Capa de Diário de um Ano Ruim |
![]() |
Assim como durante a época dos reis teria sido ingênuo pensar que o filho primogênito do rei seria o mais preparado para governar, também em nossa época é ingênuo pensar que o governante eleito democraticamente será o mais preparado. A regra de sucessão não é uma fórmula para identificar o melhor governante; é uma fórmula para atribuir legitimidade a um ou outro e assim evitar o conflito civil. O eleitorado – o demos – acredita que sua tarefa é escolher o melhor, mas na verdade sua tarefa é muito mais simples: ungir um homem (vox populi vox dei), não importa qual. Contar votos pode parecer um meio de descobrir qual é a verdadeira (isto é, a mais alta) vox populi; mas o poder da fórmula de contagem de votos, assim como o poder da fórmula do primogênito homem, está no fato de que é uma fórmula objetiva, não ambígua, fora do campo da contestação política. Jogar uma moeda seria igualmente objetivo, igualmente não ambíguo, igualmente incontestável e igualmente se poderia afirmar (como já se afirmou) que representa a vox dei. Não escolhemos nossos governantes jogando uma moeda – jogar moedas está associado ao baixo nível da atividade do jogo – mas quem ousaria afirmar que o mundo estaria em pior estado se seus governantes tivessem, desde o começo dos tempos, sido escolhidos pelo método da moeda.
O trecho acima é uma palhinha antecipada de Diário de um Ano Ruim (Companhia das Letras, 250 páginas), mais recente romance do sul-africano J.M. Coetzee, que terá edição brasileira nas bancas a partir da semana que vem. Coetzee, escritor conhecido pela secura intelectual com que disseca suas criaturas e pelas desoncertantes experiências formais prossegue na trajetória de inovação que lhe rendeu o Nobel de literatura em 2003 neste romance que, assim como o autor já havia feito com Elizabeth Costello, borra as noções entre ensaio e ficção, ou antes, usa o ensaio como um elemento ficcional. Se em Elizabeth Costello a narrativa era conduzida por conferências que a protagonista, uma intelectual e escritora ativista da luta a favor dos animais, proferia numa universidade, neste Diário de Ano Ruim um dos elementos centrais da construção do romance é uma série de 31 ensaios e 24 anotações de diário de extensões variadas.
Agrupados sob títulos simples que já servem também como antecipação de seus temas (Do Terrorismo, Da Origem do Estado, Da Matança de Animais, Da Anarquia e assim por diante), os textos são parte de um livro encomendado pela sua editora alemã ao protagonista. O personagem principal é, como Coetzee, um romancista e intelectual sul-africano residente na Austrália, e atende pelo nome de Sr. C. ou Señor C., apelidos apostos pelos vizinhos do luxuoso condomínio em que reside. Enquanto redige os ensaios, o narrador/escritor cruza com uma vizinha na lavanderia, uma linda jovem filipina chamada Anya, de sensualidade exuberante, a quem contrata para datilografar seus manuscritos. A intenção do Sr. C. é claramente seduzir a garota por meio da aproximação natural que esse trabalho proprocionaria, mas o fato é que os escritos do autor, eruditos ensaios permeados de questões políticas, são de um tédio mortal para a jovem – que mora no mesmo edifício 25 andares acima, em um apartamento que divide com um amante irlandês. O "señor C." da história, contudo, não tem apenas pontos de coincidência biográfica com seu autor, mas é mais velho e tem posições intelectuais mais erráticas, algumas contrárias a coisas que o próprio Coetzee já comentou em suas raras entrevistas, o que acena para o leitor com a indubitável circunstância de que os ensaios do livro, embora consistentes, provocativos, alguns deles brilhantes e outros mais perto do lugar-comum da contestação intelectual, são tão ficcionais quanto os elementos narrativos propriamente ditos, e não expressão do pensamento de seu autor.
O que torna a leitura de Diário de um Ano Ruim uma experiência algo desconcertante é o fato de que cada página se divide em três partes que podem ser lidas de maneira independente. No alto, em corpo maior, os ensaios propriamente ditos. Abaixo, quase como notas de rodapé, estão dispostos os textos que apresentam o ponto de vista dele e dela para o desenvolvimento dessa tumultuada aproximação. Deixando ao leitor a possibilidade de ler cada fragmento alternadamente, ler primeiro o ensaio e mais tarde os fragmentos de história dele e dela ou mesmo fazer um pouco de cada coisa.
Coetzee em foto de data indefinida
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
Dúvidas Frequentes | Fale conosco | Anuncie - © 2009 RBS Internet e Inovação - Todos os direitos reservados.