Esportes | 29/03/2010 14h03min
Em 31 de maio de 1991, a Zero Hora publicava a crônica "O gol da ressureição", assinada por Armando Nogueira. Ele exaltava o bom futebol de Raí no São Paulo campeão brasileiro, e de Júnior no Flamengo, e abordava também outros assuntos relacionados àquele ano. Releia:
O gol da ressureição
Armando Nogueira*
Se, por milagre dos deuses, o velho Nenem Prancha tivesse descido à terra brasileira, nos últimos dias deste ano penoso, certamente que o inefável filósofo do futebol estaria, hoje, tornando aos céus pra lá de contente. Ele teria visto o galante Rai empolgar a multidão do estádio com esplendor de seu futebol: Rai pintou um arco-íris no horizonte do Morumbi. Nenem Prancha teria visto, ainda, o Maracanã todo prosa, olhos fitos nos cabelos brancos de Júnior, que, à beira dos 40 anos, anda jogando o futebol de príncipe com que sonham todas as bolas deste mundo: cada fio de cabelo branco é um passe certo que Júnior deu na vida.
Viveu, enfim o futebol um desfecho de temporada realmente memorável em que nada faltou nas grandes decisões: jogos vistosos, lealdade na luta, ânimo ofensivo, dribles insolentes, passes comoventes e gols da melhor invenção brasileira: gols de sem-pulo, gol de cabeça, gol de tabelinha, e até o sempre querido gol sem-querer. Só não se fez mesmo foi gol de bicicleta: e não se fez porque, como é público e notório, a Casa do Pedro tinha acabado de vender toda a frota nacional ao Ministério da Saúde.
Só não se fez gol de bicicleta porque o Ministério da Saúde tinha comprado todas
E pensar que terminou assim, triunfalmente, um ano que transcorria debaixo do mais alarmante baixo astral. Em dado momento, cheguei a temer pela sorte do futebol, tal a degradação a que a estupidez humana estava arrastando os valores do jogo mais apaixonante do mundo. A falta de ética que afeta a vida pública brasileira invadiu os estádios, subvertendo todos os códigos de conduta dentro e fora do campo. Em vez do drible, um pontapé; em vez de um passe, um cachação. Era a lei da selva escancarando a pusilanimidade dos árbitros que faziam vista grossa ao vasto repertório de anti-jogo, que vai da cera despudorada à brutalidade mais gratuita. A desfaçatez da arbitragem era mais revoltante ainda porque coincidia com a última palavra de ordem da FIFA, que mandava punir, com expulsão, a rasteira, o pontapé traiçoeiro e outros golpes desleais que ferem fundo a essência do futebol.
Lá em cima, as arquibancadas iam ficando cada dia mais desertas: nem as bandeiras que tanto enfeitam o estádio, nem mais a singela coreografia das torcidas, aquecendo o espetáculo e enriquecendo a trilha sonora de cada gol com o seu canto festivo.
Foi naqueles dias amargos que baixou em mim, certa vez, um tremendo acesso de melancolia. Que diabo, eu venho de outras eras. Sou dos tempos em que o futebol brasileiro sabia refinar sua técnica, elevando-a às culminâncias da arte: o drible era poesia, o passe era prosa, o chute era êxtase e o gol, delírio pleno.
Sitiado de tristeza, eu me perguntava sem eco: terá sido em vão aquele drible à direita que Garrincha inventou e que nos deu de mão beijada como herança maior?
E a “folha seca” com a qual mestre Didi decretou o outono de tantos goleiros pelos campos afora? E o milagre de Pelé, cujos gols – como eu já disse – eram tramados na véspera, pois, matreiro como ninguém, ele trazia de casa as traves e a bola do jogo...
Belas tardes em que a bola solar de Gérson, Tostão e Rivelino espalhava contentamento pelos campos mexicanos no mundial de 70. Eu tinha orgulho de chorar em público as lágrimas de alegria que não eram só minhas porque de todos nós, irmãos gêmeos de Carlos Alberto, de Jairzinho e Clodoaldo. Até hoje, eles dão a volta olímpica no Azteca da minha infinita saudade.
Bem-vindo sejas, doce Nenem Prancha, tu que me ensinaste a decifrar os mistérios da linha de fundo, fosse nos pés de Tesourinha, fosse nos pés de Garrincha ou de Julinho: tu que me mostraste, pela primeira vez, onde luzia o talento de Heleno de Freitas e a chispa certeira de Ademir Menezes. Tu que tanto louvavas com olhar reverente a majestade de Nilton Santos.
Faz de conta que estivesse aqui conosco, assistindo às esplêndidas finais do futebol brasileiro, no ocaso deste ano.
E, como sei quanto estimas o esporte da nossa paixão comum, com certeza não deixarás de contar aos nossos saudosos amigos, aí de cima, que o infante Elivelton fez, contra os tchecos, em Goiás, o que há de ficar na memória dos olhos como o gol do ano. Ele driblou uma fila de três e mais teria driblado se mais houvesse em seu vertiginoso caminho. À entrada da grande área, destampou o garoto um chute digno dos tempos venturosos da seleção. Um gol que transcendeu as malhas da rede para consagrar-se como um símbolo– o símbolo, quem sabe, da ressurreição do futebol brasileiro.
*Jornalista e escritor.
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