Foto: Reprodução |
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Kafka já havia descrito o horror da Metamorfose, na novela em que o caixeiro-viajante Gregor Samsa acorda transformado num imenso e viscoso baratão.
Já imaginaram a rejeição e o nojo da família?
Pobre Gregor. Em vez dos botões do pijama azul, com o qual fora deitar na noite anterior, seus dedos encontraram, naquela manhã, as listras intercaladas em amarelo e castanho-escuro do repugnante “peito” da barata.
A irmã do inseto, Grete, condoeu-se com a sina do irmão. No começo, não quis acreditar no que via. Aquele que brincara com ela, quando criança, transformado num horrível baratão, cujo primeiro gesto foi um aceno de antenas.
Vencido o asco e a perplexidade, quis poupar os pais. Como reagiriam à tragédia? Desmaiariam, com certeza. Eram idosos, podiam não resistir ao choque. Convinha chamar o vizinho farmacêutico. Mas, não! Como apresentar aquele quadro monstruoso à vizinhança?
Gregor já deveria estar tomando o seu café da manhã. Mas a irmã agora se perguntava: que tipo de comida levar ao “novo” irmão? A dos homens ou a das baratas? Um pedaço de galinha ou uma fruta? Ou restos de comida, cascas e sujeiras, como haveria de gostar uma boa barata, bicho onívoro, que, como as bernunças, “come tudo o que lhe dão”?
Semanas depois de apresentado à desgraça, o pai de Gregor não conseguia lhe devotar mais do que repugnância. Quando a “barata” se movimentou bruscamente, assustando-o, o “pai” atirou-lhe uma maçã, como se fosse um projétil. A bala encravou-se nas costas do bicho, como uma lembrança. A lembrança de que, apesar da aparência repulsiva, Gregor Samsa ainda era um membro da família...
O que Kafka não descreveu — e o que me atrevo a fazer agora — é a aberração de uma insólita possibilidade: uma metamorfose ao contrário, às avessas daquela sofrida por Gregor. Um bicho que amanhecesse transformado num ser humano.
Foi o caso daquele roedor, legítimo Rattus novegicus, popularmente conhecido como rato-de-esgoto. O impacto e o sofrimento foi tão brutal quanto o do caixeiro-viajante. O rato podia ser repelente, fedorento, pernicioso à saúde humana — transmissor de leptospirose, peste bubônica e tifo. Mas era um rato honesto. Um rato vertical, que não escondia a sua condição de mamífero pouco amado. Um rato de caráter.
Escondia-se fisicamente apenas para se defender do homem, seu eterno inimigo. Ao longo dos milênios, o rato aprendeu a cavar abrigos e a fugir nadando. Não era retórica a descoberta de que são os ratos os últimos a abandonar o porão dos navios de luxo, como o Titanic.
De repente, o roedor viu-se alojado num esgoto de um prédio público em Brasília — o que, por si só, já era um problema. Ali, os ratos viviam se entredevorando, principalmente os que moravam nos rodapés da Praça dos Três Poderes.
O roedor acordou, farejou o ar, espreguiçou-se e se lembrou de um pedaço de queijo que furtara na última comezaina do Itamaraty. Quis deslocar-se até o rodapé, onde havia um buraco em forma de meia-lua. Sentiu uma espécie de estranha letargia, seus pés pequeninos, mas ágeis, pareciam ter-se embutido no próprio corpo. Percebeu, então, que perdera duas das suas quatro patas.
Horror. Olhou para os membros superiores e notou que deles despontava um punho branco de camisa social. Camisa de humanos. Estupefação. Seu pescoço emergia de um colarinho branco e engomado.
No fim do corredor, havia uma porta de vidro. Penosamente, arrastou-se até lá, para usá-la como espelho. Sofreu para erguer-se sobre seus dois pés remanescentes. O reflexo devolvido pela vidraça produziu no pobre rato um irreversível abalo psicológico.
Seu rosto era o de sempre, o de um rato. Mas seus capilares quase invisíveis haviam crescido na cabeça e recebido um tratamento gomalinado, os novos cabelos penteados para trás, com a simetria de um pente-ancinho. Do colarinho, pendia uma coloridíssima gravata!
Meu Deus! O que o Todo-Poderoso fizera com ele? Ou teria sido aquele escritor tcheco, nascido em Praga?
Amanhecera transformado num senador membro da Comissão de Anti-Ética, um parceiro de Collor e Renan Calheiros...
Necessitando do desjejum, procurou, aflito, o cantinho onde, na véspera, escondera o pedaço de queijo. Encontrou apenas o minúsculo vestígio do último farelo.
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