| 06/04/2002 16h50min
O tricampeão de Roland Garros está confiante em defender o título. Gustavo Kuerten (foto) – que, mesmo sem jogar se mantém em segundo do ranking desde o início do ano – já projeta sua participação no torneio mais charmoso do planeta, de 27 de maio a 9 de junho. Diz que será muito difícil conquistar o tetra, mas garante que só o fato de jogar lá já será uma vitória.
Em uma entrevista exclusiva ao Diário Catarinense, o maior tenista sul-americano de todos os tempos fala de sua vida, dos bastidores do Circuito Mundial e de suas preferências. Analisa os melhores tenistas da atualidade e conta que o russo Marat Safin é o atleta mais manhoso no jogo. Já o australiano Patrick Rafter merece o troféu fair-play (jogo limpo) por suas atitudes dentro e fora das quadras. Guga diz também o que mais o motiva a jogar e o que diferencia um tenista mediano de um gênio. Abre o jogo e fala o que mais o impressiona em uma mulher.
Diário Catarinense: Dissestes uma vez que o Agassi e o Sampras estão em outro nível, agora, depois de ficar 43 semanas no topo do ranking (o terceiro tenista em atividade que mais semanas esteve na liderança), tu ainda pensas assim?
Guga: Eu me considero em um outro nível. De repente, de três anos para cá eu cheguei muito mais perto do nível deles, mas eu considero os dois um pouco além, não só de mim, mas de todos os caras que jogam na atualidade. Eu os vejo um degrau acima dos melhores e muito além dos demais, mas isso não quer dizer que um dia eu não possa chegar lá. Dá até para comparar pelos títulos, Agassi já ganhou 14 Masters Series e todos os eventos de Grand Slam, Sampras já ganhou 13 torneios de Grand Slam. Os dois começaram a carreira muito bem, estão indo muito bem, tiveram mais de 70% da carreira deles no auge. É muito difícil se manter o tempo todo no seu melhor, então esses caras eu considero eles num nível um pouco além, um nível um pouco mais alto do que o meu, mas não significa que um dia eu não vou estar lá ganhando de um, de outro, mas com toda a história que já fizeram no tênis, ainda vejo uma diferença, qualquer um pode ver isso, eu comparo o Agassi e o Sampras com caras tipo Bjorn Borg, John McEnroe, Jimmy Connors, foram caras também que fizeram história, eu digo até que o Boris Becker é um cara que teve êxito para caramba, mas que em resultados não teve tanto sucesso quanto eles. Mas, dependendo da personalidade, pode ser um cara tão famoso quanto o outro, eu vejo uma diferença, falta bastante coisa, até já vi comparações citando meu nome com Sampras e Agassi, mas acho que não é por aí, tem várias coisas para tentar melhorar, para eu poder me sentir nesse nível. Se me perguntam hoje eu não me sinto no mesmo nível que esses caras levaram tanto tempo para atingir na carreira.
DC: Passaste agora por um momento difícil, com a lesão e a cirurgia, qual o sentimento que te motiva a jogar?
Guga: Pelo menos três quartos do ano passado eu já sentia bastante essa lesão, mas não deixou de ser prazeroso para eu treinar, competir, me motivar para o próximo campeonato, próximo jogo. Agora, de onde eu tiro essa motivação é difícil dizer. Eu acho que o espírito competitivo é o "sangue" dessa motivação, é o que está sempre circulando nas minhas veias. Às vezes jogo dominó com a mesma vontade de aprender, de ganhar e de me superar, então isso é o "sangue" da minha motivação, claro que tem outras coisas que aumentam ainda mais. Alguns campeonatos especiais como um Grand Slam com certeza traz os nervos mais a flor da pele, faz o cara se sentir mais acelerado, motivado. Tem um que eu vou perder esse ano, Monte Carlo, que eu adoro jogar. Depois é o prazer e a oportunidade de poder estar hoje em dia em um patamar que eu sempre esperei, sempre foi meu objetivo. Às vezes eu perco a primeira rodada em um torneio como o de Acapulco, no México, de 1 milhão de dólares, e hoje em dia pode até ser considerado um mau resultado, porque no ano passado eu fui campeão. Se eu jogasse esse ano poderia sair na primeira rodada, mas pôxa, analisando bem, eu ia para o México a seis anos atrás jogar torneios satélites, sonhando um dia poder disputar um qualifying desses campeonatos. Essas coisas me vem na cabeça, é preciso lembrar disso também para botar os pés no chão, para relembrar, não é só eu, os caras que estão jogando esses torneios, Fernando Meligeni, André Sá, Alexandre Simoni, são todos privilegiados, porque estamos perto da elite, estamos jogando os melhores torneios, mas claro que não é só isso que vai fazer a gente feliz. O cara estando ali quer cada vez se mais se superar, isso também motiva a gente para em uma hora difícil ir lá e treinar um pouco mais, porque muita coisa pior já ficou para trás. Estamos vivendo um momento muito melhor do que já foi vivido há alguns anos pelo país.
