O modernismo se especializou na representação da cidade como o teatro por excelência da vida moderna — em Tudo o que é sólido desmancha no ar, seu estudo sobre Marx e a Modernidade, Marshall Berman recorre ao ensaio O Pintor da Vida Moderna, de Baudelaire, para dar voz a essa ânsia produzida pela modernidade de plasmar o efêmero na arte:
Ele (o pintor da vida moderna) se delicia com finas carruagens e orgulhosos corcéis, a esplendorosa sagacidade dos cavalariços, a destreza dos pedestres, o sinuoso andar das mulheres, a beleza das crianças, felizes de estarem vivas e bem-vestidas — numa palavra, ele se delicia com a vida universal.
Já em seu estudo sobre a representação literária da cidade, Todas as cidades, a cidade, Renato Cordeiro Gomes recorre a um dos textos que funda a representação do sujeito moderno na literatura: O Homem da Multidão, de Edgar Allan Poe, conto no qual um homem segue um estranho de capa de chuva roxa ao longo de uma jornada por uma Londres sufocante com suas ruas repletas de gente, mercados ruidosos, ruas congestionadas de tráfego, vielas labirínticas. Confiram um trecho do conto, abaixo:
Era esta uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão aumentou, e quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardece, eu nunca me encontrara em situação similar e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
Este olhar de dentro para o exterior é, simbolicamente, a literatura rendendo-se aos encantos da vida moderna na cidade. Há luzes, multidão, cores, formas, estilos, e máquinas, muitas máquinas: a iluminação eletrônica, os carros, os bondes. A cidade moderna é o território da máquina, o que significa dizer que é também o território do ruído, da poluição sonora, algo que um século de automóveis nas ruas só ajudou a intensificar — agravando as neuroses da vida contemporânea.
Pois na América Latina poucos souberam apreender essa característica turbulenta da cidade quanto o escritor argentino Antonio Di Benedetto, que já em 1964 a transformou no tema central de O Silencieiro, romance que a editora Globo publicou no Brasil há uns dois anos. A primeira coisa a se dizer do injustamente pouco conhecido Di Benedetto é que se trata de um autor que desde as primeiras páginas cativa o leitor pela qualidade elíptica, alusiva, "estranha" de sua prosa, composta de frases curtas, direto ao ponto, contando eventos encadeados por um tênue fio que não chega a dominar a narrativa. É um recurso estilístico muito eficiente para narrar processos de desagregação mental, e não é à toa que em O Silencieiro esse mergulho na loucura traga, no estilo, o mesmo laconismo perturbador de outro romance de Di Benedetto: Os suicidas, também já editado no Brasil.
Em O Silencieiro (neologismo que remete ao protagonista, um homem que tenta inutilmente cercar-se de silêncio) o personagem principal é um ex-estudante de Direito (não se formou) que trabalha no serviço burocrático de uma firma e mora com a mãe, viúva, numa Buenos Aires não nomeada dos anos 1950. A mãe tem um rádio, mas só o escuta quando o filho não está em casa — a casa também não tem uma TV por determinação dele. Tenta, sem sucesso, escrever um romance magistral chamado O Teto, mas se deixa ficar, apático, e não se dedica ao trabalho. Já de cara entendemos que o protagonista é um neurastênico hiperssensível ao barulho: ao chegar em casa depois do trabalho, certo dia, ele descobre que estão testando o motor de um ônibus no terreno baldio atrás da parede de seu quarto e sai de casa como se fugisse da morte em direção ao trabalho, que prefere às agressões do ruído.
Mais tarde, o terreno é vendido, mas isso não traz alívio, pois os compradores da área se dedicam a erguer um galpão onde na sequência se instala uma oficina mecânica. Mais tarde, uma feira livre. E assim o anti-herói deste romance segue seu calvário de episódio em episódio, fracassando em isolar-se do ruído e enlouquecendo gradativamente de tentativa em tentativa. Um fugitivo tentando escapar da cidade e continuamente cercado por ela, porque a cidade é inescapável, tanto o maravilhamento dos confortos trazidos pela era da máquina quanto sua faceta desesperadora de epicentro da onda de ruídos que forma a vida moderna. E isso que tanto Di Benedetto quanto seu personagem não viveram hoje, com cada vez mais carros nas ruas, buzinas, idiotas inconvenientes com celular tocando música em volume de rádio a qualquer hora do dia. Vai abaixo um trecho do romance:
Considero o homem como fazedor de ruídos.
Seus ruídos são diferentes dos ruídos cósmicos e dos ruídos da natureza.
O homem é emissor natural de sons: a voz (a fala e o canto). Mas também os produz com instrumentos: uma pedra, um ferro, batidos contra alguma coisa; os meios de fazer música, a máquina... (o ruído-máquina).
A máquina é útil. Não seu ruído, pior se exagera ou não se modera. Frequentemente, nem se modera, nem se controla, nem se reprime. Produz, em quem o gera, uma euforia de poder (poder agressivo?)
Os seres humanos são geradores de sons. São (os demais).
Eu teria de recear a vizinhança de todas as pessoas. E não é essa a minha atitude: sou, ao contrário, confiado.
Há um ruído... material.
E há um outro ruído que é... como é?
Vem das próprias pessoas, ou das condições que as pessoas criam ou da convivência.
Às vezes se percebe como um bloqueio, como uma onda ou infiltração sonora, ou um sussurro opressivo e deprimente.
Tampouco é assim. Não é possível ouvi-lo. É preciso supor ou adivinhar essas características. O que dele se capta, se recebe, são as consequências. Essencialmente — como o outro, o ruído material —, perturba. É tão intensa a sua gravitação que desequilibra,não os sentidos... o quê?...
É um ruído?... Sim, deve constituir um ruído, um ruído de guerra, destrutivo e não aparente. Um instrumento-de-não-deixar-ser.
(Divago. Acredito que este raciocínio foi uma rajada de insensatez.)
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
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