Dorine e Gorz, nos anos 1950 |
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Ler histórias de amor, daquelas em que a comunhão entre os dois sujeitos é eterna em que pesem problemas de toda ordem, dos sentimentais aos financeiros, do conflito com o mundo ao choque de vaidades, pode despertar reações de dois tipos, dependendo de que lado da modernidade você se situa. Ou você se comove pela percepção de um território humano comum no qual a economia dos sentimentos evoca todas as construções abstratas que são parte das conquistas da nossa história no planeta ou você acha bobagem, baboseira e pensa "ah, não me trova".
Lógico que para cada obra que aborde uma história de amor haverá um posicionamento diferente por parte do sujeito que a examine dependendo de fatores da própria história: sua credibilidade, o grau de açúcar depositado em sua escrita, seu arrebatamento ou falta dele. Hoje, nas angústias pós-modernas destes tempos de velocidade, o amor romântico tende a ser encarado como uma construção teórica e histórica com data de início tão definida quanto o período bizantino – e tão pouco válido para os dias de hoje quanto. Ou pensa-se que o amor romântico dos nossos avós não tem mais espaço nestes dias em que as estruturas e relações são informes, desfiguradas, etéreas, líquidas, como analisa Zygmunt Bauman no magistral Amor Líquido. Já durante o século 20 havia uma depreciação do amor individual por parte da utopia comunista, algo que degradaria o esforço do amor pela humanidade e o avanço da sociedade socialista do futuro.
E não deixa de ser irônico que uma das cartas de amor mais impactantes que li nos últimos tempos tenha saído da pena e da cabeça de um dos ícones do pensamento revolucionário de esquerda do século 20. André Gorz era um filósofo austríaco de nascimento e francês de cidadania, amigo de Sartre (foi co-diretor da Les Temps Moderns), fundador da Le Nouvel Observateur, autor de As Metamorfoses do Trabalho, entre outras obras que relacionam a economia e a questão do trabalho, e pioneiro do pensamento ecológico. Está saindo agora, dele, aqui no Brasil, pela Cosac Naify, um livrito de umas 100 páginas chamado Carta a D. Uma das leituras relativas ao amor mais dilacerantes já enfrentadas por este que vos fala, porque recupera, ao menos no plano da linguagem, esse amor eterno e imperfeito das grandes histórias românticas _ com a perturbadora circunstância de que se trata de uma história real. Com final, ainda de acordo com a ótica de quem observa, trágico ou perturbador.
A D. a quem a carta se dirige é Dorine Keir, inglesa com quem Gorz (cujo nome de nascimento era Gerard Horst) viveu por meio século. Na Carta a D., Gorz se dedica a esmiuçar, com concisão, elegância e uma boa dose de paixão, os anos que viveu com ela, responsável, segundo ele mesmo admite, por muito do que ele conseguiu realizar em termos de seu trabalho como jornalista. Dorine mantinha para ele fichários sobre questões candentes do noticiário internacional, ajudava-o na redação de documentos em inglês, tinha com ele discussões que estimularam muito de seu pensamento filosófico. Tudo isso Gorz retrata na Carta a D., sem abrir mão de uma criteriosa abordagem intelectual e de uma honestidade desconcertante para analisar episódios do próprio passado. Reconhece, por exemplo, que numa de suas primeiras obras, um ficção de cunho marcadamente autobiográfico chamada Le Traîte, o personagem que Dorine inspirou na verdade era uma diminuição cruel da mulher com quem ele vivia de verdade, uma forma de compensar um sentimento de carência provocado pelo brilho que aquela mulher ao seu lado emitia.
Dorine também foi, em seus últimos anos de vida, uma mulher muito doente. Ela sofria de uma inicialmente mal diagnosticada moléstia chamada aracnoidite, provocada por resíduos de um líquido para contraste de radiografia que permaneceu em seu corpo depois de um exame, provocando dores excruciantes às quais ela resistiu por três décadas. Gorz retirou-se da vida pública para ficar ao lado da esposa, e durante anos ambos viveram juntos em uma propriedade tranqüila no interior da França. Carta a D. foi escrito em 2006, como um hino amoroso a Dorine e como uma elegia antecipada ao relacionamento de ambos, dado que a saúde dela declinava vertiginosamente. As últimas páginas da Carta manifestam essa preocupação de Gorz com a perspectiva de encarar o fim da vida sem ela, o desespero e a tristeza em imaginar-se um homem seguindo um carro fúnebre. E reafirmam o fato de que ele precisava dela como sempre precisou. Ao fim do livro, ele declara que não tinha a intenção de sobreviver a ela. É um momento literariamente tocante, de uma tristeza sóbria daquelas que te desarticula completamente.
Pouco menos de um ano depois da redação do livro, em setembro de 2007, André Gorz e Dorine Keir se suicidaram com injeções letais em sua casa em Vosnon. Ele estava com 84 anos. Ela, com 83. Foram encontrados deitados um ao lado do outro.
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
De Carta a D.
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
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