| 29/03/2008 06h42min
Não é qualquer dorzinha que consegue separar um torcedor de seu time, nem mesmo quando os sinais de alerta soam no peito de alguém preparado para identificar possíveis alertas do coração. Iran Cercato começou a sentir as dores no peito no primeiro semestre de 1998, quando já tinha uma carreira consolidada de mais de 20 anos de medicina e amigos especialistas que logo identificaram um sério entupimento nas coronárias, a caminho da obstrução.
Recomendação: repouso, exames e certamente cirurgia. Tudo seria simples se o Juventude, paixão de mais de 50 anos de Cercato, não estivesse na ocasião a poucos dias de decidir o título do Gauchão de 1998 contra o Inter. Na hora da escolha, então, entre o risco de sofrer um enfarte e a chance de ver de perto seu time ser campeão, o médico formado em Passo Fundo fez a escolha óbvia nesses casos - ficou ao lado do Juventude, como fará na tarde deste sábado, no Centenário, quando mais uma vez será o homem encarregado de zelar pela saúde dos jogadores.
— Foi
algo sublime ver o Juventude ganhar o título no Beira-Rio - suspira no ambiente silencioso do departamento médico do Alfredo Jaconi que ele ajudou a montar, na calma manhã de quinta-feira, sem qualquer resquício de arrependimento, mesmo sabendo que o preço daquela teimosia foram quatro pontes, três de safena e uma mamária.
Valeu cada uma delas. Cercato não é apenas o chefe médico do Juventude - é, principalmente, um torcedor. Entre os tempos de goleiro das categorias de base e aspirantes e um dia como o de hoje, são quase 50 anos, com uma breve interrupção para cursar a faculdade de Medicina. Não dava mesmo para dar ouvidos à recomendação e até mesmo às reprimendas de seu amigo e cardiologista Francisco Michielin. Quando viu que a situação era de risco, Michielin, também escritor e jornalista, pediu que o amigo se afastasse e fizesse uma bateria de exames. Achou que tinha sido atendido até ver Cercato e suas coronárias entupidas entrando em campo no primeiro dos dois jogos decisivos do
Gauchão de
1998. Ligou e pediu que ele não fosse ao Beira-Rio, poucos dias depois.
— Ele me respondeu que de jeito nenhum deixaria de botar a faixa, nem que morresse na volta olímpica — lembra o cardiologista.
Por pouco, o temor não se confirmou. Em meio ao jogo, o que era uma pequena dor virou uma ardência quase insuportável. Em determinado momento, ele achou que poderia sofrer mesmo o enfarte na pista. Seguiu em frente, deu a volta olímpica, mas nos dias seguintes viu que não dava mais. Tomou então o caminho do Cardiologia para se submeter à cirurgia. E então, no dia 24 de junho, menos de 20 dias depois de ajudar a carregar a taça, ele recebeu suas safenas.
— Era um risco, mas o homem precisa fazer escolhas assim - filosofa Cercato, hoje saudavelmente mudado, sem os hábitos sedentários de antes, com a comida controlada e longe do cigarro que fazia parte de sua rotina. — Mas eu faria tudo de novo.
Nos dias de teimosia, ele agiu com a
paixão típica de torcedor. Mas se naqueles dias de
1998, ele estivesse do outro lado da mesa e diante dele um paciente pedisse para adiar a cirurgia antes de uma decisão, exatamente como ele fez, o que diria?
— Eu não permitiria.
Dona Vera, a mulher com quem vive há 35 anos, nem pensou em agir como médico. Ela seguiu o código de conduta estabelecido entre os dois que manda respeitar a opinião do outro, até mesmo porque não adiantaria nada. Cercato é, acima de tudo, o sonho de qualquer torcedor fanático. Ele não apenas torce - vive o clube dia-a-dia. Viveu a época das carências, quando até uma radiografia só era realizada por favores especiais, mas também o salto dado pelo clube quando a Parmalat chegou com seu dinheiro. Só então ele pôde montar seu departamento médico e ver que os títulos viriam em seguida. O Gauchão em 1998, a Copa do Brasil um ano depois - e novamente Cercato estava lá, erguendo o troféu, dando a volta olímpica diante de 110 mil pessoas no Maracanã.
— Ver um time do Interior
vencer o Botafogo e ganhar aquele título
é algo para nunca mais esquecer - recorda o antigo goleiro que, diante das poucas chances ("Sou o único que nunca sujou o uniforme", brinca), desistiu para fazer Medicina.
Cercato nunca mais esqueceu, assim como nunca deixou de pensar com saudade nos grandes técnicos que passaram pelo clube, mas especialmente num, o mestre de muitos, Ênio Andrade. Eram palestras memoráveis, lembra. Trabalhou com Celso Roth, o adversário desta tarde, com Geninho e tantos outros, viu Luiz Felipe iniciar a carreira de sucesso. Nestes quase 50 anos, os últimos 30 sem se afastar um único dia do clube a não ser para a cirurgia das coronárias, ele virou um personagem respeitado. Ao caminhar pelos corredores do Alfredo Jaconi, é cumprimentado, ouve brincadeiras sobre seu tempo de goleiro quando esperou tanto pela chance que acabou desistindo, mostra a sala de troféus, fala com indisfarçável prazer do status alcançado pelo Juventude e nem imagina o dia em que vá limpar os armários e voltar para casa.
— Fico aqui até
quando me quiserem — diz, certo de que todos querem.
Aos 66 anos, sabe que ele e o Juventude mudaram muito, desde que se conheceram, 50 anos atrás. O clube ganhou status, e ele, quatro sólidas pontes para não levar mais sustos como aquele do arriscado junho de 1998, no Beira-Rio lotado.
Aos 66 anos, ele diz que só sairá se um dia não for mais necessário no clube
Foto:
Ricardo Wolffenbüttel
Grupo RBS Dúvidas Frequentes | Fale Conosco | Anuncie | Trabalhe no Grupo RBS - © 2008 clicRBS.com.br Todos os direitos reservados.