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Entrevista  | 07/12/2012 20h16min

Entrevista com Maria Mortatti, especialista em alfabetização

Para professora, desafios da educação brasileira vão além de iniciar as crianças na leitura e na escrita

Mesmo com avanços econômicos que refletiram na qualidade da educação, o Brasil ainda enfrenta desafios básicos, como o de alfabetizar com qualidade seus estudantes. Para analisar as raízes dessas e outras questões, Maria do Rosário Longo Mortatti organizou o livro Alfabetização no Brasil: uma história de sua história (Cultura Acadêmica / Oficina Universitária, 310 páginas), vencedor do prêmio Jabuti 2012 na categoria educação. Presidente da Associação Brasileira de Alfabetização, a professora da Unesp é uma das maiores especialistas do país sobre o assunto, que pesquisa há mais de 30 anos.

A obra, surgida a partir de reflexões tomadas no Seminário Internacional sobre História do Ensino de Leitura e Escrita, em 2010, trata sobretudo da contribuição acadêmica para os estudos da alfabetização. Na entrevista a seguir, concedida por email, Maria Mortatti fala sobre a pesquisa científica, carreira docente e qualidade da educação brasileira.

Boa parte das pesquisas apresentadas durante o I Seminário Internacional sobre História do Ensino de Leitura e Escrita são trabalhos de mulheres. Essa característica tem a ver com a atratividade da carreira docente?

Maria Mortatti — A feminização do magistério no Brasil é aspecto relevante e vem sendo estudado na produção acadêmico-científica das últimas décadas. Mas não é possível afirmar que essa situação esteja relacionada com atratividade da carreira docente, mesmo porque se constata que vem decaindo drasticamente o interesse pela profissão. No caso das pesquisadoras brasileiras que convidei para participar do I SIHELE, não foi obviamente sua condição de gênero que determinou a escolha e o convite, foi sua condição de representatividade em relação a grupos e núcleos de pesquisa que tratam da história da alfabetização. O fato de serem todas mulheres, porém, é significativo e nos leva a pensar em explicações relacionadas, por exemplo, com a história de vida e de formação e atuação profissional das pesquisadoras brasileiras convidadas: a maioria delas tem formação inicial em Pedagogia ou Letras e atua em programas de pós-graduação em Educação; muitas delas já atuaram como professoras da Educação Básica, anteriormente ao ingresso na carreira docente universitária. Mas explicações mais consistentes precisam ser buscadas, por meio de pesquisas rigorosas. Esse é um tema relevante, e seu estudo pode contribuir, também, para compreensão de outros aspectos relacionados tanto com a história da alfabetização quanto com a feminização do magistério.

A questão do letramento tem sido bastante debatida em âmbito acadêmico. Esse debate tem refletido em melhorias na educação?

Maria — Nem sempre o debate acadêmico tem reflexos diretos e imediatos em outras esferas da sociedade. Essa situação é ainda mais complexa, quando se trata de temas novos e ainda polêmicos, como é o caso do letramento. E, no âmbito acadêmico, também não há consenso nem em relação à necessidade desse novo termo e correspondente conceito, nem em relação às mudanças que podem ser geradas com a adoção do conceito e de propostas e práticas pedagógicas a ele associadas. De qualquer forma, algumas mudanças já ocorreram, desde a década de 1990, quando o conceito de letramento passou a ser divulgado e debatido. Uma dessas mudanças se encontra na preocupação de professores e gestores da educação em avançar relativamente a um conceito restrito de alfabetização. Mas a discussão é mais abrangente, e a mera adoção de novo termo não significa mudança da realidade do ensino inicial da leitura e escrita.

O senso comum afirma que a educação brasileira já viveu melhores momentos. Essa afirmação é correta?