DC: O teu desempenho no ano passado foi excepcional ao ponto de esse ano tu praticamente não ter jogado e ainda se manter em 2º no ranking. Como é isso?
Guga: Nos últimos três anos acho que eu joguei muito bem, estava me sentindo super à vontade na quadra, quase todo torneio eu estava beliscando ali, tinha chance de ganhar em quadras de saibro. Sempre joguei bem até em quadra coberta como foi no Masters, quadra dura, torneios que eu estava lá e incomodava os caras, quando davam uma chance eu ia lá e ganhava, então foram anos de um tênis muito consistente. Em 2001 foi o ano que eu mais ganhei torneios, seis ao todo. No final da temporada acabou brigando eu e o Lleyton Hewitt. A diferença ficou muito grande a partir do segundo colocado. Se tivesse um cara encostado eu poderia ter caído para terceiro, quarto, mas nunca que eu ia cair de uma hora para outra para 50 ou 60 do ranking. Ano passado eu diria que foi o ano que eu mais bem joguei, teve uma fatalidade ali no final que eu não consegui encontrar um ritmo legal para dar o último gás, mas tive oito meses assim. Ganhei cinquenta e tantos jogos e perdi nove ou 10 partidas.
DC: Qual é o algo mais para ficar 43 semanas no topo do ranking?
Guga: Comigo aconteceu primeiro de eu chegar perto e até tropeçar um pouco ou ter alguma dificuldade em conseguir, de tanta ansiedade de chegar a ser o número um. Como eu fiquei ali quase um ano (em 2000) até conseguir no final da temporada (com a conquista da Masters Cup, em Portugal), da mesma forma consegui ficar bastante tempo na liderança. Não cheguei por acaso, foi uma coisa programada. Eu sabia o que era jogar um torneio Grand Slam defendendo o título (Roland Garros), que iria precisar as vezes ganhar uma partida jogando mal, dando um jeitinho de vencer, e saber me comportar também como número um.
DC: O que é que faz tu seres o Guga e não um outro tenista qualquer no ranking mundial?
Guga: No destino propriamente dito eu não acredito muito, mas eu acho que é uma coisa que tu vai, no meu caso, encontrando no passado, nas derrotas, nas vitórias, que o meu caminho era aquele ali, desde o começo quando tudo era muito pequeno até quando era muito grandioso, e comecei a ganhar Roland Garros (Guga venceu em 1997, 2000 e 2001), então eu fui sempre vendo que o meu caminho realmente era aquele, disso eu dependi muito de pessoas ao meu lado para me dar essa certeza. Acho que o Larri fez o maior papel nesse lado de botar sempre isso na minha cabeça, a minha família tem muito da minha personalidade em si, que traz esse carisma maior com o público, que faz eu me aproximar das pessoas que estão assistindo, que é o meu jeito de ser, a maneira que eu convivo, até mesmo meus amigos, acho que essas pessoas vão influenciando na maneira como tu vai chegar lá, se tu vai ter essa luz, se é um cara iluminado, acho que o esforço e a qualidade do jogador ali é praticamente a mesma, mas acho que alguns são mais iluminados. Porque outros caras não são assim também? Mas de repente não conseguiram encontrar esse lado ou desenvolver, acho que eu tive com certeza o dom, a luz de poder fazer o que eu faço, mas em cima disso eu tive que desenvolver muito o meu potencial para chegar lá. Tem um pensamento que é da minha mãe (Alice): "Deus deu o dom, só que coube a ti desenvolvê-lo". Essa dádiva eu comecei a correr atrás e podia ter chegado a 25 ao vencer em Roland Garros e ficar satisfeito, mas não, essa idéia que foi passada para mim que eu fui assimilando foi sempre chegar um pouco mais além, e quem sabe chegar mais, até que cheguei número um, e para mim acho que até foi um ano que eu vivi mais tranqüilo, parecia que nem era o líder do ranking, depois que eu deixei de ser, eu parei e analisei, pôxa, quanto tempo eu fiquei como número 1, quantos caras que para mim eram muito melhores do que eu desde criança, então hoje em dia eu vejo assim e até me assusta um pouco as coisas que eu consegui alcançar.
DC: Há algum golpe que te impressione e que tu tentes executar e não consiga?
