Os deuses falam por sinais. Pode ser uma folha caindo no verão, o grito de um animal agonizante ou a ondulação do vento na água calma. Pode ser fumaça perto do chão, um rasgo nas nuvens ou o vôo de um pássaro.
Mas, naquele dia, os deuses mandaram uma tempestade. Foi uma grande tempestade, uma tempestade que seria lembrada, mas as pessoas não deram o nome daquela tempestade ao ano. Em vez disso, o chamaram de o Ano em que o Estranho chegou.
Porque um estranho chegou a Ratharryn no dia da tempestade. Era um dia de verão, o mesmo dia em que Saban quase foi assassinado pelo seu meio-irmão.
Naquele dia, os deuses não estavam falando. Estavam gritando.
Há tempos, prometi ao Moreira uma resenha de Stonehenge, romance histórico já citado e listado pelo Segundo Caderno no rol de boas leituras para as férias. Mesmo com o temor de estar um pouco atrasado (o tempo, sempre o tempo, ou a falta dele), vamos lá.
Através dos tempos, o círculo de pedras construído na planície de Salisbury, na Inglatera, atrai milhares de turistas e adeptos dos cultos celtas. Sua origem, porém, continua envolta em mistério. Construído no começo da Idade do Bronze, a História ainda não sabe por quem, ou exatamente para que, foi feito. Por isso, Bernard Cornwell, o mais popular escritor de romances históricos do momento, criou a sua versão, cujo primeiro parágrafo vocês leram aí em cima.
Em um dia de verão, um estranho chega à aldeia de Ratharryn, carregando uma grande quantia de ouro. Obviamente, ele é morto (auri sacra flames, diriam os romanos). E morto num local sagrado. Advinham qual? Pois é. Lá mesmo. A riqueza do homem assassinado vai influir na vida de três irmãos, filhos do chefe da aldeia. O ambicioso Lengar (o assassino do estranho e, mais tarde, do próprio pai), quer assumir a chefia da tribo e conquistar as aldeias vizinhas. O místico, aleijado e desprezado Camaban, sonha em tornar-se um poderoso feiticeiro e construir um grande templo, um local para todos os deuses, que elevará o poder de Ratharryn, um lugar sagrado que unirá o deus Sol à deusa Lua, que marcará o fim do sofrimento, das sombras e da fome.
Enquanto isso, Saban, o terceiro irmão, vendido como escravo por Lengar, quer viver em paz, com a esposa e filhas, mas não resiste aos artifícios de Camaban. Amante da noiva do Sol, caberá a ele ser o mestre do Templo das Sombras. Endurecido pelos dias de tortura, escravidão e sofrimento, ele usará, a contragosto, todo o seu conhecimento e engenhosidade para erguer o gigantesco monumento.
A construção de Stonehenge é o fio condutor da trama. Segundo historiadores, a estrutura foi construída em três períodos distintos. No primeiro, era uma simples vala circular, com um santuário de madeira. No segundo, foram construídos dois círculos de pedras, uma avenida, alinhada com o Sol nascente do primeiro dia do Verão, e o círculo externo, com 35 pedras. No terceiro período, os megálitos foram erguidos e a estrutura tomou a forma que conhecemos.
Cornwell recria os três períodos no transcurso da vida dos irmãos. Por trás das intrigas e lutas, pulsa a vida do círculo sagrado, que vai se modificando à medida em que crescem os poderes e a ambição de um feiticeiro. Por água e por terra, arrastadas por animais e escravos, banhadas no sangue dos seus construtores, as pedras ganham vida:
E eles trabalharam. Martelaram, rasparam pedaços de pedra até virar pó, cavaram rocha e poliram pedra até os braços doerem e as narinas ficarem cheias de pó e os olhos ardendo. Os mais fortes trabalharam na pedra longa e, como Saban havia prometido, ela estava pronta antes do solstício de inverno. Chegou o dia em que ela não poderia ser mais moldada, pois havia se transformado de uma pedra num monólito esguio, elegante e afunilado, e Saban tinha consciência de que devia erguê-la. Lembrou-se do conselho de Galeth e propôs levantar a pedra virada sobre a face mais estreita, porque temia que o próprio peso pudesse parti-la em duas. Mas primeiro a pedra teria de ser manobrada até a borda do buraco, o que demorou seis dias, usando-se alavancas, suando e praguejando. Em seguida, ela teve de ser virada sobre um dos lados longos e estreitos, o que demorou mais um dia inteiro, mas por fim ela estava sobre os rolos de troncos, e Saban pôde enrolar cordas por toda a extensão da pedra e prender as cordas aos sessenta bois que puxariam a pedra monstruosa para dentro do buraco.
Como já fez na saga de Arthur (na trilogia composta por O Rei do Inverno, O Inimigo de Deus e Excalibur), Cornwell junta habilmente feitiçaria, rituais pagãos, sacrifícios de sangue, guerras, ambição e, principalmente, a luta pelo poder na antiga Bretanha.Talvez não tenha sido assim, mas, já que a História não pode responder ao mistério, cabe aos romancistas mostrarem sua versão.
Bendito o que semeia livros. Quase não tínhamos livros em casa. Deus o livro, livrai-nos do mal. Neste espaço, o editor de livros de Zero Hora, Carlos André Moreira, partilha com os leitores informações, comentários, curiosidades, dicas, surpresas, decepções, perguntas, dúvidas, impressões, indiferenças e todas as outras tantas sensações proporcionadas pelos livros e pela leitura, esses prazeres tão secretos que merecem ser compartilhados.
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