Maria — De um ponto de vista científico, essa afirmação é equivocada e talvez sirva somente para justificar questionáveis decisões políticas. Compreender historicamente a vida e as ações humanas é compreendê-las no contexto sócio-histórico, em que determinados sujeitos tomaram determinadas decisões que não são naturalmente neutras, nem verdadeiras. E conhecer e compreender a história da educação e da alfabetização é fundamental, tanto para não repetirmos o passado quando para não imaginarmos, ingenuamente, que o passado não constitui o presente. O desafio que a compreensão histórica nos propõe, cotidianamente, é o de nos situarmos e agirmos ética e politicamente no presente histórico, considerando a tensão entre o passado e o futuro. Na história não há repetições, há mudanças. E se as mudanças contribuem para melhorar ou piorar a vida das pessoas, essa não é uma questão de verdade científica ou política, embora possa ser mais cômodo imaginar que o que foi bom para alguns no passado possa ser bom para todos, no presente e no futuro.

Quais foram os principais erros históricos que fazem com que a educação brasileira ainda tenha tantos jovens à margem de um ensino de qualidade?

Maria — De um ponto de vista histórico, não se pode, de acordo com critérios do presente, simplesmente classificar como erros as decisões de gerações anteriores. A história não é tribunal e o historiador não é juiz. Avaliações consequentes demandam primeiramente compreender o que foi feito, por quem, para/com quem, quando, onde, por quê, para quê. Compreender, porém, não é perdoar. E a compreensão exige posicionamento crítico, que somente pode ser relevante se contribuir para a compreensão também do presente e das necessidades e possibilidades de mudança. Não se pode, portanto, simplesmente elencar erros históricos que levaram à triste situação em que se encontram hoje crianças, jovens e adultos excluídos do ensino de qualidade. Compreender historicamente a configuração desse processo é necessário, mas é imprescindível compreender também o que queremos e o que podemos fazer hoje. Um bom começo é discutir o que é o “ensino de qualidade” que de fato interessa à população brasileira e que não está a serviço de interesses de grupos políticos nacionais e internacionais.

O que seria um ensino de qualidade? Por que o Brasil ainda está aquém dele?

Maria — Poderíamos começar pensando que o fato de estarmos muito próximos de atingir a meta de universalização da Educação Básica pode ser um alento para buscarmos a definição dos parâmetros de qualidade, que começam com a necessidade de todas as crianças poderem ler e escrever, de fato, enquanto “aprendem a ler e a escrever”. A separação entre esses momentos é uma herança nefasta que se incorporou à tradição escolar e que, para muitas crianças, tornou-se um abismo intransponível. Depois de tanto tempo gasto com “período preparatório”, com incessantes “diagnósticos de nível de conceitualização da escrita”, com tantos “simulados” para treinamento para testes de leitura e escrita, com tantas prescrições de “idade certa” para o aprendizado da leitura e escrita, depois de tantas atividades que nada têm a ver com ler e escrever, dificilmente professor e alunos conseguem ver sentido na rotina de uma classe de alfabetização, ou nos anos escolares subsequentes. E, quando finalmente chegar a hora “prescrita” e “autorizada” certamente muitos alunos já terão “desistido” de lutar pelo seu direito a ler e a escrever, por que já podem ter aprendido que ler e escrever é algo que serve somente para ser bem (ou mal)sucedido na escola.

Como a senhora avalia a qualidade e a pertinência de índices que buscam detectar os níveis de analfabetismo no Brasil, como o Inidicador de alfabetismo funcional (Inaf)?

Maria — Iniciativas como o Inaf , criado pelo Instituto Paulo Montenegro e a Ong Ação Educativa, são importantes, quando se aceita a necessidade de avaliação da educação. Mas há problemas que precedem, tais como, o da definição de indicadores de avaliação, cujos princípios e objetivos precisam discutidos. Se toda avaliação deve ter função diagnóstica e prognóstica, devem-se também discutir e estabelecer claramente critérios, que não são universais e naturais, mas estão na base dos resultados das avaliações, que, por sua vez, estão na base da definição de programas, estratégias e ações. Trata-se, portanto, de avaliar não aspectos técnicos, mas políticos. Apesar desses problemas, considero que o Inaf representa avanços em relação a outros indicadores relativos ao analfabetismo, especialmente por tomar como critério o conceito de “alfabetismo funcional” e definir os quatro níveis: “analfabeto”, “rudimentar”, “básico” e “pleno”. Dos pontos de vista histórico e social, esse conceito busca apreender as novas configurações e compreensões do problema do analfabetismo. Os resultados de sua aplicação podem, assim, fundamentar mais adequadamente diagnóstico do problema e formulação de políticas públicas.

