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A Educação Precisa de Respostas  | 15/12/2012 10h02min

Dificuldades não impediram os estudos de Roger Bueno, que deve se formar Tecnólogo em Gestão de Marketing em 2014

Nascido com glaucoma congênito, Roger desenvolveu o gosto pelo conhecimento e não parou de aprender

Rossana Silva  |  rossana.silva@zerohora.com.br

Uma pequena ponte liga a Estrada TF-010 a uma trilha de 10 minutos de caminhada pelo meio da mata até um pequeno sítio, em Triunfo. O caminho com obstáculos, cortado por um estacionamento de trens onde é preciso pular os vagões para poder seguir em frente, era obrigatório para Roger Toledo Bueno, 30 anos, se quisesse chegar à escola, em Canoas. Sandra Regina de Souza Toledo acompanhava o filho cego até a parada, e, no trajeto de volta, conseguia que o cobrador descesse do ônibus para guiar o garoto na ponte.

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Um dia, os pedaços de madeira velha cederam, derrubando-os em plena travessia. Foram dias em que Sandra implorou a quem fosse preciso para que a passagem fosse refeita. Sem resposta, certa de que a educação de Roger não podia esperar, tomou a iniciativa - como sempre em sua vida e na do filho:

— Peguei carrinho de mão, prego e madeira e reconstruí a ponte.

É pelo esforço da mãe que Roger tem hoje uma rotina comum às de pessoas de sua idade. Estuda, trabalha, toma cerveja com os amigos às sextas-feiras. Há pouco tempo, deixou a casa da família para morar sozinho em Porto Alegre, passou a usar ônibus para se mover pela cidade e criou perfil nas redes sociais. A fala rápida, intercalada por brincadeiras, se interrompe apenas quando pergunto se tem algum problema na vida. Após segundos de reflexão, o silêncio é quebrado por um sonoro "não". A cegueira não é problema. É uma dificuldade superada.

Roger nunca enxergou. Com os demais sentidos, desfruta ao extremo a sensação de liberdade das atividades corriqueiras: um passeio de bicicleta, o salto desde uma árvore até o riacho nos fundos da casa onde foi criado sem se privar de participar das peraltices dos primos "videntes" — palavra usada para designar as pessoas que têm visão. O mundo que habita é composto especialmente de sons. Com as alterações de ruídos distingue as pessoas, os ambientes, os turnos:

— Comecei a notar quando era dia e noite ainda criança. Noite tem grilo, silêncio, é nublado, muda o clima. O dia é barulhento.

Quando tinha seis meses, a mãe descobriu nele o glaucoma congênito. Sentada no pátio do sítio da família, em Triunfo, cercada de cachorros, galinhas e pelo barulho do riacho adorado por Roger, Sandra encarna uma fortaleza — criou os três filhos sem nenhuma ajuda dos pais das crianças. Mas chora ao lembrar do momento em que o médico deu a notícia de que o menino não enxergaria "nem aqui, nem em outra parte do mundo". Recomposta, narra, sem ares de heroísmo, a fantástica história do filho cego, uma biografia que se entrelaça com a sua. Porque é ela que guarda cada canudo conquistado pelo primogênito, ansiosa pelo mais importante deles, que deve chegar em 2014, com a formatura no curso de Tecnológo em Gestão de Marketing da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra).

Nesse dia tão esperado, pertencerá definitivamente ao passado a época em que o menino, a contragosto, começou os estudos como interno do Instituto Santa Luzia, em Porto Alegre. Roger não aceitava ser privado da companhia dos primos, queria frequentar a escolinha da vizinhança e escrever de caneta como todos os outros meninos — e não de reglete e punção, os instrumentos do braile, a linguagem dos cegos. Mas o Santa Luzia não era só lugar de aprender be-a-bá.

— Me ensinaram a fazer coisas da vida, arrumar a cama, como se lava uma louça, se faz uma comida — descreve Roger.

Nessa época descobriu, ainda, sua condição. Antes, pensava que todos eram iguais a ele. Com o tempo, com a ajuda dos psicólogos e da família, soube que o mundo não era só escuridão e que precisava frequentar uma escola especial.

