| 18/04/2008 10h14min
Não era preciso pendurar a melancia no pescoço. Uma melancia deixada sobre a mesa em que Andressa Soares distribuiu autógrafos e tirou fotos na terça passada, no Rio de Janeiro, já servia para anunciar o que a fila de marmanjos queria ver ao vivo: os 121 centímetros de quadril que fizeram da carioca de 20 anos a celebridade-relâmpago na capa da edição especial da Playboy intitulada "Paixão Nacional". Com o sugestivo apelido de Mulher Melancia, Andressa ficou conhecida rebolando ao som do funk Dança do Créu, com um bumbum capaz de impor-se até diante da ex-musa do Tchan, Carla Perez. As personagens, as medidas e o rebolado variam, mas o traseiro permanece como um fenômeno de marketing e fator de peso na cultura, no imaginário e no desejo dos brasileiros. É também objeto de uma controversa discussão.
Olhar o rebolar de quem passa é praticamente um ato reflexo do brasileiro. Mas mais do que olhar, há muitos contornos dessa paixão nacional a desbravar: o que se pode dizer de um país onde um
quadril
opulento encurta o caminho para a fama? Trata-se de um paroxismo de uma cultura machista ou é a celebração de um atributo de nove entre 10 brasileiras? Ou as duas coisas? A primeira certeza, contudo, é de que não é fácil discutir sobre esse tema. Por mais que as ancas assumam grandes proporções nas bancas, na música, na TV e nas ruas, debater a sério a questão é, para muitos, perda de tempo. Tanto que um respeitado antropólogo que freqüentemente analisa futebol pediu para ser "poupado" do debate. Uma historiadora preferiu passar a bola adiante. E até o cartunista que lançou uma revista chamada Bundas negou a entrevista por meio de sua secretária. Mas muitos estudiosos e artistas já levaram o tema a sério. A começar por Gilberto Freyre, autor de clássicos sobre a cultura e a sociedade brasileira, como Casa-Grande & Senzala. Ele escreveu o ensaio Uma Paixão Nacional.
A origem da tal preferência nacional remonta à mistura de raças na colonização do país. Junto com os negros africanos
vieram a
herança genética do bumbum avantajado e a própria palavra "bunda". Mas não foi só isso. Para Ronaldo Vainfas, professor de História da Universidade Federal Fluminense e autor de Trópico dos Pecados, a chave para entender por que essa é paixão nacional enquanto a preferência americana é peitos, por exemplo, reside nos costumes. Elemento fundador da cultura americana, o puritanismo impedia as mulheres de exibir minimamente que fosse os seios. Daí a virar fetiche, foi um passo. Já no Brasil, índias, negras e mulatas andavam com seios à mostra. Já o bumbum, esse ficava por baixo dos panos, podendo apenas ser imaginado - outro convite ao fetiche. O doutor em Psicologia Jacob Goldberg propõe uma interpretação mais sinuosa dessa comparação. Diz que o gosto pelo traseiro coloca simbolicamente a mulher brasileira em uma posição inferior, de costas, sem que o homem a olhe nos olhos, como mais facilmente faria um americano, fã de peitos. Mas aposta na onda do silicone e de valorização dos seios para inverter esse jogo
de poder. Ao menos faria subir o olhar masculino. Para a antropóloga Mirian Goldenberg, autora de O Corpo como Capital, brasileiras e americanas teriam igualmente o ônus da valorização de um determinado atributo físico. Mas, mesmo assim, as brasileiras sairiam perdendo.
- Simbolicamente, é um pouco mais igualitário olhar para a parte superior do que para a parte inferior da mulher - compara Mirian. - O problema não é a bunda em si, mas o fato de essa parte do corpo ser valorizada como o principal capital da mulher. Se ela é inteligente, respeitada, tem uma carreira e uma bunda gostosa, ótimo. Mas se o prestígio vem apenas da bunda, aí é problema.
