Porto Alegre Em Cena | 24/09/2009 15h21min
Porto Alegre experimentou um tranco estético na noite de quarta-feira. A revolução durou quase duas horas e teve lugar no Teatro do Sesi durante a apresentação de Quartett, marcando a estreia da obra do diretor Bob Wilson em palcos gaúchos. A montagem encaminhou o encerramento do 16º Porto Alegre Em Cena, mas pode ser considerada como o início de uma nova cena em Porto Alegre.
Alguns desconfiados reclamaram que a obra do encenador americano chegou com um atraso de pelo menos 20 anos à capital gaúcha, que sua estética já estaria datada, que nada mais ele teria a acrescentar. Mas a importância do Quartett vai bem mais além que a atualidade de correntes artísticas. Quem foi ao Teatro do Sesi foi apresentado a um espetáculo de produção esmerada (e caríssima, fora de nossos padrões), pôde assistir ao vivo à performance apaixonada e apaixonante da diva Isabelle Huppert mas, principalmente, foi confrontado com uma forma de teatro total, inédito - e inesquecível.
O ponto de
partida do Quartett de
Wilson é o texto de Heiner Müller, por sua vez adaptado do original de Choderlos de Laclos. A trama opõe a Marquesa de Merteuil (Huppert) e o Visconde de Valmont (Ariel Garcia Valdés), dois ex-amantes viciados em juventude, sedução e sexo. De uma disputa entre esses gêmeos (gênios) do mal surge o desafio de Valmont seduzir a virginal sobrinha da Marquesa. Por trás do joguinho sexual, entretanto, reside o principal tormento da dupla Merteuil e Valmont: por que eles não são deuses? Por que lhes escapa o poder de manobrar tempo, matéria e juventude? Então, Bob Wilson entra em cena.
É impossível tentar descrever Quartett de maneira tradicional, isolando os elementos da encenação. A principal característica de Wilson é justamente a de que ele não distingue luz, gesto, som, intenção, cenografia - ao contrário, descobre suas complementariedades e as integra. Seu método parece começar pela identificação radical do que existe de essencial nas tramas e personagens. A partir daí, os personagens se
constroem
naturalmente na forma de andar, no penteado, no timbre da voz, na maneira como se replicam uns aos outros, no tipo de luz que exigem. A interpretação realista é repudiada - não se está em cena para reproduzir a vida, mas para investigar a vida. Cada encenação de Wilson se assemelha a um organismo original, à qual os espectadores têm acesso às vísceras e intenções.
Desse descarnamento do que é supérfluo surgem cenas fragmentadas, como se a realidade tivesse a dinâmica da memória e do sonho, que aproveitam o que é real para atribuir significados que são sonegados pela consciência vigilante. A insistência da Marquesa em repetir uma frase, por exemplo, não é gratuita: pode ser a urgência de sua vida, mas pode ser também a insistência do encenador em marcar um ritmo para a cena. O penteado da personagem de Huppert, um coque projetado no espaço, desafiando a gravidade e o bom gosto, expõe a compulsão da Marquesa em se dar ao mundo - mesmo que esse mundo seja seu objeto de ódio, pois carrega
com ele a
certeza da extinção, da velhice, da impotência.
Wilson, além de ser uma maiores diretores da atualidade, é um excelente puxador de tapetes. Se o público pensa em acompanhar a trama, Wilson picota as cenas. Se os espectadores tentam se fiar no texto, Wilson radicaliza ainda mais _ no final de Quartett, as falas da Marquesa e do Visconde estavam trocadas. Bom, restava encarar Quartett como um espetáculo normal, em que a plateia se envolve com o que está em cena. E, mais uma vez, Wilson puxa o tapete _ cada cena ou mudança de clima é marcada por um som, quase de chicote, quase de régua de professor batendo na mesa para chamar a atenção dos alunos, deixando claro que se está frente a uma forma de arte, que a realidade não está no palco.
Essa mania de puxar o tapete porém tem o efeito colateral de afastar o espectador, ao menos no campo emocional. Ao final de Quartett, o contentamento do público que lotou o Teatro do Sesi podia ser creditado muito mais à fruição estética e à
descoberta de uma
maneira original de se fazer teatro, em que atores, cenário, luz e som são um quarteto indissolúvel. Mas seria difícil identificar alguém que tivesse se comprometido emocionalmente com Quartett. O descarnamento citado acima também cobra seu preço. Ao oferecer apenas (como se não bastasse) o essencial, Bob Wilson reduz a margem de manobra do espectador, de alguma maneira sonegando-lhe o direito de elaborar por sua conta os personagens e as relações entre eles, de ter uma participação maior no resultado do espetáculo.
De quebra, Quartett ainda serviu de eco para as comemorações da Semana Farroupilha: é uma façanha para qualquer sala de espetáculos ter condições de suportar as exigências das montagens de Bob Wilson, que incluem iluminação e cenografia fora de série. E o Teatro do Sesi se saiu muito bem.
A cena final de Quartett, desta vez sutil e delicada, acabou ocorrendo depois de terminada a peça, por volta de 23h de quarta-feira. Ao agradecer aos aplausos em pé de
quase 1,8 mil pessoas,
Isabelle Huppert traía de leve um sorriso em seu rosto ainda concentrado. Talvez consciente de que foi a estrela de uma pequena revolução.
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