Vestibular | 22/04/2014 12h27min
Há poucos registros da vida de Gregório de Matos Guerra. Não há certeza das datas de nascimento e morte (diz-se que o poeta nasceu em 1623 ou 1633 e morreu em 1695 ou 1696). Não publicou nada em vida, não deixou poemas escritos por sua própria mão — o que mostra a precariedade da vida intelectual na América Portuguesa, onde eram proibidas a imprensa e a universidade. Os livros eram editados em Portugal, sob risco de censura, e os estudos superiores eram feitos em Lisboa ou Coimbra. É extremamente precário (e discutível) o conhecimento que temos da vida do poeta.
Gregório produziu grande parte de sua poesia entre 1683 e 1695. Sua biografia torna-o um exemplar habitante da colônia portuguesa. Nascido no Brasil, educado e formado em Portugal, retorna já amadurecido para sua terra. Na Bahia, é destituído do clero, por não querer receber as ordens maiores nem usar batina. Vive entre duas culturas, o que aparece na sua obra como uma produção híbrida, em que as referências e os padrões europeus do Barroco ibérico se misturam às formas populares e aos dados locais.
Contemporâneo de Padre Antônio Vieira, ambos representam produções antagônicas do Barroco colonial. Enquanto o padre, pregando na Igreja, afirmava a transcendência da alma, o poeta, declamando na praça, torna-se cronista do mundo prosaico.
Poesia religiosa
Poeta versátil, Gregório escreveu sonetos, décimas, romances, bem como poemas religiosos, líricos amorosos, eróticos, satíricos. Nos poemas religiosos, exalta a Deus, Jesus ou a Virgem Maria. A figura é pura, sem nenhum traço negativo ou contraditório. Em contrapartida, em outros sonetos, ele se coloca como o pecador, incapaz de livrar-se de seus pecados, que clama pela misericórdia divina. Alguns poemas trazem a dúvida do homem barroco, que se coloca perante Deus sem compreendê-lo e temendo-o.
Poesia lírica
A religião ocupa um lugar central de sua obra, e deve ser relacionada às outras faces de sua produção. Dentro da lírica amorosa, as amadas distantes são mulheres nobres, brancas, que se tornam inalcançáveis por sua condição social, passando a ser vistas como figuras angelicais, puras, excessivamente belas. Por outro lado, a mulher negra ou mulata, prostituta, representa um misto de atração e repulsa. Atração, pela liberdade sexual e pelo prazer que proporciona. Repulsa, pela perda da distinção entre os homens elevados e as mulheres baixas.
Poesia satírica
Letrado tradicional, Gregório se identifica com a nobreza e tem repulsa pelo trabalho, pelo negócio, por se submeter às necessidades baixas ou aos homens de origem comum. Com sua sátira, critica os pobres, os negros e as mulheres por uma ascensão econômica rápida ou por perderem a honradez. Ressentido, agride aqueles que ameaçam a "ordem natural" do mundo: judeus, comerciantes, portugueses pobres, mulatos. O preconceito traduz o medo de que o branco aproxime-se do negro, de pessoas identificadas aos trabalhos manuais e à desumanidade.
Antônio Sanseverino é professor de literatura na UFRGS. Mestrado pela UFRGS com dissertação sobre a poesia Gregório de Matos Guerra e doutorado em Teoria da Literatura pela PUCRS.
Em versos: temas recorrentes na obra do poeta baiano
O lugar
Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.
em Epílogos (Juízo Anatômico dos Achaques que Padecia o Corpo da República)
Triste Bahia! Oh quão dessemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.
em À cidade da Bahia (soneto)
Diante de Deus
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
em A Jesus Cristo Nosso Senhor
Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.
Luz, que claro me mostra a salvação,
A salvação pertendo em tais abraços,
Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.
em A Nosso Senhor Jesus Christo com Actos de Arrependimento e Suspiros de Amor
O poeta nos próprios versos
Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
em Aos Vícios
Cansado de vos pregar
cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar,
por quem de mim não tem mágoa?
Verdades direi como água,
porque todos entendais
os ladinos, e os boçais
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?
em E Pois Coronista Sou
A sociedade
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
em Contemplando nas Cousas do Mundo
O amor
O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.
em Definição do Amor — Romance
Detalhe ZH
Caetano Veloso adaptou o poema na letra de Triste Bahia, do álbum Transa (1972).
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