Estou escrevendo esse post direto do aeroporto do Panamá, nossa última parada antes de chegar até o Brasil. Queria ter escrito em Porto Príncipe, mas a falta de luz impediu o acesso à internet por mais de 24 horas. Nossa missão deixará saudades. Viemos ao Haiti com a missão de mostrar o país com um novo olhar. Um olhar mais humanitário, cultural, de cooperação. Voltamos ao Brasil, com certeza, mais cultos do que chegamos aqui.
Tenho alguns agradecimentos especiais a fazer. Ao professor Ricardo Seitenfus, que acreditou na nossa proposta de reportagem e nos abriu as portas do Haiti. Ao embaixador do Brasil no Haiti Igor Kipman e sua esposa, Roseana, que adotaram a todos os participantes do projeto Brasil-Haiti durante os 10 dias em que ficamos no país caribenho. Às irmãs do Imaculado Coração de Maria, Neuza, Santina, Davina, Lorena e Adorema, que nos acolheram nas cidades de Jérémie e Leon. A todos que confiaram e estiveram com nós, perto ou longe, um obrigado de coração. Nossa missão segue no Brasil. Em poucos dias, as reportagens estarão sendo publicadas. E que elas consigam de fato, mostrar um novo Haiti. Obrigada novamente. Encontramos-nos no Brasil.
A última atividade da nossa missão no Haiti foi conhecer a sede do Centro de estudos Brasileiros Celso Ortega Terra, em Porto Príncipe. O centro foi inaugurado em dezembro e, na próxima semana, começa as atividades de aulas de português, informática e exposições de fotos e arte. A coordenação do centro está a cargo do professor da UNB Antonio Jorge Ramalho, que está há 11 meses dando aula na Universidade de Porto Príncipe como professor convidado.
Eliana Nicolini, 49 anos, é um dos nomes da mudança no Haiti. Mineira, mãe de três filhos, ela deixou a família no Brasil para buscar melhores condições de vida para o povo haitiano. E conseguiu. Pelo menos no bairro Kafoufey o lixo já começa a ganhar um destino. Além de auxiliar na questão sanitária, o projeto serve de fonte de renda para 385 trabalhadores. Tudo bancado por meio do programa de cooperação Sul-Sul, financiado pela Índia, Brasil e África do Sul. No ano passado, o projeto foi considerado o melhor das Nações Unidas para o desenvolvimento do Haiti.
Estou escrevendo este post bem atrasado. Mas como estávamos no Haiti, a falta de luz acabou nos impedindo conectar a rede. Já estamos no Panamá, nosso último destino rumo ao Brasil. Antes, porém, tenho de contar uma experiência que eu, o fotógrafo Fernando Ramos e o professor Ricardo Seitenfus vivemos na manhã de segunda-feira. Fomos visitar o presídio Central de Porto Príncipe, capital do Haiti. Foram apenas 45 minutos de visitação, mas o suficiente para presenciarmos o extremo da miséria humana.
Era o humano tratado como lixo. E para o humano tratado como lixo, ainda não há tratamentos no Haiti. Enquanto isso, homens disputam como animais a água que jorra de pequenos orifícios no pátio do presídio. Estavam nus, despidos de roupas, respeito e dignidade. Não conhecem a aplicação dos valores humanos. Alguns estão ali apenas porque são suspeitos. Ainda não há condenação judicial, mas já estão condenados. Condenados a entrar em uma prisão com criminosos. Tratados como criminosos. Jogados em um pátio onde o esgoto corre a céu aberto. Fazendo suas necessidades em patentes fétidas, sem direito a privacidade. Sem dignidade.
É complexo falar em direitos humanos para os presos do Haiti quando falta a aplicação de direitos até mesmo para quem vive em liberdade. Tão dolorido quanto ver um preso nu disputado um pouco de água como se fosse um animal, foi ver mulheres se lavando na água do esgoto que os porcos usam para beber. O Haiti precisa de atenção.
Agora são quase 8h aqui em Porto Príncipe e estamos nos preparando para uma das nossas experiências mais chocantes aqui no Haiti: conhecer o presídio central. Vamos num grupo reduzido: o professor Ricardo Seitenfus, o fotógrafo Fernando Ramos e eu. Nossa entrada no presídio está diretamente relacionada à missão de Seitenfus aqui no Haiti, que é a elaboração de um relatório para a Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre o sistema prisional do país, que é um verdadeiro colapso.
Ainda não sabemos o que, de fato nos aguarda por lá. O que poderemos filmar e fotografar. Se será apenas uma visita de observação, sem imagens. Esperamos conseguir o máximo de informações possíveis. Tudo que nos for permitido. O presídio central do Haiti é tido como o pior das Américas. Aqui, preso não tem direito a refeição. Se a família não leva, pode morrer de fome. Água também precisa ser levada para os familiares. Enfim, vamos conhecer a triste e chocante realidade deste local.
