| 13/09/2001 22h05min
No dia 3 de setembro deste ano, o jornal Zero Hora já havia publicado uma reportagem detalhando a investigação da Polícia Federal sobre o prefeito de Chuí, Mohamad Kassem Jomaa (PFL). Leia abaixo a íntegra da matéria.
Um prefeito brasileiro que só pode portar documentos uruguaios
O prefeito de Chuí, Mohamad Kassem Jomaa, está na mira da Polícia Federal
CARLOS WAGNER
Há três meses, o prefeito reeleito de Chuí, Mohamad Kassem Jomaa, vive uma situação única no Rio Grande do Sul, inédita no Brasil e, possivelmente, muito rara ao redor do mundo.
Os únicos documentos pessoais que pode portar são uruguaios – como a maioria dos fronteiriços, ele é "doble chapa", porta carteira de identidade do Uruguai. E convive com a suspeita de estar ligado ao terrorista mais procurado no mundo, Osama bin Laden, e de ser o chefe da emergente Máfia Árabe, organização criminosa que lida com drogas, armas, lavagem de dinheiro e exploração de
mão-de-obra clandestina nas fronteiras
brasileiras.
– Fui transformado na Geni (personagem de uma peça de Chico Buarque). Todos atiram pedra em mim. E também em cabide, onde penduraram um monte de denúncias – compara Jomaa.
A história é longa e está toda documentada no Inquérito Policial 715/00, aberto pela Polícia Federal (PF) em 19 de dezembro de 2000, presidido na época pelo delegado Ademar Stocker, depois substituído por Airton Nascimento Vicente.
O inquérito ainda não foi concluído. Em 26 de junho, em cumprimento a prazos legais para a sua feitura, a PF o enviou para a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ), foro privilegiado que julga os crimes de prefeitos. Há outros sete processos correndo contra o prefeito no TJ. Atualmente, o delegado Vicente aguarda a resposta do tribunal sobre um pedido de 30 dias de prazo para concluir algumas investigações e anexá-las ao processo. A assessoria de imprensa da PF informou que a instituição não comenta o assunto. Assessores do TJ explicaram que o processo, que já soma dezenas de páginas,
está sendo enviado ao Ministério Público. O procurador deve ser Luiz Carlos Ziamkowski.
Contradições sobre local de nascimento alimentam suspeitas
A história começou no dia 6 de julho de 2000, na distante Beirute, capital do Líbano, terra natal da família de Jomaa. Naquele dia, Nabiha Jomaa, então mulher do prefeito de Chuí, entregou na embaixada do Brasil um pedido de separação do casal. E, junto, um atestado revelando que o marido nasceu no dia 16 de agosto de 1959 na cidade libanesa de Konaitra. Na documentação brasileira de Jomaa consta que ele nasceu em 25 de novembro de 1960, no bairro da Mooca, em São Paulo.
Dias depois da visita de Nabiha, o embaixador Sérgio Barcellos Telles denunciou a suspeita de fraude à PF, que começou a investigar. A denúncia não era nova. Durante a campanha da reeleição, no ano passado, um panfleto, cuja autoria foi atribuída a inimigos políticos do prefeito, denunciava o caso, recheado de detalhes. A investigação da PF aprofundou
as informações.
Um
exemplo é o Relatório de Missão 10 (com o carimbo de confidencial), entregue ao presidente do inquérito em 20 de julho de 2000. O documento, em uma linguagem simples e objetiva, aponta as contradições encontradas na investigação feita sobre o nascimento e o registro de Jomaa nas cidades paulistas de São Paulo, Araçatuba e Andradina. Nos hospitais da região onde consta ter nascido o prefeito, não foi encontrado registro de que sua mãe, Souleima Kasse Jomaa, tivesse dado à luz.
A PF concluiu as investigações em julho deste ano. De posse de um mandado de busca e apreensão, o delegado federal da cidade de Chuí, Paulo Gustavo Maiorino, apreendeu toda a documentação brasileira de Jomaa.
– Mas o pior estava por vir: descobri que era acusado no inquérito de ter ligações com terroristas e mafiosos. Essas acusações são como uma sentença de morte – interpreta o prefeito Jomaa.
Acusações: no inquérito confidencial da PF, ainda não concluído, Jomaa é acusado de envolvimento com drogas, com a Máfia Árabe e com o
terrorista Osama bin Laden
Entrevista: "Tenho como provar que sou inocente"
A cidade de Chuí é povoada por uma das maiores colônias árabes da América do Sul. O prefeito da cidade, Mohamad Kassem Jomaa, foi eleito pela comunidade. E a sua maneira de conduzir seus negócios, vida política e pessoal tem semeado uma boa quantidade de conflitos, muitos deles dentro da própria colônia. Agora ele está envolvido no maior de todos: teve os documentos apreendidos pela Polícia Federal (PF) por suspeita de fraude. Relatórios do Núcleo de Inteligênica da PF o vinculam a extremistas. Ele falou para Zero Hora, em Porto Alegre, sobre o que considera uma conspiração contra os seus interesses. A seguir, trechos da conversa.
