Havia prometido para nossos leitores do Caderno Cultura um trecho do livro Foi Apenas um Sonho, de Richard Yates, recentemente adaptado para as telonas com Kate Winslet e Leonardo DiCaprio nos papéis principais. O livro, que ganhou edição em português pelo selo Alfaguara do grupo Objetiva, retrata, em uma prosa sóbria porém vibrante, o casal Frank e April Wheeler, jovens, com uma vida financeiramente estabilizada, cumprindo as expectativas da sociedade de seu tempo: casa, casal de filhos, casa no subúrbio — e sufocando por isso. Boêmios
e românticos, ambos só se casaram porque April engravidou, e antes que pudessem se dar conta já estavam lá reproduzindo de modo angustiante todos os
passos do caminho da feliz vida burguesa americana nos anos 1950. A "Rua da Revolução" que poderia ser o título original se a editora não quisesse aproveitar a carona do filme, é o lugar em que vivem, no subúrbio de Nova Jersey, e onde o casal gesta o plano de sua própria revolução, tão ingênua e otimista que seu malogro anunciado comove, mas não vou entrar em muitos detalhes.
Selecionei o trecho abaixo, com extensão justa para dar uma ideia mais precisa da elegância do estilo de Yates, escritor americano pouco conhecido no Brasil e hoje um tanto relegado mesmo em sua terra de origem. Boa leitura.
E agora, conforme sempre fazia quando se esforçava para se lembrar de quem era, a mente de Frank voltou aos primeiros anos do pós-guerra, a um quarteirão caindo aos pedaços da rua Bethune, naquela parte de Nova York onde o frágil extremo oeste do Village se desfaz em armazéns silenciosos à beira d'água, onde a brisa salgada da noite e os apitos que vêm do rio enchem o ar com promessas de viagens. Aos vinte e poucos anos, sob mantos orgulhosos de "ex-combatente" e "intelectual", mantos usados com a mesma bravura com que vestia o paletó de tweed e a roupa cáqui, ele possuíra uma das três chaves de um conjugado naquela rua. As outras duas chaves, e o direito "ao uso do local a cada segunda e terceira semanas", pertenciam a dois colegas da Universidade de Columbia, cada um responsável pelo pagamento da terça parte do aluguel de 27 dólares. Os outros dois, um ex-piloto de combate e um ex-fuzileiro, eram mais velhos e se mostravam mais à vontade com assuntos mundanos do que Frank — parecia que os dois tinham reservas inesgotáveis de garotas dispostas a fazer uso do local —, mas não demorou muito até que Frank, para sua própria surpresa, começasse a fazer o mesmo que eles; era um tempo de progresso intenso, fantástico, em vários sentidos, de uma autoconfiança crescente e estonteante. O sonhador solitário dos mapas ferroviários nunca chegara a pular num trem de carga, mas era cada vez mais improvável que algum Krebs pudesse voltar a chamá-lo de bobão. O exército o recrutara aos 18 anos, o empurrara para a ofensiva na última primavera da guerra na Alemanha e lhe propiciara um giro tão perturbador quanto emocionante pela Europa durante mais um ano, antes de liberá-lo; e a vida desde então apenas o fortalecera. Os filamentos soltos do seu caráter — traços que o mantinham sonhador e solitário em meio aos colegas de escola e mais tarde em meio aos companheiros de farda — pareciam, subitamente, ter se consolidado num todo consistente e interessante. Pela primeira vez na vida era admirado, e o fato de que garotas pudessem querer ir para a cama com ele era só um pouco mais surpreendente do que a outra descoberta feita àquela época: homens, inclusive homens inteligentes, gostavam de ouvi-lo falar. Seu rendimento acadêmico raramente ficava acima da média, mas seu desempenho nada tinha de mediano nas conversas regadas a cerveja, noite adentro, nas quais ele era o foco das atenções — conversas que de modo geral acabavam com um murmúrio de assentimento, acompanhado de toques nas têmporas, e expressões de que Wheeler "sabia das coisas". Tudo o que ele precisava, dizia-se, era de tempo e liberdade para se encontrar. Diversas carreiras estavam previstas para ele, e o consenso apontava que atuaria em algum setor "das ciências humanas", mesmo que não fosse nas artes; seria, contudo, algo que exigiria dedicação contínua e inabalável, algo relacionado à sua estada precoce na Europa, por ele definida como a única região do mundo onde valia a pena viver. E, caminhando pelas ruas ao alvorecer depois de uma dessas longas conversas, ou deitado na cama, no apartamento de rua Bethune, em noites em que podia usar o conjugado, mas não tinha consigo uma garota, ele quase nunca alimentava dúvidas quanto ao seu mérito excepcional. As biografias dos grandes homens não revelavam esse mesmo tipo de busca juvenil, esse mesmo tipo de revolta contra os pais e os métodos empregados pelos pais? Em certo sentido sentia-se até grato por não ter uma área específica de interesse: ao evitar objetivos específicos, evitava limitações específicas. Naquele momento, o mundo, a própria vida, seria o seu campo de interesse.
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
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