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 | 10/04/2012 01h32min

Anencefalia na pauta do STF, finalmente, por Samantha Buglione*

Sete anos depois de chegar ao STF, a ação que defende que a interrupção da gestação de fetos anencéfalos não é aborto deverá ser julgada. O conflito moral que surge tendo como pano de fundo a anencefalia envolve centenas de mulheres que todos os anos vivem a insegurança sobre o que podem fazer diante do diagnóstico de um filho que está morto. Morto porque um feto com anencefalia está tecnicamente morto conforme a lei brasileira de transplantes de órgãos. O eletroencefalograma de um feto anencéfalo e de alguém com morte cerebral é exatamente igual. Apesar de estarmos diante do mesmo fato morte, as emoções e crenças que envolvem o tema são diversas.

De um lado, fala-se em eugenia; de outro, em tortura. Eu já escrevi várias vezes sobre esse tema nesta coluna e não me canso de ficar assustada com as reações. É estarrecedor ver como as convicções pessoais causam miopia e perversidade.

É perverso exigir que o outro comungue da mesma moralidade que eu, mas é mais perverso transformar a minha moralidade em lei. As pessoas devem ter o direito de escolha. Poder escolher não significa ter que fazer, e em nada o tema da anencefalia se assemelha ao do aborto. É irresponsabilidade afirmar o contrário. O feto anencéfalo está morto pela lei brasileira. Portanto, ou se muda a lei de transplantes e o conceito de morte adotado pelo Estado brasileiro ou percebe-se que esse conflito moral não é um conflito jurídico e, mais, é perverso.

Os conflitos em torno do fato anencefalia não são de ordem técnica, mas moral. E são, acima de tudo, uma excelente metáfora para perceber a maturidade da sociedade brasileira em termos de garantia de pressupostos basilares como liberdade de crença e pensamento.

Fala-se em proteção à vida, mas a proteção à vida ocupa um lugar comum nas retóricas dos corredores do poder deste país. As pessoas lidam com a vida de forma contraditória e paradoxal ao ponto de terem a tortura e o sofrimento do outro como os troféus da imposição moral irresponsável.

Dominação e dor. Essas são as consequências de um debate desnecessário. O tema da anencefalia no STF é tão bizarro quanto a discussão sobre os índios e negros terem ou não alma. Sinto vergonha e temor dos homens e mulheres de poder. Mas sinto, principalmente, compaixão pelas mulheres que sofrem sabendo que o filho no ventre está morto e tem seus corpos transformados em caixões por causa da vontade alheia de alguém que jamais irá confortá-las. Oxalá os ministros do STF tenham a lucidez necessária para decidir conforme o direito e somente conforme o direito.

buglione.s@gmail.com

*bacharel e mestre em direito, doutora em ciências humanas
 
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