Os professores da Educação Básica, independente da disciplina em que atuam, estão alfabetizados de maneira plena, de maneira que consigam ensinar suas disciplinas de maneira satisfatória?

Maria — Do meu ponto de vista, esse é um dos problemas mais complexos da educação no Brasil. Em que pesem todas as iniciativas atuais, que não são poucas, para enfrentar os problemas educacionais, há aspectos de difícil enfrentamento. Trata-se daqueles que dizem respeito às relações de ensino-aprendizagem que ocorrem entre professor e alunos, na sala de aula. No âmbito dessas relações é que se concretizam, ou não, políticas públicas, por exemplo. Certamente os professores brasileiros são alfabetizados. Provavelmente, porém, a grande maioria ainda não tenha tido condições de experimentar a importância da leitura e escrita, mas como vivência transformadora de sua condição humana. Assim, suas tarefas cotidianas de ensino da leitura e escrita tendem a se restringir à reprodução de discursos sobre a importância da leitura e da escrita. Mas ensinar não é um exercício de convencimento. E as crianças não esperam ser convencidas, muito menos por meio de discursos. Por que, como sabemos, as palavras podem comover, mas são os exemplos que arrastam.

Nas sucessivas reformas do ensino, o Brasil conseguiu avançar nas políticas de alfabetização?

Maria — A alfabetização, ou seja, o processo de ensino inicial da leitura e escrita é objeto de preocupação de governantes desde, pelo menos, o período imperial brasileiro. Mas foi após a proclamação da República que o ensino inicial da leitura e da escrita passou a ser objeto de ações sistemáticas por parte dos governos estaduais e federal, porque a alfabetização do povo se tornou estratégica para a consolidação do regime republicano. Muitas e intensas foram as iniciativas para a consecução do objetivo político e social de alfabetizar crianças, jovens e adultos do país. Nas décadas finais do século XX, porém, intensificaram-se iniciativas visando à formulação de políticas públicas para se alcançarem tanto objetivos demandados pela sociedade civil, no processo de redemocratização do país, quanto objetivos impostos por organismos internacionais, para a inserção do país na nova ordem mundial. Dessas demandas e objetivos, muitas vezes com interesses opostos, resultou um movimento de interesse consensual a respeito da necessidade de investimentos de todo tipo na alfabetização. Sem dúvida, os vultosos investimentos políticos, econômicos e sociais podem ser considerados um importante avanço. Mas não é possível avaliar com exatidão quem são os maiores beneficiados.

A senhora poderia apontar uma ou mais metodologias pertinentes para a alfabetização de crianças? Elas estão presentes de maneira satisfatória na educação do país?

Maria — A história da alfabetização no Brasil nos ensina quão inócua foi a querela dos métodos de alfabetização, que se iniciou nas décadas finais do século XIX, teve seu auge até meados do século XX e, atualmente, continua ativa, embora mitigada no conjunto de discussões sobre alfabetização. Como ocorre com todo processo de ensino-aprendizagem escolar, também a alfabetização demanda processos intencionais, sistemáticos e metódicos. Um método de ensino é também necessário. Mas busca responder somente à pergunta “como ensinar” e é, portanto, somente um dentre os demais aspectos que caracterizam o processo de ensinar e aprender. Antes de decidir qual método de alfabetização utilizar, é imprescindível buscar respostas consequentes e rigorosas para as seguintes questões: por que, para que, quem, para quem, quando, onde, o que ensinar para que o aluno aprenda a ler e escrever, como parte importante de seu processo de formação humana.

Alan Malheiro / Divulgação

Docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Maria Mortatti tem longa trajetória em estudos sobre a alfabetização no Brasil
Foto:  Alan Malheiro  /  Divulgação


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