Entrevista | 26/10/2012 18h47min
Caxias do Sul — O exercício docente passou a evocar muitas reflexões e adequações nos últimos tempos. Um novo aluno marca presença nas salas de aula. É um perfil que, normalmente, ganha uma extensão: as novas tecnologias. Quando o computador não está próximo do estudante, seus sistemas e informações o rondam. Esse contexto tem exigido do professor novos aprendizados, boa parte envolvendo esse mundo cibernético marcado pela efemeridade e por construções e desconstruções.
Ao visitar Caxias recentemente, para o 9º Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul – Anped Sul, o doutor em Educação Lucídio Bianchetti tocou em alguns dilemas vividos pelos educadores. Professor associado no Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Bianchetti é formado em Pedagogia e tem pós-doutorado pela Universidade do Porto (Portugal). Confira a entrevista:
Como se encontra o professor emocional e profissionalmente?
Lucídio Bianchetti — Passamos a ter a escola, a universidade e a preocupação com tais assuntos de forma mais abrangente, que não fosse só para a elite, muito recentemente. A história da educação é longa, mas se confunde com a da colonização, quando tudo vem de cima para baixo. Foi na última década que alcançamos a universalização da educação básica, mas tivemos muito antes cursos de cirurgia, de metalurgia e outros que interessavam à coroa portuguesa. Passamos a ter uma educação brasileira bastante recentemente. Os professores terminavam o segundo grau e davam aula para o primeiro grau. Nesse período, quando eram ainda poucas as pessoas na escola, tínhamos um docente valorizado, com retorno material e simbólico: bom salário e reconhecimento. Lembro da professora que me alfabetizou e morava com os agricultores em Passo Fundo. Era chamada de maestra como um reconhecimento.
Isso ocorria uma vez e, atualmente, como está?
Bianchetti — O professor teve de estudar mais e está tendo contato com alunos com acesso a “n” fontes de informação, que ele não teve. O aluno não o reconhece mais como maestro. Não o chamaria hoje de maestro, mas sim de profe, aquele cara. Se, antes, o professor tinha um duplo ganho, com salário suficiente e reconhecimento simbólico, hoje não tem. Se tivesse, não haveria greve e falta de educadores. O professor não está podendo frequentar teatro e comprar livros. Produz deficientemente. Estamos numa situação em que uma geração de docentes se sente encurralada. Procuro fazer um trabalho não de culpabilização daquele que já se sente culpado por não dar conta do que a nova geração descobre, mas de compreensão no sentido de que as mudanças são rápidas e profundas. Ouvi duas crianças de 4ª série dizendo: “vamos deletar aquela professora”. Aí, pensei: não existe a tecla “delete professor”, mas na afetividade delas, já tinham deletado a docente, não a respeitavam mais. A falta de respeito e de retorno material e simbólico leva ao desânimo, a
doenças do trabalho, de cunho físico e psicológico e a o que Wanderley Codo chama de Síndrome de Burnout (síndrome da desistência do educador), expressão inglesa que significa queimar para fora, isto é, a energia se vai.
Esse cenário é o responsável pela baixa quantia de alunos dispostos a serem professores?
Bianchetti — Essas circunstâncias fazem com que qualquer trabalho comparado com o magistério seja mais atrativo. Hoje, em todas as profissões, você precisa se atualizar, mas não são todas que trabalham com gente. Ser responsável pela formação de novas gerações significa um acréscimo de responsabilidades que não é próprio e característico de todas as profissões. O metiê com que o docente trabalha não é uma roupa, que tem uma moda que pega agora e não pega daqui um pouco. Estamos falando de humanidade, de conhecimentos que dependem do patrimônio cultural da humanidade.
Qual é a saída para essa situação?
Bianchetti — Teríamos que resgatar o retorno material e simbólico que o professor tinha. Isso implica políticas públicas e investimento no professor no sentido salarial, para que ele possa suprir dignamente as necessidades e ingressar na formação permanente. Falo da formação com um suporte que veio e vai ficar, mesmo que eu resista, que é o suporte das novas tecnologias e da informação. É necessário para eu entender que sou um meio a mais para o aluno melhorar a compreensão, pois, se eu continuar achando que sou “o professor”, o aluno vai me dispensar e terá outros recursos mais atrativos que a minha exposição.
O senhor já passou por situações em que teve de se adequar à realidade tecnológica?
Bianchetti — Há uns três semestres, tive três alunas com laptop. Preparava-me para dar uma esculachada, pois o professor continua sendo uma autoridade, mas há também o aspecto negativo dessa autoridade, quando o aluno pode enxergar nela a pessoa que não gosta. Eu falava do irmão de Wittgenstein (filósofo austríaco), que era pianista e perdeu um braço na 1º Guerra Mundial. Aí, Ravel decidiu que ele (Paul) continuaria tocando e fez uma composição que pode ser tocada com uma mão só. Falei aquilo e as meninas não reagiram a esse exemplo lindo. Aí, perguntei se elas conheciam o Bolero de Ravel. Uma das meninas com o laptop pediu: “Professor, é esse o Bolero?” Ela aumentou o volume e a aula foi ficando emocionante. Se eu tivesse xingado as garotas, teria perdido o respeito da aluna por partir de um pressuposto errado, de que ela estaria se distraindo. No entanto, ela estava acompanhando a aula e vendo se o que eu dizia tinha sentido. Essa aula jamais será esquecida. Diante disso, o professor teria de ter incentivos para ampliar os conhecimentos e continuar sendo atrativo ao aluno no que ele tem de ensinar. Hoje, ele só vai conseguir o respeito do estudante, se dialogar.
Mas o docente também tem de buscar essa qualificação...
Bianchetti — Não pode ter resistência, mas é importante lembrar que mudanças anteriores da história da humanidade ocorreram entre gerações e houve um tempo para a assimilação. Agora, as mudanças ocorrem intrageracionalmente e isso obriga abrir mão de um conhecimento que acabei de construir. E não é próprio do ser humano descartar um conhecimento que ele custou para construir.
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