉDICOS?

O governo brasileiro não se envolveu. A escolha foi do governo de Cuba, em parceria com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

3) QUEM COBRE AS SUAS DESPESAS DE MORADIA E ALIMENTAÇÃO?

Os custos são cobertos pelos municípios brasileiros. Já a União cobre os salários e gastos operacionais da Opas, que até 2014 devem chegar a R$ 115 milhões.

4) A MEDICINA EM CUBA É REFERÊNCIA EM TERMOS DE QUALIDADE?

Segundo o Ministério da Saúde, os cubanos que vêm para o país são especialistas em Medicina Familiar e Comunitária. Além disso, 84% deles têm pelo menos 16 anos de experiência, com participação em missões internacionais como no Haiti e na Venezuela. Mas, segundo profissionais brasileiros, eles podem enfrentar dificuldades em um sistema de saúde diferente do qual estão acostumados. João Werner Falk, professor da Faculdade de Medicina da UFRGS e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, mantém contato com profissionais de Cuba. Falk pondera que o exame de revalidação — que não é exigido — seria importante para certificar que o médico tem o conhecimento necessário.

5) OS CUBANOS PODEM SER EXCLUÍDOS NO CURSO INICIAL?

Sim. Qualquer médico estrangeiro que for avaliado abaixo do esperado, no curso inicial de três semanas (vai até 13 de setembro), será excluído. Durante o curso, com 120 horas, chamado de módulo de acolhimento, serão aplicadas atividades elaboradas por professores de universidades federais.

6) ONDE OS 4 MIL CUBANOS SERÃO ALOCADOS APÓS O CURSO?

Em todo o país, 701 cidades — ignoradas pelos brasileiros na primeira etapa do programa — receberão os médicos cubanos. No Estado, 19 municípios estão na lista de destino dos profissionais da ilha cubana: Araricá, Campo Bom, Capela de Santana, Caraá, Charqueadas, Crissiumal, Derrubadas, Estância Velha, Mampituba, Morrinhos do Sul, Nova Hartz, Palmares do Sul, Portão, Santa Tereza, Santo Antônio da Patrulha, São Jerônimo, Sapucaia do Sul, Terra de Areia e Triunfo.

7) ELES PODERÃO ESCOLHER ENTRE AS 701 CIDADES?

Não. Ainda não está definido como será feito o processo de distribuição, mas a escolha será determinada pelos governos e pela Opas.

8) QUANDO COMEÇARÃO A ATENDER NO PAÍS?

Em 16 de setembro, eles devem começar a atender os pacientes em Unidades Básicas de Saúde, principalmente nas regiões norte e nordeste do país.

9) OS CUBANOS PODEm PERMANECER NO PAÍS POR PERÍODO INDETERMINADO?

Se formar vínculos e não quiser voltar ao seu país ao final do programa, o médico estará tomando uma decisão pessoal e precisaria fazer uma nova seleção do Mais Médicos, ou a prova para revalidar o diploma e atuar normalmente no país. Também precisará fazer um visto permanente. No entanto, Cuba tem um regime político que dificulta a saída da população para morar em outros países.

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