Foram 14 anos difíceis em que, mesmo sem dinheiro, Sandra buscou o filho na Capital a cada final de semana para amenizar a saudade. Quando a quantia ganha limpando ônibus no Polo Petroquímico e lavando roupas para fora não alcançava o valor da passagem, os 80 quilômetros que separam as duas cidades se faziam mais extensos porque era preciso pegar mais de uma carona para chegar em casa. Vez por outra, levava um colega de Roger a tiracolo e os alimentos enviados pelas irmãs do Santa Luzia para o final de semana.

— A educação é o alicerce. Sem educação, não se tem casa, não se vai a lugar nenhum. E quando a família faltar, como se fica sem educação? — questiona Roger.

Aos 19 anos, educado para se locomover sozinho, ele voltou para casa. E aí, já entrando para a vida adulta, realizou um sonho de infância. Entrou para o Ensino Médio na Escola André Leão Puente, em Canoas. A ajuda da mãe e dos irmãos foi providencial para que não se refletisse nas notas o fato de ser ele o único que não enxergava na turma. A caçula Taina, 11 anos mais jovem, desde sempre parceira de travessuras, sempre deu forma às vontades que o irmão não concretizaria sozinho. Juntos, andavam de bicicleta - ela guiando, ele pedalando — e se divertiam como aprendizes de cozinheiro.

— Eu era muito pequena, ele me falava para fritarmos pastel. Eu não sabia, mas ele dizia: "vamos lá, eu te ajudo"- lembra Taina.

Tinha a hora da brincadeira e a hora da coisa séria. E agora era o tempo de levar a coisa bem a sério. A irmã passou a revezar com a mãe as leituras. As obras em braile ou em audiolivro eram de difícil acesso, e a família sequer tinha computador. Nas sessões em voz alta, o garoto às vezes cochilava, mãe e irmã ralhavam achando que ele não estava prestando atenção e, dias depois, eram surpreendidas com a nota alta na prova.

Mais tarde, o cuidado com o irmão valeu a Taina vantagem nas aulas cujo conteúdo já conhecia por ter revisado com o irmão.

Também foi uma época de dor de cabeça para Sandra, porque o filho queria viver a adolescência, tirando o atraso pelo tempo vivido "em cativeiro". O histórico de rebeldia inclui fugir de casa pulando a janela, quando percebia que Sandra estava dormindo, e tentar executar todas as atividades cotidianas como se enxergasse. O saldo: um braço quebrado ao tentar montar em um cavalo e um quase afogamento em que, não fosse o socorro de um tio, "teria morrido".

— Houve tropeços. Mas veio o interesse e a minha dedicação — reconhece.

Veio também o primeiro emprego, em 2008, como auxiliar administrativo no curso de Veterinária da Ulbra. No ano seguinte, virou calouro da universidade. Mas Sandra já não podia acompanhar diariamente o filho pela trilha que desemboca na Estrada TF 010. E Roger atravessava a rodovia movimentada tendo como guia apenas a audição, calçando galochas quando chovia, com os sapatos guardados em uma sacola de plástico para usar mais tarde.

De tanto ultrapassar barreiras, Roger saltou mais uma e, desde agosto, mora em Porto Alegre, na União dos Cegos do Rio Grande do Sul. Mas há ainda um outro fator para ter declarado a independência ao deixar a casa da mãe:

— Sempre fui muito mundano.

Roger gosta de sair por aí, conversar, "se misturar" com as pessoas. Não usa óculos escuros e recorre à bengala apenas em casos especiais. Em fevereiro, pediu demissão da Ulbra e hoje trabalha como telefonista em uma empresa de transportes distante cerca de 10 quilômetros de casa. O trajeto é percorrido em dois ônibus. Para a universidade, quatro vezes por semana, o caminho é feito de ônibus, de trem e a pé. Os colegas acreditam que sua condição o faz prestar mais atenção no conteúdo.

— Para mim, é uma coisa nova. Nunca estudei com alguém que tivesse essa dificuldade. É uma motivação, porque se o Roger, que não enxerga, vem até aqui, nós não temos do que reclamar de vir estudar — reflete a colega Elizabete Carvalho.

Os planos pós-formatura são extensos, mas o principal inclui se casar, ter filhos, fazer um concurso público e aprender a tocar bateria. Com os sentidos apurados, Roger caminha para chegar lá.

Jean Schwarz / Agencia RBS

Para estudante, cegueira é uma dificuldade superada
Foto:  Jean Schwarz  /  Agencia RBS


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