Foto: Reprodução |
![]() |
"Manecrata" juramentado, o ex-diretor da Telesc e professor de administração Raimundo Vieira Filho lembra-se com saudade dos tempos em que "a friáz" inaugurava a temporada de ingestão calórica, sem culpa e sem temor ao colesterol. A época de saborear sem culpa e sem complexos as feijoadas, os cozidos, as tainhas fritas, as dobradinhas — e até mesmo aqueles pratos hoje nem tão celebrados, como as rabadas e os mocotós. Em compensação, as crianças se obrigavam ao martírio de ingerirem um nefando "remédio": óleo de fígado de bacalhau, com o seucaracterístico rótulo do pescador com o produto às costas. Era a Emulsão de Scott" para fortalecer o tórax e manter as crianças saudáveis, ao preço de inenarráveis caretas na hora da colherada.
Na boa prosa do Rai, as reminiscências daquelas jornadas do frio, nos tempos em que mocotó não prejudicava os índices do colesterol — ou o bom balanço dos triglicerídeos:
Amigo Sérgio,
Um cronista de alta performance, como tu, leva a sério o vocábulo crônica, que decorre da palavra grega cronos — tempo. Como todo ano temos outono e inverno, tens usado da tua imaginação para escrever brilhantes crônicas, nos dois sentidos do termo: cronológico em se tratando da estação e metereológico, falando do clima.
Gosto de outonos e invernos! Para quem não padece de falta de agasalho são duas belas estações desde que o vento sul e a chuva não freqüentem os dias, amiúde. Já fui, como bem sabes, um veranista de nível profissional. Daqueles de passar o dia velejando ou mesmo na praia. Entretanto a indolência, aliada aos cuidados com a pele — pois pago o tributo de anos pegando sol sem protetor solar, que ainda não existia — tem me afastado da praia; e a preguiça tem me afastado dos barcos. Deste modo, o verão passou a ser, pra mim, uma estação pouco agradável. Por isto, gosto do frio, agasalhado, é claro! Nas estações como as que estamos vivendo agora, podemos nos vestir decentemente, tomar um banho sem sair suando, ingerir um chocolate quente, um quentão honesto na época junina, um vinho generoso e, até mesmo, emborcar, com galhardia, um cowboy da Escócia no momento correto e, acima de tudo, fazer uso do famoso e insubstituível cobertor de orelha. Época, também, de saborear sem culpa ou complexos, aqueles pratos que fazem a alegria dos gourmets profissionais: feijoada, tainha com pirão, dobradinha, rabada, mocotó e por aí afora, pratos que depois de ingeridos trazem ao vivente aquela paz de espírito e o prazer de estar vivo.
Todavia, as estações frias trazem-me uma curiosa recordação da infância. Até hoje não consegui descobrir, mesmo consultando livros e médicos competentes, porque nestas estações as crianças deveriam tomar, diariamente, uma colher de sopa de uma substância rebarbativa chamada “óleo de fígado de bacalhau”. Tinha um gosto ruim! Muito ruim! Horrível, mesmo! Minha mãe dizia ser um fortificante, bom também para evitar gripes e resfriados. Sobre o primeiro efeito, não discuto, pois cresci saudável e aquele sacrifício não poderia ter resultado nulo. Mas, para evitar gripes e resfriados jamais soube de sua eficácia. O rótulo do vidro que acondicionava a repugnante bebida era amarelo, com um pescador que pelos trajes usados deduzia-se ser dos mares do Norte — um macacão tipo oleado com o chapéu parecido com o de um bombeiro, de cor marrom claro. O pescador trazia às costas um grande peixe que suponho ser o tal bacalhau. Ainda hoje, pensando naquilo, sinto as papilas se contraírem num movimento de contrariedade. Havia um outro estimulante com o mesmo gosto e aplicação, chamado “Emulsão de Scott”. Era outra bomba de igual potência. Minha avó materna, que morava conosco, me convencia a tomar aquela mistura deletéria após um “doping” financeiro de quinhentos réis (cinquenta centavos) a colherada. Esta manobra era realizada com o nariz tapado e alguma coisa doce na boca, em seguida, para aliviar aquele péssimo gosto.
Hoje, quando a minha visão atinge uma distância muito maior ao olhar para o passado do que para o futuro, até o óleo de fígado de bacalhau, impregnado de saudade, poderia ter um gosto melhor.
Fraterno abraço,
Rai
Dúvidas Frequentes | Fale conosco | Anuncie - © 2009 RBS Internet e Inovação - Todos os direitos reservados.