Guga: Ás vezes dá vontade de ter a esquerda nas duas mãos, tu bate com mais força, tem muito mais facilidade para responder, as vezes eu olho na televisão e tenho vontade de ter essas duas mãozinhas para me ajudar (risos), mas da mesma forma as vezes eu dou uma esquerda perfeita e digo, é melhor deixar assim mesmo, até eu aprender vai demorar muito (risos).
DC: Com toda a tua experiência como top no Circuito Mundial tu já conheces muitos atalhos nas quadras?
Guga: Acho que esse atalho vem até de fora da quadra, o que ajuda muita vezes é saber já os lugares certos, a quadra onde tu vai treinar, a quadra onde tu vai jogar, que às vezes é diferente, saber a maneira que tu vai chegar daqui um mês ou daqui a duas semanas para jogar os torneios, isso facilita na hora do vamos ver. Na quadra mesmo, os detalhes de jogo, da tática em si, acho que vai muito da maneira que tu está reparado, então é isso que ajuda, às vezes tu vai num torneio tipo Roma, em que eu me sinto super bem, tu já sabes o dia que tu vai chegar certinho, para poder levar dois dias para se adaptar ou não, pode chegar mais em cima da hora... Então são detalhes que fazem o cara ser campeão ou perder em uma primeira ou segunda rodada. O campeonato não é decidido ali na final, a gente começa a construir um título na primeira rodada, ganhando jogos duros ou salvando um match-point em uma partida difícil, no caso Roland Garros, para depois chegar na final e fazer um melhor jogo e ser campeão. O que eu devo fazer antes, para chegar lá melhor, acho que esse é o segredo.
DC: Qual o tenista mais manhoso do circuito?
Guga: O cara que faz mais manha, que se faz de morto é o Marat Safin. Tem vez que parece que ele não quer nada, tira raquete, não está com vontade, mas ele está sempre ali, se tu dá uma bobeira ele ganha o jogo de ti. Então é um cara que não dá para descuidar e da mesma forma que parece que ele não quer te ganhar, é justamente a idéia que ele quer te passar para tu dar uma bobeira e ele te ganhar. Tem várias manhas diferentes, o Sampras e o Agassi são caras que tem uma atitude mais de intimidar o adversário, o juiz. Eles tentam sempre se impor diante de todo mundo. Para chegar ali tem que ter uma manha. Mas cada um tem uma manha diferente, o Safin é o mais sacana (risos).
DC: E o troféu fair-play (jogo limpo) é de quem?
Guga: Eu me dou muito bem com caras da minha idade (Guga tem 25 anos). Bons exemplos são o Nicolas Lapentti e o Carlos Moya. O Patrick Rafter, apesar de não ser da minha idade (tem 30 anos), de eu não ter uma relação com ele desde juvenil como o Lapentti e o Moya, ele é um cara que respeita todo mundo, dá para ver que ele pensa em outras coisas, não é só o tênis. Tanto é que ele estava em forma e decidiu dar um tempo, fazer outras coisas. Acho que o troféu seria para ele, é um cara maduro, tem um projeto filantrópico excelente lá na Austrália, eu sinto que ele está ali para fazer outras coisas também.
DC: É difícil ser um brasileiro criado no saibro e bem-sucedido no Circuito Mundial?
Guga: Tem esse negócio dos pisos (aproximadamente 70% da temporada é na superfície rápida), mas isso não pode ser impedimento. O negócio de ser brasileiro não significa que tu és obrigado a ser melhor no saibro do que em outras quadras. Então eu tento me adaptar com o que acontece. O que é difícil é tu jogar sempre fora do teu país, se acostumar com os costumes de outros povos, nos Estados Unidos eles gostam de beisebol, rugby. Então ou tu fica de fora, te fecha ou tenta aprender alguma coisa, mas também não é o tempo todo, tem esses outros caras que são meus amigos, assim dá para curtir a maior parte do tempo. Algumas vezes tu fica mais sozinho, mas também é uma forma de tu buscar forças e energias ali, porque o brasileiro é um povo querido, tem um carisma na maioria dos países. E claro que as vezes tu lida com preconceitos no mundo inteiro, tu vais jogar nos Estados Unidos e o americano se acha um pouco superior aos demais, tu vais para Portugal e tem que se adaptar às piadas dos portugueses com os brasileiros. É uma coisa que vai acontecer. É a desvantagem de nunca ter um circuito aqui, estou convivendo sempre fora do meu ambiente.
DC: O que no teu jogo pode desequilibrar numa partida ?