Não há um consenso de que isso seria um problema ou, pelo menos, que tamanho o problema teria. Para a psicanalista Diana Corso, esse escracho representado por uma mulher rebolando um quadril de 121 centímetros, certa de que atrai todos os olhares, enquanto um homem canta uma letra simplória, pedindo um requebrado cada vez mais
rápido, no que é
prontamente atendido pode funcionar como um "descanso para alma", fazendo o sexo parecer muito mais simples do que realmente é. Momentaneamente, essa obviedade que explicita o desejo e sua possível consumação faria a platéia esquecer suas próprias questões sexuais. Diana sublinha que, embora se possa ver o culto às ancas herdadas das negras como resquício da submissão da escravatura, ela prefere destacar a glamourização do corpo do povo que chegou como escravo - e que agora as mulheres brancas se esforçam por imitar. No meio da entrevista por telefone, o marido de Diana, o psicanalista Mario Corso, pediu a palavra:
- Já viu coisa mais brasileira do que a Mulher Melancia? É o que mais se vê nas ruas. Que o gosto do brasileiro se incline para aí, acho ótimo - destaca Mario, para logo comentar sobre a valorização da bunda em detrimento de outros atributos femininos. - O disparador do desejo começa por uma parte e depois vai para o todo. Infelizmente, a lógica não é politicamente
correta.
Pesquisadora do funk e da linguagem dos corpos juvenis, a antropóloga Glória Diógenes também pede cautela antes de cair num discurso maniqueísta acerca do tema: a questão é bem mais cheia de contornos. Afirma que há, sim, uma inegável exploração do corpo da mulher no Brasil e lembra dos postais com modelos de biquíni fio-dental que divulgavam as atrações do país (até serem proibidos, associados a um convite ao turismo sexual). Mas Glória adverte:
- Às vezes, se cria um alarme como se tudo degradasse a mulher, toda referência a esse atributo que é típico da brasileira. Mas isso não é invenção do mercado, a própria mulher expõe e valoriza esse atributo.
Não faltam interessadas em gastar tempo e dinheiro com o bumbum: malhação, cremes, tratamentos estéticos e até silicone são recursos para modelar, empinar e/ou aumentar o alvo da paixão nacional. E depois, claro, exibir o resultado de tanto esforço em um biquíni diminuto. Há também as calcinhas com enchimento para
preencher o que a natureza não
forneceu - e o nome de uma delas é sugestivo: Invejja.
Glória lembra que o gesto quase automático com que um homem vira a cabeça para encarar o bumbum de uma mulher é sinal também da naturalidade em relação ao corpo que está no cerne da cultura brasileira. Uma cultura que assimila personagens como a cantora Gretchen (precursora da Mulher Melancia e outras candidatas à Vênus Calipígia), que hoje anima festas temáticas dos anos 1980. Glória Diógenes pergunta ainda se as popozudas seriam mesmo vítimas da cultura machista:
- A um bocado de mulheres, só resta a bunda? Será? Algumas fazem isso de forma lúcida, estratégica. Pode ser um passaporte para fazer outra coisa.
É certo que ninguém "vive da bunda para sempre", como declarou recentemente o apresentador Luciano Huck - embora algumas possam fazer disso o ganha-pão por muitos anos, como Rita Cadilac, ex-chacrete e hoje atriz pornô. Huck lançou nos anos 1990 a dupla Tiazinha e Feiticeira, que estampou os
dois números mais vendidos da
Playboy brasileira e de quem hoje pouco ou nada se fala. A Mulher Melancia provavelmente terá vida curta.
- Trata-se de um planejamento para vender um produto, que no caso é ela mesma: uma celebridade instantânea, que se autoconsome - define Zico Farina, diretor de criação da Agência Africa.
O que vem depois disso? Apresentar um programa, como Carla Perez, ou o ostracismo com um bom pé-de-meia. E depois surge mais uma na música, na novela, no programa humorístico, no cinema, nos quadrinhos, onde for. Já se criou até o termo - pejorativo, diga-se - de "bundalização" da cultura brasileira, do mercado fonográfico, da TV... Mas até Gabriel O Pensador, que, em 1999, lançou em parceria com Fernanda Abreu a música Nádegas a Declarar para esbravejar contra o excesso de traseiros reinante, surpreendeu na entrevista. Disse que a música foi feita em tempos de "abundância de bundas ao mesmo tempo", como uma crítica construtiva:
- Mas adoro essa característica da
mulher brasileira, devemos celebrar
com humor, como esse personagem da Mulher Melancia, que é engraçado. Tem espaço para isso também. A bunda tem o seu lugar.
Ao fim, como diz o verso de Carlos Drummond de Andrade: "A bunda basta-se".
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