Itapema FM | 25/01/2010 10h42min
Depois de Humberto Gessinger, 46 anos, e Wander Wildner, 50, Zero Hora dá hoje sequência à série de entrevistas com compositores do cenário pop gaúcho. A conversa agora é com Nei Lisboa, que completou seus 51 anos no último dia 18. A data foi celebrada em pleno palco do Teatro Renascença, onde Nei cumpre uma rápida temporada de apresentações às segundas-feiras – o ciclo se encerra hoje à noite com grande sucesso: o show das 21h já tem ingressos esgotados e uma sessão extra foi marcada para as 23h (mais detalhes na agenda Oba Oba!).
O aniversário, a temporada e a perspectiva de um novo álbum para este ano são alguns dos pontos de partida da entrevista, em que Nei relembra passagens de sua trajetória, explica um pouco de seu processo criativo e reflete sobre a própria personalidade musical. Confira
trechos:
Zero Hora – Quais os planos para
este ano?
Nei Lisboa – Estou trazendo para este ano um projeto não realizado do ano passado, que é o DVD. É supercaro, até agora e a coisa não se viabilizou. E estou voltando a compor, então penso em lançar algo – pode ser pequeno, umas poucas músicas – na internet. Jogar na rede um trabalho novo, fazer essa experiência, pela primeira vez sem o disco, sem o suporte físico. Tô curioso de ver que retorno isso teria.
ZH – Como foi compor essas músicas novas?
Nei – Estou começando a brincar com coisas que eu já tinha em arquivo, construídas até a metade. Passei mais de três anos ausente disso, da composição. De um modo geral, (as composições) vêm em ciclos. O começo desta década foi muito produtivo, fiz o Cena Beatnik (2001), o Relógios de Sol (2003) e o Translucidação (2006), foram três discos
intensamente autorais. De lá para cá, foi um período de respiro, mas não vejo a hora de poder mergulhar de fato
nisso.
ZH – O que costuma vir primeiro, letra ou melodia?
Nei – Pra mim, vem sempre a música primeiro. Isso dá uma certa angústia métrica para o compositor, quando tu montas uma moldura, vai colocando as pecinhas da letra e falta uma ou outra para encaixar. É um trabalho artesanal, bacana, mas também pode se tornar chato e angustiante. Quero fazer experiências ao inverso: me forçar a escrever primeiro, deixar a letra se derramar. Tem uma música que eu fiz assim, Paisagem Campestre, que é uma letra do Francisco Settinneri e eu fiz a música a partir da letra. Foi a única.
ZH – Tu observas que as pessoas se apegam mais às letras ou à parte musical do teu trabalho?
Nei – Em torno do meu trabalho, acho que se consolidou uma atenção para o texto. Acho que a minha figura está conectada com a ideia de se ter letras interessantes e tal. Acho que, ao longo do tempo, na música brasileira, por exemplo, a letra
vem perdendo seu peso. Claro, tudo é relativo. Mas a música
do mainstream, que toca no rádio e faz sucesso – nos anos 1970, tinha grandes letristas e poetas por trás daquilo, Fernando Brant e outros, o Fagner com poemas da Cecília Meireles... E hoje tu ligas o rádio e a coisa é bem mais simplória, mais rasteira, em troca de uma música que produza sensações corporais gozosas e imediatas. Pode ser da época, a música como um produto, um resultado imediatista, prático, hedonista.
ZH – O fato de teres tido uma filha (Maria Clara, que completou sete anos na última quarta-feira) teve impacto artístico para ti?
Nei – Sim, é muito inspirador. Mas, mais do que a questão afetiva, isso traz uma alteração prática na rotina, muito difícil de lidar. Um filho, como diz um amigo meu, é outra profissão. Eu senti bastante essa dificuldade de ordenar o meu trabalho criativo, por mais inspiração que isso trouxesse, com o dia a dia das fraldas, a demanda constante de atenção. Meus hábitos de trabalho, de criar, são bastante desordenados em termos de horário.
Eu precisava
criar um tempo infinito à minha frente: “Nos próximos cinco dias vou ficar aqui parado, olhando a parede”. E isso se torna inviável, tu tens que aproveitar as brechas que aparecem, se tornar um oportunista da criatividade. É complicado. Mas eu chego lá. (risos) E agora me separei, faz dois meses. Então, é outra coisa, talvez mais compatível: agora tenho a guarda em alguns dias da semana, onde estou sozinho (com a filha), e ali não vou trabalhar. Em contrapartida, alguns dias eu terei por inteiro para mim, fica mais fácil de produzir esse tempo largo em que a imaginação se excita mais.
