Sempre que eu falo isso as pessoas tendem a me olhar com o ar compungido que dirigem a quem perdeu o controle pleno de suas faculdades mentais, mas acredito que os únicos grandes gêneros literários do século 20 que ainda apontam caminhos viáveis para o século 21 são justamente aqueles tratados com mais desdém: a Ficção Científica e o Romance Policial. A grande ficção científica é uma indagação sobre os destinos do homem em uma época em que a tecnologia parece oferecer respostas para tudo, menos para as mais velhas das perguntas: "de onde viemos", "para onde vamos", "quem somos nós" e "é bonito aqui" _ ops, errei, esta última é do Didi Mocó. Já o Romance Policial é uma representação altamente estilizada da eterna busca do homem por um sentido que ordene o mundo ao seu redor. E talvez o fato de o herói do romance policial ser alguém que consegue estabelecer esse sentido seja um dos grandes segredos da popularidade do gênero _ só para ficar em um exemplo, aqui no Brasil duas das principais editoras do país mantém coleções dedicadas aos romances de crime e mistério.
Especificamente no que diz respeito ao Policial, ele ainda agrega o fato de ser um gênero fácil e extremamente difícil. Fácil porque há uma fórmula bastante clara a ser seguida por quem deseja escrever um. E difícil porque há uma fórmula bastante clara a ser contornada, sem descaracterização, por quem deseja escrever um realmente bom. O policial é, no fim, sempre um romance com normas estabelecidas. E se elas forem implodidas por completo, o livro, embora de qualidade literária, pode se tornar outra coisa. Mesmo um clássico moderno como O nome da rosa utiliza os parâmetros do gênero e os segue em alguma medida. Embora o próprio Umberto Eco definisse seu romance como um "antipolicial", já que o detetive ia sempre na direção errada e no fim não solucionava nada, a solução ainda assim se apresenta: o autor dos crimes é descoberto e o método pelo qual eles são cometidos é elucidado. Assim como Eco, outros grandes escritores já se achegaram à estrutura do gênero reinventando-a com seu talento, como Mia Couto, Rubem Fonseca, Mario Vargas Llosa.
Já entre os autores de policiais propriamente ditos, os melhores da atualidade são aqueles que subvertem a fórmula torcendo-a ao limite: James Elroy criou policiais impecáveis que na verdade são a história da urbanização de Los Angeles. Denis Lehane já definiu o gênero como "a tragédia da classe operária". Mesmo no Brasil, a série do consagrado detetive Espinosa, de Luiz Alfredo García-Roza, é um mergulho na psique de seu personagem principal, livro a livro, mais do que nos crimes que ele investiga.
Como metáfora da própria busca do homem por conhecimento, não admira que não demorassem a surgir policiais que dialogam não apenas com o mundo, mas com a própria literatura, como O campeonato, do brasileiro Flávio Carneiro, Colóquio mortal, de Lev Raphael, e O Clube Dumas, de Arturo Pérez-Reverte. É a esse tipo de livro que podemos filiar um dos mais recentes lançamentos do gênero por aqui, O poeta, de Michael Connelly, nome de destaque na ficção policial contemporânea. Um livro que já em seu mote e em suas primeiras cenas anuncia que está construindo sua trama sobre um intrincado jogo de citações e referências.
O poeta não é estrelado pela mais famosa criação de Connelly, o detetive Harry Bosch. O protagonista da história é um repórter, Jack McEvoy, residente em Denver, onde escrever periodicamente em um dos jornais locais grandes reportagens literárias sobre crimes de morte que normalmente ocupam poucas linhas do noticiário diário (já aí vemos a presença de Truman Capote e sua obra-prima A sangue frio). Depois que seu irmão gêmeo, o policial Sean, se suicida misteriosamente com um tiro na cabeça à beira de um lago, Jack resolve que escrever uma reportagem sobre o caso será seu modo de lidar com o luto. O suicídio de Sean em um primeiro momento é atribuído à dificuldade em lidar com um caso não resolvido, o assassinato de uma bela estudante da universidade local, cujo corpo foi encontrado serrado no meio. A referência ao caso real Dália Negra – e à obra-prima de James Elroy que ficcionaliza o caso – é tão explícito que a imprensa passa a chamar a morta de A Dália Branca.
A investigação do suicídio do policial é rápida. A conclusão é que, frustrado com o beco sem saída do caso em que trabalhava, Sean estourou os miolos deixando apenas uma mensagem escrita a mão no vidro embaçado de seu carro: "Além do espaço – além do tempo". Uma versão que o próprio Jack, embora com alguma relutância, aceita em um primeiro momento. Até que, ao pesquisar outros casos de suicídio policial para complementar sua reportagem sobre o irmão, Jack esbarra na notícia de um investigador de Chicago que, obcecado com o crime não-solucionado cometido contra um menino, também teria se suicidado deixando apenas uma frase escrita em um bloco: "pela porta pálida", trecho de um poema de Edgar Allan Poe. Ao descobrir que a frase supostamente escrita por seu irmão também é de um poema de Poe, Jack McEvoy faz a conexão e começa a caçada a um assassino serial bastante peculiar: um maníaco especializado em matar policiais que trabalharam em casos brutais não resolvidos.
A conexão com a própria história do gênero ao qual se filia é evidente. Os poemas deixados pelo assassino – que ganha o apelido de "o poeta" assim que a história vai parar nos jornais – são de ninguém menos que o fundador do policial como gênero, Poe, autor de Os crimes da Rua Morgue. Também a conexão com A Dália Negra não se restringe apenas ao estado em que o cadáver da jovem é encontrado. Quem viu só o filme terrível que saiu ano passado ficou boiando, mas no romance de Elroy a mulher com quem um dos investigadores do caso Dalia Negra termina por se envolver é quase sósia da jovem assassinada – enquanto no cinema Hillary Swank não tem nada a ver com Mia Kirschner. O tema do duplo se repete em O poeta, com a circunstância de que Jack e Sean são gêmeos – e, portanto, para o repórter, ver as fotos do local do crime provoca a angustiante sensação de estar vendo a si mesmo morto no local. Outro "duplo" é a esposa do policial Sean, uma versão algo mais velha mas muito semelhante à moça assassinada, mais um motivo para a obsessão de Sean pelo caso. Um tema que outra vez nos remete ao Poe dos trechos encontrados no crime, já que o escritor escreveu um magistral conto sobre a questão da "mórbida semelhança": William Wilson.
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
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