Zero Hora - O inquérito da Polícia Federal número 715/00 levanta suspeitas de que o senhor tenha fraudado o local do seu nascimento, que seria o Líbano, e não São Paulo, como consta em seus
documentos brasileiros.
Mohamad Kassem Jomaa - Tenho como
provar que sou inocente. O meu pai (Jamil Mohamad Jomaa) reuniu a família e contou o que aconteceu. Tive um outro irmão, que tinha o meu mesmo nome e nasceu no Líbano. Morreu ainda bebê logo depois de ter vindo para o Brasil. Os meus pais colocaram o mesmo nome em mim.
ZH - Mas a PF investigou. Não há registro do seu nascimento nos hospitais de São Paulo e tampouco atestado de óbito do seu irmão. Como pode?
Jomaa - Simples. Como a maioria das pessoas pobres naquela época (1960), eu nasci em casa e só fui registrado quatro anos depois. Também não foi tirado atestado de óbito do meu irmão, porque os meus pais não julgaram necessário. Veja bem: a minha família é de imigrantes pobres, o velho era mascate. A vida era muito dura. Em uma situação assim, a coisa mais importante é sobreviver.
ZH - Há três meses a sua documentação brasileira foi apreendida pela PF. Como é a vida de um prefeito sem documentos?
Jomaa - É um inferno. Viajo constante mente
pelo país. Não tenho como não viajar.
Cada vez que um guarda se aproxima de mim, tremo. Por exemplo: como provar a um policial paulista que sou prefeito e comerciante se não tenho nada que prove? Até explicar que focinho de porco não é tomada de luz, posso já ter passado por um série de constrangimentos.
ZH - Como o senhor faz para se hospedar em hotéis ou dirigir?
Jomaa - Só fico hospedado em hotéis onde já tenho ficha, se estiver lotado estou frito. Dirigir é o maior problema. Às vezes, por grande necessidade, dirijo sem carteira. Só quero ver o rolo que vai dar se for pego.
ZH - Mas o senhor tem documentos uruguaios. Isso não facilita a sua vida?
Jomaa - Tenho uma carteira de identidade vencida. E creio que não vou poder renová-la, porque isso está nos relatórios que integram o inquérito. Há uma estreita colaboração entre a PF e os uruguaios.
ZH - Os relatórios do Núcleo de Inteligência da PF vinculam o senhor ao terrorista mais procurado do mundo, Osama bin
Laden. Dizem que o senhor é o responsável pela
lavagem do dinheiro dele em Chuí?
Jomaa - Só pode ser brincadeira. É uma brincadeira de mau gosto. Se fosse verdade, os serviços de informações do mundo inteiro são incompetentes, porque ainda estou livre. Quanto tempo dura, fora da cadeia, uma pessoa que tenha essas ligações?
br>ZH - Também informam que o senhor ajudou o egípcio El Said Hassan Aly Mohamed Mokhles (preso no Uruguai como terrorista).
Jomaa - Hospedei a família dele e comuniquei à PF. Os contatos que fiz foram todos a pedido da sua mulher e não foram reservados. As autoridades uruguaias presenciaram. Cumpri a minha obrigação de prefeito.
ZH - Há também acusações do seu envolvimento com drogas, armas e lavagem de dinheiro.
Jomaa - Pura bobagem. São apenas informações colhidas de maneira maldosa e colocadas em relatórios oficiais como se fossem verdade.
ZH - Na sua opinião, por que há todas essas acusações contra o senhor?
Jomaa - Tenho uma idéia de
como tudo começou. No ano passado, falei em uma emissora
uruguaia que pretendia ser candidato a governador da Intendencia (prefeitura) de Rocha. Muita gente ficou preocupada. E de uma maneira articulada, boatos se transformaram em "informações quentes". Essas pessoas estão sendo muito irresponsáveis, estão prejudicando a minha família.
ZH - Mas tudo começou com a denúncia da sua mulher, que informou à embaixada do Brasil no Líbano, que o senhor tinha nascido lá, e não no Brasil, como consta em seus documentos.
Jomaa - Vejo a coisa assim: um problema familiar foi aproveitado por meus inimigos. Se não houvesse a oportunidade, eles a criariam, porque já tinham tudo armado.
ZH - O senhor está dizendo que foi vítima de uma conspiração?
Jomaa - A minha reeleição deixou muita gente descontente. Mais ainda: a possibilidade de que o meu nome cresça como candidato a um cargo maior dentro do Estado é real. Bom: junta o interesse dos meus inimigos políticos desse lado da fronteira com os do outro lado, e o que
temos? Um inquérito policial engordado
por graves acusações falsas que se tornaram verdadeiras porque estão em um papel timbrado.
ZH - Como é que pode acabar toda essa história?
Jomaa - De uma maneira simples. Estou contratando um bom advogado para resolver o problema da nacionalidade e processar aqueles que forneceram falsas informações a meu respeito para os relatórios que acompanharam o inquérito da PF. Falaram, agora vão ter que provar.