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Quantas vezes sentei-me ao lado de meus pais, principalmente de minha mãe, para ouvir aquelas longas histórias que compuseram a vida de nossa família e, portanto, a trajetória de nossa vida? Quantas vezes paramos para pensar na importância de nosso passado nas origens de nossa família, da comunidade do basquetebol? Indo um pouco mais longe, sempre penso sobre a cultura do nosso País, da importância do esporte, que forma melhor as pessoas e prepara a identidade de um povo. Passamos a entender um pouco melhor nossos sentimentos e daqueles com quem compartilhamos a vida.
Vou relembrar a partir de agora minhas lembranças, exercitar minha memória, enfim tudo aquilo que me remete à formação, à amizade, e momentos acontecidos com meu estimado Espiga. Final dos anos 80, eu trabalhava no Botafogo, do Rio, clube no qual comecei minha atuação com as equipes profissionais e adultas, onde passei momentos de grandes alegrias, num envolvimento fortíssimo com o clube da estrela solitária. Eu era técnico de todas as categorias de infanto para cima e supervisionava as equipes de base, uma espécie de faz-tudo, o que marcou muito em mim a necessidade de integração de todas as categorias. Trabalhava sempre dentro de uma mesma filosofia e metodologia. Durante o desenvolvimento dos atletas, evitava grandes traumas ou dificuldades na transição de categoria para categoria. Durante uma partida do infantil Bota X Vasco, um duelo me chamou a atenção. O armador Cabeça, principal jogador de nossa equipe, enfrentava um garoto loirinho, também esperto e com muita técnica. Estavam ali dois meninos de grande potencial: Cabeça X Espiga.
Sim, era Flávio Soares, o Espiga. Assim o conheci e comecei a acompanhar sua carreira esportiva, 20 anos atrás, num duelo que se tornou comum nos Bota X Vasco naqueles anos de 88, 89, 90, 91. E agora, duas décadas depois, percebo que aquele garoto é o exemplo típico de que o basquetebol forma e educa de maneira efetiva, mas também pode ser a constatação de que só o esporte não consegue educar sozinho, precisamos ligar a rede familiar e acadêmica. Falo assim, pois os dois meninos espetaculares, Cabeça e Espiga, tiveram destinos bem diferentes. Cabeça era um dos integrantes da torcida jovem do Botafogo, se envolveu com pessoas sem escrúpulos, passou a participar de gangues e, mesmo com nossa tentativa, não conseguimos que se desviasse e ele teve um fim trágico. Preso, solto, más companhias e um assassinato estúpido em briga de torcidas rivais.
Por outro lado, Espiga, Delmilho, Espiguete, o armador do Vasco, construiu uma bela carreira esportiva e junto com ela concluiu seus estudos. Hoje, professor de educação física, família constituída - e por sinal uma família exemplar, casado com Cláudia e com os filhos Pedro e Laura. Onde eu quero chegar? O que é o destino. Como podemos comparar o que aconteceu com esses dois jovens saudáveis, inteligentes, atléticos. Um interrompe a vida por não conduzi-la com o cuidado e o respeito que a vida merece, e o outro, meu grande amigo Espiga, cultivando e plantando, hoje tem uma vida plena e é um homem de responsabilidade para consigo, sua família e a comunidade.
Meu convívio com o Espiga começou em 1997, em situações marcantes durante participações conjuntas em uma seleção carioca universitária. Um Brasileiro de Florianópolis, no qual fui chamado a dirigir a seleção brasileira que jogou a Universíade de 1997 na Itália, na qual convoquei Espiga e formamos um grupo de 12 jogadores, que conseguiu uma medalha histórica para o basquetebol brasileiro. Na disputa do terceiro lugar, Brasil X Itália, ginásio de Trapani, na Sicília, totalmente lotado, 4 mil italianos frenéticos se calaram com uma vitória brasileira épica. O jogo estava empatado em 65 x 65 a dois minutos para o término, quando Espiga, em dois ataques consecutivos, converteu dois arremessos de três pontos. Quase que poderiam valer quatro pontos, tal a distância que eles foram realizados, e os dois já com o tempo de 24 segundos estourando.
Medalha de bronze, amizade começando a ser constituída, minha admiração por este homem-atleta foi aumentando. Dali para frente, dirigi este brilhante jogador no Vasco, Fluminense e agora, 20 anos depois de conhecê-lo, estamos juntos aqui no basquetebol de Joinville. Durante estes 12 anos dos quais partilho deste convívio, pude observar neste atleta virtudes excepcionais. Espiga é dotado de uma capacidade de superação para transformar seu corpo num corpo atlético e de muita força mental para hoje ser um exemplo para os mais novos. É insuperável na persistência e na garra. A fidelidade a mim demonstrada me levou a fazer um convite para que Espiga fosse, além de jogador, meu auxiliar técnico. Então passei a ter a possibilidade de ver meu trabalho à frente do basquete de Joinville dar um salto de qualidade. Com conhecimento, perfil de competidor, leal e fiel escudeiro, sua contribuição em nosso projeto passa a ser imensurável. E hoje não me vejo sem Espiga em nossa comissão técnica.
Sábado, Ginásio Ivan Rodrigues lotado, 50 graus. Disputa ferrenha entre paulistas e catarinenses. Renhida dura, os obstáculos aparecendo e sendo superados, e em dado momento um entrevero entre o treinador adversário e Espiga, a provocação, o revide. Não podemos incentivar a violência, se é que houve tal manifestação, mas atire a primeira pedra quem em algum momento de pressão e provocação ostensiva não perdeu o controle. Veio à minha memória seu pai, um grande educador que o acompanhava enquanto vivo em toda sua trajetória, pai que educou e deixou no grande Espiga marcas de caráter e princípios que vemos ele carregar e transportar para Pedro e Laura. Não podemos julgar ninguém, nem devemos, mas podemos sim admirar e entender as pessoas por aquilo que elas são, e não por um momento no qual erramos. Minha ligação no domingo à noite foi de solidariedade a meu fiel escudeiro. E ainda marquei com seu filho Pedro um Fla X Flu no futebol de botão para que, de geração em geração, pai, filho e neto possamos, Seu Espiga (o patriarca), meu Espiga e o Pedrinho termos uma dinastia de grandes homens e amigos.
O paulista Alberto Bial nasceu em 1952. Começou a jogar basquete em 1966. Atuou no Fluminense, Flamengo, Municipal e Mackenzie. Em 1982, assumiu de vez o ofício de treinador. Foi campeão carioca, bicampeão goiano e quatro vezes campeão catarinense. Pelo Vasco, conquistou o Sul-americano de 1998. Bial treina o time masculino de Joinville desde 2005, além de atuar em programas sociais e integrar a equipe de comentaristas da SporTV.
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