Guga: Acho que o segredo que eu alcancei foi não precisar realmente de uma única arma para virar o jogo. Não que eu vá precisar somente da direita para me tirar do buraco, ou só do saque, então em qualquer momento que o cara der uma bobeira eu posso bater uma esquerda, uma direita, sacar numa hora certa. O meu principal objetivo, desde criança, é entrar e não deixar nenhum buraco, fazer um jogo completo. Sempre tem um lado que compensa quando eu não estou bem, eu tenho muita variação no meu jogo, tem muitas armas que eu posso usar.
DC: O que mais te impressiona numa mulher?
Guga: Posso pedir a ajuda dos universitários (risos)? Brincadeirinha, o que mais me impressiona na mulher em si é o poder de atrair o homem, de conseguir deixar o cara meio vulnerável, de conquistar. Eu acho que as mulheres tem 10 vezes mais força do que qualquer um de nós. Ela consegue dar um banho. É como se fosse eu e tu na quadra (risos), eu sou a mulher e tu és o cara (gargalhadas, inclusive do entrevistador). É o charme, a beleza, o poder da sedução, de conseguir deixar o cara perdido. Tomara que a mulher seja boa comigo, porque a gente está sempre nas mãos delas (risos). Estou solteiro, mas também tenho minhas relações como todo mundo. Acho que a pessoa que estiver comigo tem que saber que eu não vou poder passar muito tempo junto devido aos compromissos com o Circuito Mundial. Mas é também uma maneira de eu me motivar mais, treinar mais empolgado. Quero que a mulher que estiver comigo me sirva de inspiração para cada vez mais estar feliz, contente, por que isso aí é um lado que a raquete e a bolinha não trazem.
DC: Tu és um notável camaleão, sempre mudando o visual – principalmente no corte de cabelo – e agora resolveu adotar um estilo mais sério?
Guga: O meu cabelo é sempre assim, eu corto perto do verão, que dá aquele calorão, e depois ele vai crescendo. Até chegar em Roland Garros já está grandinho, no final do ano tá muito grande e eu corto de novo. Foi o meio que eu encontrei para o meu cabelo não atrapalhar (risos). Às vezes ele faz uma revolução sozinho, vai e se espeta todo, tipo black-power, depois fica encaracolado (risos).
DC: Nestes seis anos no circuito quais foram os teus grandes momentos?
Guga: São três. O mais importante é disputar Roland Garros, o primeiro, o segundo ou o terceiro títulos são indiferentes, mas ganhar lá, até mesmo entrar na quadra, nada me dá sensação melhor, basta estar lá no torneio e eu começo a ficar arrepiado, viver aquele clima. Depois é o título da Masters Cup (Portugal, em 2000), um grande degrau na minha carreira porque não foi uma coisa casual. Ganhei do Sampras e do Agassi. Raramente tu vês um cara que ganhou do Sampras em uma semifinal e do Agassi na final, em sequência. Em terceiro está o Master Series que eu ganhei na quadra rápida em 2001 (Cincinatti), que também foi muito importante. Eu tinha ganhado cinco Master Series no saibro e nenhum na rápida, já tinha beliscado duas vezes. Dois jogos que eu podia ter ganho, do Sampras, em Miami, e do Chris Woodruf, no Canadá. Essas foram as ocasiões mais especiais da minha carreira.
DC: E esse ano, vai mesmo conseguir jogar Roland Garros?
Guga: Acho que sim, deve dar para jogar, mas eu não quero impor nenhuma meta. Se eu continuar desse jeito, acho que eu tenho boas chances, até porque eu sou um cara superpositivo. É uma forma de eu me motivar para tentar melhorar. É claro que não vai depender só da minha vontade, vai depender do meu trabalho com o Larri. Mas no meu interior vejo boas chances, não que eu vá jogar da mesma forma como quando ganhei os três títulos, mas só de estar lá jogando já é uma vitória.
DC: Tem o lado social da tua carreira, isso te completa?
Guga: Sem dúvida, acho que tudo isso vai crescendo, as idéias, os projetos, o Instituto (IGK – Instituto Guga Kuerten) está indo superbem, até porque a minha mãe está trabalhando direto, se dedicando. Eu até sou um cara que me envolvo, tenho o meu nome para empenhar e dar uma ênfase maior, mas não sou a pessoa que hoje tem tempo pra ficar em cima disso o tempo todo. Então eu tinha que colocar alguém, e ainda bem que é dá família, gente com vontade de fazer isso. E o que é o mais importante é que a minha mãe está tocando superbem vários projetos. Eu consigo dar uma força para poder fazer a diferença na vida de muitas crianças carentes, é uma coisa supergratificante e da mesma forma é uma coisa que me engrandece. Hoje em dia não sou só eu que jogo, tem eu, a Fundação, os meus patrocinadores e a equipe que trabalha comigo.
OLAVO MORAES / SUBEDITOR DE ESPORTES / DC