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 | 08/01/2011 17h09min

A saga de um gaúcho no caos

Tudo começou durante um encontro relaxado em Brasília. Era outubro de 2008. Tudo terminou em outro encontro, desta vez tenso, em Porto Príncipe – a capital do Haiti. Era novembro de 2010. Por dois anos, entre uma e outra reunião, o gaúcho Ricardo Seitenfus foi o representante da Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti. Agora, ele está oficialmente em férias. Extraoficialmente, afastado do cargo em definitivo. O motivo: fez duras críticas à atuação da comunidade internacional na nação caribenha. Nesse período, houve um devastador terremoto, com cerca de 250 mil mortos, e uma eleição presidencial permeada de fraudes, que ainda terá recontagem de votos e segundo turno.

No Brasil desde o Natal, Seitenfus passou por Porto Alegre antes de seguir para Brasília, onde acompanhou as posses da presidente Dilma Rousseff e do novo chanceler brasileiro, Antonio Patriota. Em conversa com Zero Hora, empunhando uma pasta marrom repleta de documentos e fotografias, relatou sua experiência no Caribe, que iria até 31 de março. Confira:


Como começou?

Seitenfus conta:

– Em outubro de 2008, fui a uma reunião em Brasília, conversar com o chanceler Celso Amorim. Eu era vice-presidente do Comitê Jurídico Interamericano da OEA. Falávamos sobre o Haiti. No final da conversa, o secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, convidou-me para representar o órgão. “Te interessa ir, Ricardo?” E pensei: se disser não, vou me arrepender. Se disser sim, vou e volto caso fique doente, porque sempre que fui ao Haiti adoeci. Assinei o contrato em Washington, em novembro. Em 16 de janeiro de 2009, assumi minhas funções em Porto Príncipe.

O terremoto

Seitenfus veio para o Brasil, de férias, em 8 de janeiro de 2010. No dia 12, às 20h15min, seu celular tocou. Quando relembra esse momento, ele engasga e contém as lágrimas. Para de falar. Esfrega os olhos. Foi assim:

– Ricardo, onde estás?

– Estou na minha casa, em Arroio do Tigre.

– Felizmente!

Do outro lado da linha, uma amiga, poetisa, ligando de São Paulo.

Nervoso, o gaúcho foi para a internet se informar. Ligou para Insulza, que lhe pediu: não volte, espera passar as réplicas do terremoto.

Na noite de 12 a 13 de janeiro, Seitenfus não pregou o olho. Soube de prédios públicos destruídos. Pensou no destino das casinhas de encostas. No famoso Sucatão (que serviu de avião presidencial), seguiu com dois diplomatas e uma equipe de bombeiros para Porto Príncipe. Aí, outro diálogo, com uma amiga haitiana:

– Onde tu vais dormir? – perguntou ela.

– Em casa.

– Que casa?

– Minha casa.

– Mas teu prédio caiu.

Ele dormiu na base militar do contingente brasileiro, no quarto do capelão. No seu antigo prédio, alguns corpos sequer foram resgatados. Desde então, foi testemunha do inferno. Os haitianos pouco choravam. Apenas olhavam, parecendo perguntar, em tom suplicante: “Por que nós?”

A desilusão

O horror do terremoto foi seguido da epidemia de cólera. Seitenfus conta como se desiludiu:

– Logo após o terremoto, a comunidade internacional fez um trabalho excepcional. Os haitianos receberam socorro. Mas, terminada a urgência, as coisas começaram a não funcionar como deveriam. Em março, houve uma reunião com os doadores, em Nova York, na qual foram recolhidos US$ 11 bilhões para o Haiti. Só que esses recursos não chegaram ao país. Criou-se uma comissão internacional para a recuperação do Haiti que até hoje está procurando suas verdadeiras funções. As promessas da comunidade internacional não foram cumpridas, e a situação dos desabrigados continua a mesma.

Alegação oficial

O motivo das suas atuais “férias” seria a entrevista ao jornal suíço Le Temps em 20 de dezembro, na qual Seitenfus questiona o papel das tropas da ONU no Haiti e a ação dos países doadores. Insulza leu e telefonou para o celular de Seitenfus em Porto Príncipe. Pediu que saísse de férias. Argumentou que ele falara demais e que isso não era adequado para seu cargo.

E o que, enfim, Seitenfus disse ao Le Temps? Que a ONU impôs a presença das tropas no Haiti, um país que não está em guerra civil e não é uma ameaça internacional – “Não é nem Iraque, nem Afeganistão” –; que os haitianos pagam por estar próximos dos Estados Unidos; que são “prisioneiros em sua própria ilha”; que “cometeram o inaceitável em 1804 (ano da sua independência), em um mundo colonialista, escravagista e racista”; que “o modelo revolucionário haitiano dá medo às potências”. Enfim, Seitenfus afiou a língua e cortou fundo.

O estopim

Mas, segundo o próprio Seitenfus, o motivo acima foi apenas um pretexto para afastá-lo. Em 28 de novembro, dia do primeiro turno da eleição, o Core Group (países doadores, OEA e Nações Unidas) se reuniu para discutir uma questão que ainda hoje Seitenfus qualifica como “assustadora”. Diz o gaúcho que ali, provavelmente, ficou definido seu afastamento:

– Sugeriram que o presidente René Préval deveria deixar o país. Fiquei estarrecido. O premier do Haiti, Jean-Max Bellerive, chegou e disse que não contassem com ele para soluções à margem da Constituição. Perguntou se o mandato de Préval estava sendo negociado. Silêncio na sala, parecia consentimento. Ao meu lado, estava Albert Randim, secretário-adjunto da OEA. Pedi a palavra e lembrei a carta democrática interamericana, que a discussão sobre o mandato de Préval seria um golpe. Olhei para o embaixador brasileiro. Ele concordou comigo.

Soberania

Contando que, certa vez, o presidente René Préval dissera que as eleições presidenciais no Haiti fatalmente teriam fraude – um pouco mais ou um pouco menos –, o gaúcho Ricardo Seitenfus defende a autodeterminação haitiana e a construção da democracia “de dentro para dentro”:

– Um governo provisório não teria legitimidade das urnas e seria o reconhecimento do nosso fracasso. A comunidade internacional está decidindo pelo governo do Haiti.

E diz mais, a respeito do futuro haitiano:

– O desenvolvimento do Haiti tem que ser feito pelos haitianos. Ser solidário não é substituir alguém, é acompanhar alguém. E estamos decidindo por eles. Agora estamos nos metendo no processo eleitoral. Deixem as instituições haitianas resolverem seus próprios problemas.

O livro

Até junho, Seitenfus lançará seu livro sobre o Haiti nos últimos dois anos. Será uma mistura das experiências que viveu com as pesquisas próprias de um professor universitário.

– Provavelmente, será lançado em diversos idiomas. Terá um balanço da atuação da comunidade internacional no país. Já tem uma editora, e estou juntando o material.

LÉO GERCHMANN
 
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