ZH – Houve momentos em que o mainstream te atraiu?
Nei – Sim, sem dúvida. Minha carreira nos anos 1980 foi bem voltada para isso. Eu tinha a intenção de ter abrangência nacional, isso estava no horizonte. Não sei se propriamente como um popstar, eu nunca tive muito o desempenho, o perfil, o ethos ou sei lá o quê disso. Já carregava essa coisa de ser um cantautor. Fui mais conectado com o pop em
alguns momentos – de
vez em quando tinha uma guitarrinha, algumas coisas mais voltadas à sonoridade do momento. O que tu possas achar no Carecas (Carecas da Jamaica, disco de 1987) e no Hein?! (disco de 1988, lançado pela gravadora EMI, ambos lançados pela gravadora EMI) que tenha um cunho mais comercial, podes ter certeza de que a culpa é minha, ninguém me impôs coisa nenhuma. Depois do baque todo no final dos anos 1980 – o acidente de carro, a morte da Leila (em 1988, Nei sofreu um grave acidente que vitimou a então companheira), o fato de sair de uma grande gravadora, o retorno para cá –, eu estava cruzando os 30 anos e estava vendo que daquele trauma ali eu não me livraria por uns bons outros anos. E que, portanto, para uma carreira de música, que se assemelha um pouco com a de um jogador de futebol, ia ficar um pouco tarde. O próprio desejo se reajustou naquele instante e outras coisas passaram a
importar mais.
ZH – No início dos anos 1980, havia uma
distinção entre os artistas do rock e da MPG. Tu chegaste a te vincular a algum estilo ou movimento musical? Sempre pareceste um artista que não é muito fácil de se classificar.
Nei – Ainda bem, né? Não sou, não. Minha personalidade artística é meio difícil de se trabalhar comercialmente. Mas eu vejo isso como um bom sinal. Eu namorei bastante com o rock gaúcho, uma aproximação que às vezes gerou desconforto com os meus pares da MPG, que viam isso como eu estar me vendendo “para o outro lado”.
ZH – Era nesses termos, um lado e outro?
Nei – Pois é, para mim não. Mas há quem veja a coisa assim. Hoje eu me sinto bem mais pendente para uma coisa MPB, canção brasileira. Mas não me sinto obrigado a recusar nenhuma outra opção que se apresente. Para mim, é música. Cultivei para mim, junto ao público, um espaço de possibilidades muito amplas, fazendo trabalhos bem diversos. Uma vez fui para o Uruguai e fiz um trabalho com o candombe (o álbum
Amém, de 1993), depois
fiz um disco acústico só de pop internacional (o disco Hi-Fi, de 1998). Quem sobreviveu a isso, ainda gosta do que eu faço e entende o meu trabalho me concede a liberdade de que eu tenha esse espaço para trabalhar. Nessa matéria, me sinto à vontade para fazer qualquer negócio: um tango, uma música indiana, uma MPB. Por outro lado, deixa eu dizer que me sinto um pouquinho órfão. Isso não veio como uma intenção, mas como uma busca de alguma coisa que me representasse. É um sintoma de que não tem uma formação musical enraizada que seja forte o suficiente para forjar uma identidade em torno dela. É um mal do qual todos padecemos um pouco aqui no Rio Grande do Sul. A música da minha terra, que eu ouvia de criança, o Teixeirinha, por exemplo, nunca me seduziu a ponto de eu profissionalmente produzir alguma coisa com ela. Tudo em torno dela me parece muito ruim, estética, ideológica e musicalmente. Isso inclui sobretudo o que o tradicionalismo tem feito com a
música do Rio Grande do Sul
nas últimas décadas. Eu comecei a me lançar na virada dos anos 1970 para os 1980, quando foi também o boom dos festivais, do tradicionalismo. E foi também, no começo dos 1980, que o rock brasileiro começou a mandar na cena. Enfim, que identidade musical a gente tem aqui em Porto Alegre? Há uma dificuldade nessa matéria. A tropicalidade da música brasileira sempre nos toca um pouco nos meses de verão e já nos abandona ali na primeira geada de abril ou maio, a gente passa a demandar outro tipo de coisa. A música gaúcha se torna intragável para qualquer pessoa mais esclarecida. Não é só o fato de não me representar. Eles foram absurdamente reacionários, a música começou a ser tutelada em termos do que vestir e não vestir em cima do palco, um absurdo. Qualquer adolescente urbano mediamente esclarecido, hoje em dia, se coloca a quilômetros de distância disso.
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