Foto: Fernando Ramos |
O domingo foi uma espécie de descanso para a equipe do Projeto Brasil-Haiti. Fomos em direção ao norte do país, para conhecer uma praia chamada Kalako. Local de água azulada, transparente, onde a beira do mar não é composta de areia, mas sim pedras brancas. Lembramos das primeiras conversas que tivemos sobre a missão e do professor Ricardo Seitenfus nos avisando: “Lembrem que vocês não vão para o Taiti, mas sim para o Haiti.”
Ontem, não tivéssemos certeza de que estávamos no Haiti, poderíamos até nos confundir. Tamanha beleza da praia. Imensidão de beleza natural. Local de turismo restrito, onde os dólares é que abrem o caminho. Natureza limitada aos que podem pagar. Contraste com a realidade da maioria do povo daqui de Porto Príncipe, que, de mar, só conhecem a poluição.
Foto: Fernando Ramos |
Para um povo que vive, em sua maioria, mergulhado na miséria, a morte pode significar o alcançar da dignidade. É no momento em que a vida deixa o corpo que o haitiano ganha direito de ser esticado em um local confortável, o que talvez nunca tenha conseguido fazer em vida. As famílias costumam pagar preços altos pela tradição de cultuar os mortos. Os caixões podem chegar a até 9 mil dólares. A cerimônia fúnebre é como uma grande festa. Tem banda de música ao vivo e o tempo de duração do funeral varia de acordo com o bolso da família. Há velórios que duram horas. Outros podem chegar a até 60 dias.
A regra é velar o morto o tempo em que o dinheiro permitir. Há famílias que se endividam para pagar grandes funerais. A grande maioria. Todos querem fazer a melhor homenagem para seu morto. Acreditam os haitianos que, diante de um grande funeral, o espírito do morto vai para um “local bom”. Caso contrário... No preço do funeral, está incluído até mesmo um book de fotos do morto e uma fita de vídeo com as cerimônias.
O enterro também é diferenciado. Não raros são os cemitérios familiares, erguidos nos pátios das casas. E também não raros são os cemitérios melhores que as casas. Jazigos erguidos em cimento e pedra, com pintura retocada, contrastam com casebres feitos de qualquer material que possa ser encontrado. Até mesmo folhas secas são usadas como cobertura. As mesmas folhas que cobrem as casas dos vivos, são apenas detalhes jogados pelo vento sobre os jazigos. E ajudam a aumentar ainda mais os contrastes.
Nosso domingo começou com uma entrevista com o embaixador do Brasil no Haiti, Igor Kipman. Ele, que tantas vezes já nos recebeu em sua residência durante nossa estada no Haiti, conversou sobre questões como o desenvolvimento do país e a atuação da Minustah. Kipman defende que a vertente militar da Minustah atue no país até 2011 e, posteriormente, comece a haver uma redução gradual do contingente militar no país. “Até lá, acredito que a Minustah já tenha auxiliado na seleção e treinamento da polícia haitiana, entre outras questões”, disse o embaixador. Já quanto às ajudas de cooperação ao Haiti, Kipman avalia que esse seja um longo processo, que poderia ainda durar até 15 anos. “Claro que ninguém é profeta. Ninguém pode prever o próximo governo, nem no Brasil, nem no Haiti”, disse o embaixador.
Mulher lava as pernas na água do esgotoFoto: Fernando Ramos |
Hoje é domingo de Páscoa. Mas no Haiti, diferentemente do Brasil, não há o costume de as crianças receberem chocolates. Chocolate costuma sair caro, e a maioria dos haitianos não tem condições de comprar. Os mercados iluminados à luz de velas, uma das principais fontes de renda por aqui, mal garantem o sustento necessário para a sobrevivência de boa parte das famílias. Quem dirá aquelas cestas recheadas de ovos de Páscoa...
Hoje é domingo de Páscoa, dia da renovação. Exatamente o que busca o povo do Haiti. Uma renovação de idéias. Uma renovação de vida. De esperanças. Foi bonito ver as pessoas na rua neste domingo. Lindas, arrumadas, com a roupa bem alinhada. Eles fazem questão de aparecer em público assim. Somente cada haitiano sabe o quanto é difícil se manter arrumado, quando não há luz nas casas e muitos dos banhos são tomados no esgoto que corre na frente das casas. Cena chocante de uma realidade triste que presenciamos. Mas foi como disse meu colega Fernando Ramos: “Podem tirar tudo dessas pessoas, menos a dignidade”. Então, que a dignidade jamais os abandone.
Foto: Fernando Ramos |
Entre tantas questões que coloquei como meta de conferir nos dias em que estivesse no Haiti, uma delas era andar de tap-tap. Ônibus colorido, de música ensurdecedora, de ritmo frenético. Enfim, andamos de tap-tap neste sábado à tarde. Contamos os detalhes do nosso passeio no retorno ao Brasil. Mais uma das experiências que jamais serão esquecidas.
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